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terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Véspera de Ano Novo

 
©Ricardo Silva 2013

Neste dia tempestuoso vagueio pela Serra da Arrábida. A doce Arrábida debaixo de um céu cinzento de muitas chuvas, reflectindo nas suas águas a cor turquesa que a torna tão bela. E atravesso-a, penetrando a humidade saturada, a pensar em ti. Quis telefonar-te, deixar mensagem a desejar um bom ano, muita saúde e todos os chavões e clichés que se trocam por estes dias e que me soam tão vazios. Tão vazios quanto as nossas existências, ano após ano. Mas o que eu queria realmente, de verdade, era encontrar-te. Saciar todos estes anos perdidos, lavados pelas chuvas, esmagados pelas rochas soltas que as falésias da vida foram soltando, e fugir. Fugir contigo debaixo deste temporal. Nunca antes desejei tanto partir, em busca de uma aventura, aquela que tanto queremos, completa, constantemente adiada pela vida e os seus contratempos, que nos livre da rotina para sempre.

   Mas que cobardes somos. Que cobarde sou, que nem consigo ter coragem de te telefonar ou deixar mensagem a desejar-te simplesmente um Bom Ano.


©Alexandre Alves-Rodrgues 2013

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Insomnium

René Magritte. La Faux Miroir. 1928



Há muitos meses que não sonhava. Pensei que tinha perdido completamente a capacidade de sonhar enquanto durmo. Quero dizer, não me lembro de sonhar. Os especialistas dizem que sonhamos todas as noites, mas não nos lembramos. Parece que faz parte do bom funcionamento cerebral. Deito-me a dormir, acordo no dia seguinte e é como se uma esponja preta tivesse sido passada durante o tempo  que repousei. 

Esta noite, no entanto, lembro-me de ter sonhado. Não foi um sonho muito claro, mas envolvia eu ter voltado a um dos meus antigos empregos em Portugal. Já não é a primeira vez que acontece. O último sonho que me lembro também foi do mesmo género, mas com outro emprego. Sei sim que acordei com uma terrível dor no peito, como se tivesse dormido com um peso, daqueles que os agricultores usam para medir arrobas e quintais de batatas, em cima do coração e ao acordar o peito estivesse muito dorido. A primeira coisa que pensei foi: se é para fazer doer mais vale não sonhares. 

Sonhar tem sido um problema doloroso, talvez por isso não me lembro dos sonhos noturnos. O mesmo se tem passado com os sonhos diurnos. Desses tenho a certeza que não tenho. A desilusão da vida e da humanidade e as dores que isso me causa são de tal envergadura que nem me posso dar ao luxo de sonhar. Chego mesmo a achar que sonhar é patético, infantil. Como se fosse acossado de um grande pudor por achar que sonhar é imoral. Penso para comigo, que descaramento tão grande atreveres-te a sonhar, que descaramento embaraçoso alguma vez teres tido sequer o desplante  de ter sonhado. 

Isto anda nestes termos há já alguns anos, de tal modo que o quotidiano se torna difícil, porque a obra assim não nasce, nem deus quer, tudo porque o homem não sonha. E se calhar ainda bem, porque deus tem o mau hábito de querer coisas muito estranhas, que o homem depois sonha e quando a obra nasce já não é nada daquilo que deus queria e muito menos o que o homem sonhou.
Assim sendo e pela primeira vez na minha vida, estou em desacordo com o estimadíssimo Fernando Pessoa, que tanto quanto sei também não sonhava. 


© 2013 Alexandre Alves-Rodrigues