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sexta-feira, 27 de julho de 2012

Uma família de Pescadores - Soltar Amarras.


 Era uma família de pescadores, das últimas que ainda existiam na cidade de Setúbal nos anos oitenta do século vinte. Filhos e netos de pescadores e vendedores de peixe na praça, portanto gente da cidade com currículo e linhagem nas artes das redes e da venda de ictios e crustáceos. Uma família peculiar aquela, aos olhos dos forasteiros ou daqueles que, como eu nativo da mesma urbe de Elmano Sadino, vinham de  famílias de outras origens, também humildes mas diferentes.  


 A avó tinha uma “pedra” na praça e por defeito de profissão falava uns decibéis acima do desejado (Ah miga qué’zo quem diz lá!). Trazia pesados brincos de ouro pendendo nos furos já rasgados pelo peso da idade, em constante movimento cinético-vibratório, locomovidos pela acção do movimento maxilo-facial (erra o q’mai m' faltava agorra, nã querres nã comprres!). A senhora apesar das suas origens modestas tinha uma altivez orgulhosa de caracóis naturais e pele sobejamente enrugada, como uma fadista desgarrada a ajeitar o xaile (ê cá é que sei) e que nada deve à vida. O avô era um homem magríssimo, curvado que não comia (nã m’apetece nada), apenas bebia (um copite de vinhe tinte prra mim miga) e ninguém sabia bem porquê. Era pessoa de poucas falas mas quando se pronunciava apenas dizia redundâncias às quais ninguém retorquía mais pelo respeito à idade que pela limitada sabedoria. Mas gostava do mar, das artes da faina, e tinha uns olhos distantes e molhados quando estava em terra, como que enfeitiçados pelo vício da pesca, pela vida dura, pelas tempestades e pelas sereias, e por isso tinha uma cara triste e longa. As filhas, duas, distavam entre elas uma boa década em idade. A mais velha de andar rígido de artrite reumatóide, já tinha  atingido os quarenta e sem saber aproximava-se da viuvez precoce por causa de uns rins falidos e da hemodiálise que ainda não tinha chegado ao hospital (ai agorra o qué’que fasse sem o mê Márrio?) mas sempre com pujança nos pulmões para chamar os filhos que brincavam a mais de cem metros de casa (Aaaah Migueeeeeeel… andajápacasajantarrecutêpaijáchigouequerrcmerr!!!). A mais nova teria uns trinta anos, caixa num supermercado, um irritante sinal hirsuto por cima do canto da boca. Era casada com um soldador desempregado que gostava mais de adegas e sindicalismo de café que de trabalho e tinha as pernas inchadas e roxas por culpa de uma cirrose teimosa, mas mesmo assim ameaçava bater nos filhos se eles não portassem bem (amande-te uma papa desse f’cinhe se nã te pões dirrête vê lá!). E ainda havia um cunhado de voz esganiçada que tinha uma traineira verde chamada "Mula da Cooperativa" que já tinha levado por uma vez o andor na festa da Senhora do Rosário de Tróia, e fora expulso do cinema por se rir demasiado alto durante um filme cómico. Era a cara chapada do futuro falecido, apenas mais velho e seco pelo sal.


Iam todos aos fins-de-semana de Verão para Tróia num barco que não parava de crescer em tamanho à medida que a família se ia alargando. Nesse tempo acampavam entre a Caldeira e o cais dos Fuzileiros quando ainda era permitido fazê-lo mais por laxismo das autoridades que por falta de farisaica legislação. Chegavam com a maré-alta, arreavam a fateixa na areia e depois da barraca armada, no sentido literal e figurado, era vê-los já na maré baixa; as mulheres e as crianças a apanhar o mercurial berbigão no poluído Sado, os rapazes de camaroeiro nas mãos com água pelos joelhos, enquanto que os mais velhos desamarravam o bote a remos e de cana-de-pesca em riste tentavam a sorte com as tainhas, à época já a saber mais a gasóleo e a tinta dos estaleiros navais que a peixe fresco e "vivinho".


Depois haviam os netos, que já não queriam saber da pesca como modo de vida. Também não é de estranhar, de tanta prédica ouvirem sobre as dificuldades de ser pescador e de como o trabalho era mal-ganho e arriscado. E no entanto, todos pareciam ter a intensa certeza que estavam destinados ao mesmo futuro de pobreza dos seus pais e avós; uns na construção civil, outros como mecânicos e outros ainda atrás das grades sem muito que lhes valesse. Apenas iam disfarçando a amarga realidade com sonhos povoados de casas grandes, carros de luxo e muito futebol. 

 
©Alexandre Rodrigues 2012

sexta-feira, 20 de julho de 2012

A Alameda da Memória


Todos os dias desço a Alameda da Memoria. Antes de chegar ao fundo, viro à esquerda. À minha frente o Palácio Dourado onde Ela mora. Dourado metaforicamente falando, claro. O palácio é branco ou rosa sujo, às vezes é castanho claro, da cor dos seus cabelos, ou azul da cor do mar. Abro as largas portas de madeira com a chave do ressentimento, dou-lhe tantas voltas na fechadura como os anos que passaram e fecho a porta atrás de mim com um som de suspiro. Entro para uma vastíssima sala escura, apenas iluminada por uma janela circular por onde incidem raios de luz que iluminam um alto pedestal. No alto desse pedestal estão as minhas lembranças desse tempo, e está Ela também. Ou estava, nos tempos em que a Alameda se chamava Rua do Presente. Um tempo há muito passado (parece que foi ontem, disse-me ela quando me escreveu) quando a rua ainda era pequena e por asfaltar. Agora só estão as memórias e lembranças, algumas cobertas de pó, a maioria coberta de lágrimas. Só eu sei o quanto tentei fechar à chave, ostracizar, partir, demolir esse palácio, e sei também que não consigo deixar passar um dia que seja sem lá voltar.

Quando saio, volto a subir essa Alameda até ao cruzamento com a Estrada da Vida. A Estrada da Vida passa por todos os lugares por onde andei e por onde irei. Por vezes é estreita, lenta e esburacada; noutras é uma imensa Auto-Estrada larga mas monótona. Raras vezes é uma estrada normal, com uma paisagem bonita e curvas e contra-curvas, a montanha de um lado e o mar do outro. Essas só mesmo fora desse mundo que é o meu pensamento.

 

©Alexandre Rodrigues 2012

sexta-feira, 13 de julho de 2012

In Memoriam. Traduçao livre do funeral de Paddy Dignam do livro "Ulysses" de James Joyce




In Memoriam

Martin Cunningham primeiro bateu com a sua cabeça de chapéu de seda na carruagem rangente e, entrando habilmente, sentou-se. Mr Power entrou a seguir, curvando a sua altura com cuidado.
- Venha daí Simon.
-Você primeiro, disse Mr. Bloom.
Mr. Dedalus cobriu-se rapidamente e entrou, dizendo:
-Sim, sim.
-Estamos todos? Martin Cunningham perguntou. Venha daí Bloom.

Mr. Bloom entrou e sentou-se no único lugar livre. Puxou a porta atrás de si e bateu com ela até se fechar apertadamente. Passou o braço pela pega de cabedal e olhou seriamente através da janela da carruagem aberta para as cortinas baixas da avenida. Uma delas foi puxada para o lado: uma senhora idosa espreitando. De nariz escarrapachado na vidraça. Agradecendo às estrelas por ter sido preterida. Extraordinário o interesse das pessoas num cadáver. Contente por ver que nos dávamos a tanto trabalho. Foram feitos para este serviço. Segredos nas esquinas. Passando rapidamente pelas poças em chinelos com medo que ele acordasse. Depois aprontando-se. Colocando-se em posição. Molly e Mrs. Fleming a fazerem a cama. Puxa um pouco para o teu lado. A nossa mortalha. Nunca se sabe quem tocará no seu morto. Lavar e champô. Acredito que também lhes cortam as unhas e cortam o cabelo. Guardam uma mecha dentro de um envelope. Cresce na mesma depois. Um trabalho ingrato. 

Todos esperavam. Nada foi dito. Estavam a guardar as grinaldas, possivelmente. Estou sentado em cima de algo duro. Ah, pois, o sabão no meu bolso das calças. É melhor movê-lo daí. Espera pela oportunidade.
Todos esperavam. Depois ouviram-se à frente as rodas a girar: depois mais perto, os cascos dos cavalos. Um solavanco. A carruagem começou-se a mover, rangendo e balançando. Outros cascos e rodas rangentes avançaram atrás. As cortinas da avenida iam passando e o número nove com a sua aldraba suja, porta entreaberta. A paço. Eles esperaram ainda, movimentando os joelhos, até que viraram e iam passando ao longo da linha do eléctrico. Estrada de Tritonville. Mais rápido. As rodas chocalharam rolando por cima da calçada empedrada, e os vidros malucos sacudiram chocalhando nas suas molduras.

-Por onde é que ele nos leva? Perguntou Mr. Power através das duas janelas.
- Pela Irishtown, disse Martin Cunningham. Ringsend. Brunswick Street.
Mr Dedalus acenou afirmativamente, olhando para fora.
-É uma boa velha tradição, disse ele. Fico contente por ver que ainda não morreu.

Todos observaram por algum tempo através do buraco de suas janelas e os transeuntes levantavam os chapéus. Respeito. A carruagem desviou-se das linhas do eléctrico para se colocar na parte mais suave da estrada depois da Watery Lane. O sr. Bloom ao olhar reparou num jovem ágil, vestido de luto, chapéu largo.

-Vai ali um amigo seu, Dedalus, ele disse.
-Quem é?
-O seu filho e herdeiro.
-Onde está ele? Disse o Sr. Dedalus, estendendo-se a toda a largura. 

A carruagem, passando pelos esgotos a céu aberto e pelos montes que a estrada rasgou antes das casas de aluguer, cambaleou ao contornar a esquina e desviando-se de volta à linha do eléctrico, rolou ruidosamente as rodas tagarelantes. O Sr. Dedalus caiu para trás, dizendo:
- Esse mal-educado do Mulligan estava com ele? O seu fidus Achates?
- Não, disse Mr. Bloom. Ele ia sozinho.
- Ia para baixo com a sua tia Sally, suponho, disse o sr. Dedalus, a facção Goulding, Collis and Ward, o bêbado do caixa e Crissie, o monte de esterco do papá, a sábia criança que conhece o seu próprio pai.
O Sr. Bloom sorriu tristemente na estrada de Ringsend. Irmãos Wallace, a fábrica das garrafas. Ponte titubeante.

Richie Goulding e o saco de leis. Goulding, Collis e Ward, é como ele chama à firma de advogados. As suas piadas estão cada vez mais secas. Era um bom jogador de cartas. Valseando na Stamer Street com Ignacius Gallaher numa manhã de Domingo, os dois chapéus da senhoria agarrados à sua cabeça. Em alvoroço durante toda a noite. Já se começa a ressentir: aquela dor de cabeça dele, temo. A esposa a passar-lhe as costas a ferro. Acha que se cura com comprimidos. Tudo migalhas, é o que eles são. Cerca de seiscentos por cento de lucro. 

- Está com a escumalha, rosnou o Sr. Dedalus. Aquele Mulligan é um maldito rufião de olhar enganoso, sem dúvida alguma. O nome dele cheira mal à distância por toda a Dublin. Mas com a ajuda de Deus e Sua abençoada Mãe eu um dia entrego-me a escrever uma carta à mãe dele, ou tia ou lá o que ela é que lhe abrirá os olhos até ficarem esbugalhados. Acreditem-me vocês, eu desgraço-o. 

Ele gritou por cima do barulho das rodas.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

O Principio do Prazer - A Magritte























O Princípio do Prazer

O Princípio do Prazer começa num olhar,
No nu de uma mulher num armário revelado.
Um seio exposto, um triângulo púbico a vagar
A tormenta dos oceanos, um jóquei embriagado.

O Princípio do Prazer está no chapéu que cai, na invenção colectiva.
Nas luzes nocturnas, o mistério dos cumes é uma evidência eterna
Da condição humana revelada numa maçã, de onde nasce um ídolo.
São as férias num guarda-chuva, a saudade da Terra fraterna.

O Princípio do Prazer está numa surpresa junto ao mar, na chave dos campos.
São ideias acrobáticas, em perfeita harmonia num modelo vermelho.
Está na liberdade do pensamento, nos amantes e na memória de uma viagem.
É a interpretação dos sonhos num pedaço de queijo no final dos tempos.

O Princípio do Prazer não é para ser reproduzido.



©Alexandre Rodrigues 2012