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quarta-feira, 15 de abril de 2015

O AFOGADO


Muito, mas mesmo muito humilde homenagem ao mestre García Marquez.



 
Theodore Gericault. Cabeça de Afogado, 1819


Aquele mar transido de infortúnios e loucura tinha lançado à costa daquela ilha desterrada, mais um náufrago. Vinha coberto de algas e tinha na pele esbranquiçada uma crosta grossa de cracas que eram atapetadas aqui e ali por ouriços e estrelas-do-mar. Numa das orelhas, um caranguejo eremita velho e caduco, que a confundira com uma casca de gastrópode abandonada e ali fizera habitação. O náufrago tinha o semblante triste dos melancólicos e no entanto continuava vivo, pois quando lhe abriram os olhos estes refletiram o fundo do mar e tudo aquilo que vislumbrara.

Fora descoberto no areal por sete pescadores tão loucos como valentes que se preparavam para enfrentar um mar inóspito na esperança de trazer algo que comer; a fome dolorosa era o veículo da sua insensatez. Disfarçando medo com coragem, iam confundindo assim os outros habitantes daquele porto, um aglomerado de casas abarracadas construídas com os despojos que o mar vomitava junto ao areal branco.

O náufrago, por ter os olhos vivos, foi levado pelos pescadores para uma das casas, onde toda a aldeia se reuniu com espanto e curiosidade pois nunca tinham visto nada semelhante. Parecia ter estado no fundo do mar muitos anos, a julgar pela quantidade de crostas, mas debaixo daquela fauna e flora estava intacto. E vivo. Quando acordou, olhou em volta e viu que a aldeia inteira se arrepiou, exclamando um ah em uníssono, contraindo-se e baloiçando como se fossem anémonas assustadas ao sabor da ondulação submarina. Quem era aquela gente e o que estava ele ali a fazer? A última coisa de que se lembrava era a cidade submersa onde os afogados viviam e onde ele fora parar depois de se ter despenhado de uma falésia antiga por causa de desamores. Na cidade submersa os mortos tentavam continuar o que deixaram inacabado em terra, mas desesperavam porque lhes faltavam as mulheres amadas, as amantes, os filhos bastardos órfãos, os negócios ruinosos ou os infortúnios da vida, enterrados no fundo de um quintal. 

Quando a aldeia se assegurou que estava mesmo vivo, limparam-lhe as algas, as cracas, os ouriços e as estrelas-do-mar, cozinharam-nas como puderam e fizeram uma festa em honra daquele estranho que lhes trouxera alimento e o milagre de estar vivo depois de tantos anos afogado. Os homens abraçaram-no e as mulheres beijaram aquele belo estranho que no entanto, depois da festa, foi de novo atirado ao mar com sete pedras amarradas ao pescoço e aos pés. Tudo por crendice dos velhos da aldeia que não queriam mortos a andar no meio da sua aldeia, assustando as crianças e despertando nas mulheres estranhos humores. Até porque nos dias em que pernoitou naquele fim-de-mundo de gente louca e desesperada, a Lua tingira-se de vermelho.

© Alexandre Alves-Rodrigues 2015