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quarta-feira, 28 de maio de 2014

Na praia deserta da minha solidão deste à costa

Encore. ©Ricardo Silva.


Na praia deserta da minha solidão deste à costa.
Da nau dos desencontros naufragaste
E é na beira-mar desta saudade extraviada
Dos perdidos que não retornam
Que jaz teu corpo inerte e sereno.

Trazes no flanco sinais que o destino não apagou
E nas mãos a memória de um rosto antigo,
Que se escapa como areia ainda brilhante e cheia de luz
Por entre os espaços de um tempo deixado em vazio.

Os teus olhos são uma arma de amor
Que fere de morte quem se ousa atravessar
Entre ti e o teu destino velado,
Deslumbrando à passagem, a tua beleza serena.

Na sombra fresca das palmeiras anseias por tornar
Ao porto que nunca te viu sair,
Mas sabes que partiste para nunca mais regressar.

E eu afogado dos desesperos e das incertezas,
Há mil anos sem retorno, neste mar de desolados, exilado das marés,
Baloiço impotente ao sabor das ondas que me trouxeram a esse espraiar.  


©Alexandre Alves-Rodrigues 2014

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Um cheiro a sabonete fresco de flores





Um cheiro a sabonete fresco de flores
Que ainda me povoa a memória
O sorriso de miúda cheia de graciosidade
Que ainda hoje me comove inteiro
Era de ti que emanava.

O andar cheio de insegurança
Que me cativava tanto
Saltitava titubeante,
Num rosto sardento e trigueiro
Era de ti que debandava.

Dos verões de alegria vestias
Sabores de frescura e maresia
Conchas brancas e saias de cores
Nos olhos trazias um Sol perene
Que de ti ofuscante luzia.

E era nas praias que te encontrava
Trazida pelas marés da imaginação
Sem saber que ninguém te pertencia
E encontrava-te por toda a parte
E em toda a parte sentia que te perdia.


©Alexandre Alves-Rodrigues 2014

sábado, 17 de maio de 2014

Crónica de um Citroen AX





O meu primeiro carro foi um Citroen. Um Citroen AX 11 TRE. Um pedaço de aço finíssimo com entranhas de plástico barato, leve como uma pluma e um volante mono-braço.
Antes de tirar a carta de condução era o carro que eu mais desdenhava. Eu e o meu amigo Nuno. Passávamos tardes a falar de automóveis e a conversa declinava irremediavelmente para os Citroen AX. De como eram maus, de tal modo leves que a lenda urbana corrente era que se travássemos com demasiada forca, o carro dava uma cambalhota sobre si próprio. E ter um acidente num era uma sentença de morte certa. 

Provavelmente não andaríamos longe da verdade em relação aos acidentes, até ao dia em que, aos dezanove ou vinte anos de idade, o meu pai veio perguntar-me se eu queria comprar o Citroen AX do meu tio António. Por trezentos contos. Ao fim de alguma ponderação eu disse que sim. Afinal o carro tinha poucos quilómetros, estava muito bem estimado e eu, sequioso de conduzir e o meu pai desejoso que eu não lhe pedisse o carro emprestado, cedi. 

Como quase todos os primeiros carros de toda a gente este também tinha as suas particularidades. Por exemplo, as manobras que tínhamos de fazer para caberem cinco pessoas lá dentro. Umas das singularidades era que não podia levar gente muito pesada atrás porque inevitavelmente a suspensão macia típica dos carros desta marca fazia as palas de plástico dos guarda-lamas traseiros raspar pelo alcatrão e fazendo uma barulheira infernal nas lombas da Estrada da Rasca que nos levava à Serra da Arrábida, acabando inevitavelmente o dia ou a noite no Portinho da Arrábida, mais concretamente no Bar da Mafalda a beber imperiais geladas e a jogar Snooker. Por decoro não vou revelar o nome das pessoas que se sentavam à frente comigo no banco do pendura. E só me falhou uma vez numa das crónicas cheias de Inverno da cidade de Setúbal onde vivia. Dia de chuva torrencial e a Estrada dos Ciprestes alagada a caminho do trabalho. Ao sair de um semáforo, o carro começou a engasgar-se e passados alguns metros o motor desistiu. Bobina de ignição molhada. Nada de grave, apenas uma questão de secagem e pronto, mas eu apanhei uma molha valente com direito a pés alagados e tudo. Depois mais tarde começou a sobreaquecer, especialmente no Verão. Levei-o ao meu vizinho Arménio, um verdadeiro artista da mecânica, e digo isto no melhor sentido do termo, que me descobriu um termostato em estado terminal, prontamente ectomizado deixando livre curso ao líquido de arrefecimento fluir dentro do motor. Teve como única desvantagem o facto de o carro levar mais tempo a atingir a temperatura ótima de funcionamento, salvando assim o motor de incinerar a junta da cabeça. Um verdadeiro cirurgião automóvel, o meu vizinho Arménio.

E foi nesse Citroen AX que aprendi a viajar pelo meu país e a apreciar melhor as suas belezas naturais e a paisagem humanizada, que diga-se em abono da verdade, em algumas localidades é das mais belas que já vi. A minha natureza solitária já incipiente desenvolveu-se de certo modo nesta altura, em que a liberdade de viajar sozinho me possibilitava, quando os loucos das nossas estradas o permitiam, dar livre curso ao pensamento. Livre não será bem a palavra certa, porque nessa época o meu pensamento ainda era algo constrangido pela influência religiosa, mas o “trade-off” dessa minha existência foram as verdadeiras amizades que fiz nesse tempo e que ainda hoje perduram. Foi também nessa altura que me dediquei à fotografia. Comprei uma máquina de rolo totalmente manual para ir aprendendo os segredos do domínio da luz dentro daquela camara escura. Algo que nunca consegui totalmente, mas também não me saí mal de todo. Dediquei-me aos automóveis.

                Saboreei nesta altura, pela primeira vez, o amargo sabor das responsabilidades; pagar um carro todos os meses, um seguro todos os anos, as manutenções e todas as dores de cabeça que um automóvel causa aos seus donos. Mas uma coisa é certa, nunca o Citroen AX numa travagem brusca deu uma cambalhota sobre si mesmo.

© 2014 Alexandre Alves-Rodrigues.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Nunca me ocorreu que pudesses ter medo de amar



Nunca me ocorreu que pudesses ter medo de amar
Um amor assim tão descompassado.
E ver num rosto as marcas de uma certa tristeza,
Carregado com morosidade,
Dos escombros de tão longa incerteza.

Nunca me ocorreu se o teu amor sequer existia
Num tempo verbal inadequado,
Ou no vazio triste de um fim de dia. 

Cruzei o teu caminho, decerto no tempo errado,
E apenas sou culpado por ter,
Do teu cheiro as flores frescas, me embriagado.

Nunca me ocorreu que os dias são de lonjura
E longos os rios que levam água à saudade,
De um substantivo feminino desacertado,
Nos teus olhos tão cheios de ternura.

Nunca me ocorreu que não que não me tenhas procurado,
Se porventura não havia sincronia.
Nem que o teu olhar cansado fosse de tanto chorar.
Tanto e tão pouco ficou por dizer,
Apenas e só por teres medo de me amar um dia.

© Alexandre Alves-Rodrigues 2014