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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Aprender a Reflectir. O Ensino.

No princípio deste ano lectivo, o segundo que lecciono, resolvi inscrever-me no curso de Pós-Graduação em Ensino e Aprendizagem em Educação Superior. É um requerimento obrigatório no Reino Unido para todos os professores universitários que leccionam ou queiram começar a carreira. A medida tem sido um pouco controversa, os detractores alegam que retira liberdade e autonomia aos professores universitários, até agora independentes do poder politico no que respeita aos currículos, ao contrario dos professores dos ensinos básico e secundário, e também porque o ensino universitário é virado para a investigação e não para a pedagogia. No entanto os defensores alegam que este curso permite ao professor abrir novos horizontes sobre o que é ensinar e aprender, duas coisas que facilmente dissociadas mas que estão muito próximas, senão mesmo inseparáveis uma da outra.
Pessoalmente inscrevi-me por duas razões; a de ter uma ferramenta no currículo que me permite dar aulas em qualquer universidade do Reino Unido e também pelo facto de estar a gostar muito de leccionar e ter, de certo modo, encontrado no ensino a minha (talvez verdadeira) vocação. Como qualquer professor recém-chegado ao ensino em qualquer parte do mundo, sou assaltado por receios, dúvidas e os alguns anseios. Apesar de estar habituado a falar em público devido à natureza do meu anterior emprego, fosse em universidades ou em reuniões de negócios com gestores da industria automóvel e/ou o seus fornecedores ou ainda com entidades do sector publico britânico; o facto de ter de enfrentar uma classe de alunos, que vem dos mais diversos “backgrounds” sociais, culturais e de ensino é sempre um desafio difícil de enfrentar e pode ser mais aterrador que o mundo dos negócios.
Neste primeiro módulo (ou cadeira) do curso somos levados a reflectir sobre os nossos receios e ansiedades enquanto docentes, partilhá-los com os colegas de curso e discutir em conjunto possíveis abordagens para o problema. Tudo muito senso-comum, tudo num ambiente muito descontraído e informal, pelo menos nesta fase inicial. Depois, somos convidados a criar um diário das nossas reflexões enquanto professores e partilhar tanto com a classe, mas especialmente com o nosso mentor (um professor mais experiente e que tenha feito o curso) que será como uma espécie de guia nestes três semestres que dura o curso. Nesta fase a reflexão que fazemos é depois analisada e discutida com base em teorias pedagógicas e psicológicas e que irão ao encontro da nossa reflexão (aqui a coisa já’ começa a ser mais séria).
Aprender a reflectir e a partilhar os medos que nos assaltam a todos é um exercício tão ou mais difícil que o de dar aulas, tampouco porque nos obriga a (re) pensar não só as nossas atitudes, mas também nos receptores a quem transmitimos o conhecimento e que não raramente se sentem tão assustados quanto nós. E o que dizer então da partilha? Partilhar receios e ansiedades obriga-nos a expormo-nos aos outros, como se numa catarse. É como se nos despissem em público e nos obrigassem a discursar. E os outros são os nossos colegas de profissão e em alguns casos colegas no mesmo departamento. Num país onde a individualidade de cada um é religiosamente respeitada, isto causa imensos transtornos. Será mesmo assim? Colegas meus que já fizeram o curso testemunham-me que afinal todos temos os mesmos receios, as mesmas ansiedades, sentimos os mesmos problemas. A diferença estará na nossa abordagem dos problemas. No entanto, parecem ter aceitado esta abordagem, como se um peso tivesse saído de dentro  deles.
Afinal o ensino é isto mesmo, é a partilha de conhecimento, de experiências, de afectos, é regar a planta e deixá-la crescer e não apenas ditar ou transferir conhecimento de um sujeito activo a outro passivo. No fundo, é uma viagem por onde levamos alguém e o ensinamos a pensar por si para que esse alguém siga o seu próprio caminho.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A propósito de Caim, o de José Saramago


 
 
Li recentemente “Caim” o último livro de José Saramago. Nesta obra o falecido prémio Nobel utiliza o “condenado” Caim como viajante no espaço e no tempo bíblico, depois de um acordo feito entre este e Deus após o fratricídio de seu irmão Abel. Ao contrário do narrador bíblico, Saramago agracia o anti-herói deste conto, com o dom da crítica; particularmente a da acção do Deus hebreu ao longo da narrativa e que nos transporta por algumas famosas histórias (ou estórias como preferirem) do Velho Testamento. Caim aparece e desaparece dos lugares onde a acção divina decorreu (ou está para decorrer) e dialoga com os vários intervenientes humanos e não-humanos da acção questionando-os sobre a estranha lógica (nunca linear para um Deus que advoga(m) ser o mesmo ontem, hoje e sempre) das suas intervenções, dúbio sentido de justiça, xenofobia e sangrentas execuções e suposta piedade.
  
Aconselho vivamente a leitura deste livro a crentes e não crentes que ainda não o leram. Aos primeiros, porque lhes mostra a narrativa bíblica do ponto de vista critico (certo que Saramago sempre foi um detractor da Bíblia, mas tem de se lhe dar o beneficio da duvida por tentar percebê-la) do condenado Caim, que critica a nem sempre ética (aos seus primitivos olhos) acção de Deus, dos seus mensageiros e dos seus executores. Esta diferente perspectiva lança no ar acutilantes perguntas, muitas vezes genuinamente pueris, mas que na minha modesta opinião fazem muito sentido (lembro-me de eu mesmo as ter colocado aos meus professores de escola dominical). Aos segundos porque talvez confirme as suas convicções (ou a falta delas) e desmascara (por vezes rudemente, acrescentaria) as fragilidades e contradições da milenar narrativa acabando por ser uma leitura divertida e leve.

©Alexandre Rodrigues 2012