Número total de visualizações de páginas

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Ter esta certeza de morrer do coração.




Tenho a certeza de que quando morrer será do coração. Se não for por falha fatal do músculo bombeador de sangue e oxigénio, será por certo do outro coração, o figurado, o que não se vê, mas sente-se, aquele que verdadeiramente nos mata devagarinho, a começar logo na infância, seja a mãe que ralha com o filho, ou a perda aflitiva de ambos os pais por morte, abandono ou outras razões. Mais tarde na adolescência, quando os primeiros amores entram em erupção e a lava das primeiras paixões escorre, mas para dentro, queimando a alma e deixando nada mais que negra desolação. E depois ao longo da vida de adulto, as dúvidas, incertezas e arrependimentos que nos fazem morrer lenta ou rapidamente, conforme a circunstância e circunspeção de cada um. Este coração, ao contrário do outro, bombeia sentimentos que fluem da cabeça, percorrem todos os órgãos, músculos, veias, tendões, cartilagens e fazem por vezes ranger os ossos com dores e desespero, tão fortes que deixam cicatrizes bem fundas, por vezes incuráveis, e tornam, depois dos estragos provocados pelos vendavais, tornados, erupções, tremores de terra e toda a sorte de analogias que não caberiam aqui mais os detritos, restos de pesadelo, escuma e tudo o que sobra dessas misteriosas manifestações secundárias, à cabeça de onde partiram, provocando os mais estranhos comportamentos, gerando sussurros, ódios, choro, revolta, abandono e por vezes a morte. 


Infelizmente não há médico para curar os defeitos que estoutro coração carrega consigo. E não há ciência que os cure, nem penso, nem compressa. Há, para alguns, temporários analgésicos das mais diversas  formas e feitios, desde as artes, a pintura, a escultura, os escapismos nas suas mais variadas e coloridas formas, a adrenalina, a cocaína, a cafeína ou o velho amigo alcool, há até quem se dedique à escrita, os tolos, em maiores ou menores quantidades, outros ainda procuram a cura na religião, escondendo ódios, rancores e desgostos, numa espécie de véu gorduroso que disfarça as maleitas com piedade ou até uma certa austeridade. Mas estes não passam de meros paliativos. Este é um coração que inevitavelmente adoecerá, ninguém passa incólume, durante a caminhada que é a vida, ao seu tenebroso bombear, ao inevitável embate que um dia, mais cedo ou mais tarde, nos rasgará a inocência e nos atirará ao inevitável abismo. 


Por estas e outras razões tenho a certeza de que quando morrer será do coração.

©Alexandre Alves-Rodrigues 2013

sábado, 18 de maio de 2013

POEMAS VAGABUNDOS E OUTROS CONTOS À VENDA NO REINO UNIDO



Poemas Vagabundos e Outros Contos, o primeiro livro do Homem Só já está à venda no Reino Unido. Para encomendas contactar o autor em almicaro@hotmail.com com a sua morada e código postal. Os livros serão autografados e incluem a oferta de um marcador.



sexta-feira, 17 de maio de 2013

Evanescence




            Esta noite sonhei que sonhava contigo.
No corpo trazias um vestido coberto de incertezas, na cabeça um lenço cheio de dúvidas. Na mão trazias um chapéu de sol que projetava uma pequena sombra. Eras tu essa mesma sombra.

Ao longe uma voz fazia-se ouvir, como o murmúrio de uma cascata a grande distancia,
ou como a rebentação das ondas que se ouvem por entre as copas das árvores numa floresta costeira. O ar estava quente e húmido, caribenho, mesmo antes da tempestade.

E a voz chamava por ti. Tu imóvel, escutavas de olhos fechados e sorrias como se ouvisses música. Eu pressentia nervoso que a voz te atraía para si. Tu imóvel, de olhos fechados, sorrias iluminada por relâmpagos de uma trovoada  silenciosa. E escutavas e escutavas.

 Entraste numa casa de madeira que ardia devagar. Acendeste a luz alaranjada que refletia tremeluzente as chamas por uma ampla janela. E vi-te despir as incertezas e as dúvidas ao por-do-sol. E a voz calou-se. O ar continuava quente e húmido e o céu  saturava-se de nuvens espessas. Penteavas os cabelos, escovando o que restava de mim em ti. Pó. Um pó que caía cintilante no chão e que o movimento do ar quente levava para longe, como uma velha recordação antiga e perdida no tempo.

Ainda nua colocaste duas flores de laranjeira, uma no coração, outra no flanco.  O cheiro invadiu o meu sonho e ouvia-se um saxofone tocando blues à distância, encurralando os sons da noite que se dissipavam, espessos por entre as notas.

Voltaste a sair da casa que se desmoronava lentamente, consumida pelas chamas e pela tristeza, e dançavas. Dançavas nua, apenas coberta pelo luar reflectido nas nuvens, como se estivesses submersa num imenso oceano. E dançavas devagar por entre as sombras.

E vi-te desvanecer como um fantasma,
E vi-te desvanecer como um fantasma,
E vi-te desvanecer como um fantasma...



©Alexandre Rodrigues 2013