"The
bureaucracy is expanding to meet the needs of the expanding bureaucracy.”
~ Oscar Wilde.
O
burocrata é um dos filhos bastardos da política. Visto ter sido parido à força,
foi adotado pelo Estado que o aperfilhou e tornou-o no seu mastim. Animal monstruoso,
sem voz, nem vontade, e muito menos opinião, o burocrata tem olhos em todo o
lado, mas é completamente cego, tem muitas mãos, mas estão de tal modo atadas
por imposição primeira das hierarquias, e segunda porque não tem
vontade-própria, logo não tem vontade de as desatar, estas servem para muito
pouco e estão limitadas no seu movimento por portarias e decretos-lei. As pernas
estão agrafadas a uma cadeira de onde não pode sair. Tem a cor de todos os tons
de cinzento, fazendo dele muito difícil de o distinguir dos outros burocratas.
O burocrata alimenta-se de papelada, de preferência assinada e carimbada, de
dados, muitos dados e de políticas absurdas. Revolve-se como um cerdo na tinta
das inúmeras canetas e carimbos de onde emite execuções absurdas. O burocrata
não tem espinha dorsal e apesar dos muitos pés e muitas mãos, quando se desloca,
rasteja como um verme deixando atrás de sim um rasto de pestilência e traição
que fede à distância. O burocrata usa uma máscara de tolerância e benignidade,
mas a sua verdadeira face é a do terror, a do terror sem face. Tem a mesquinhez
avara dos tristes que não suportam a alegria dos outros, e tudo fazem para que
os outros se sintam tão miseráveis quanto eles. Esse é o Santo Graal do
burocrata. Existem várias hierarquias de burocratas, a saber: o júnior
burocrata, essa criatura de preferência nova, inútil noutros ramos da vida, ou
porque não teve outra escolha, que decide juntar-se ao exército de
cegos-surdos-mudos que são os burocratas. O júnior burocrata tem de se ser
moldado. Primeiro retira-se-lhe a vontade. A vontade de servir o próximo e a
causa pública, o isco usado pelos burocratas para recrutar outros burocratas.
Depois, a vontade de vencer por mérito próprio e finalmente retira-se-lhe a
espinha e coloca-se-lhe na mão a adaga com que no futuro irá apunhalar nas
costas os outros burocratas. Só assim o burocrata sobe na cadeia hierárquica. Depois
existe o burocrata sénior. O burocrata sénior já mostrou aos seus superiores
hierárquicos a sua fidelidade ao sistema burocrático, através do bom uso da
adaga e claro dos serviços prestados, não em prol do bem público, mas em prol da
instituição burocrática onde está inserido e mais importante ainda, em seu
proveito próprio. O burocrata sénior é recompensado com pequenas equipas de
burocratas juniores, pois só os primeiros, ainda frescos da sua promoção, podem
ser o melhor exemplo para os segundos. Finalmente, o chefe-burocrata é o
burocrata que já faz parte da mobília burocrática e é ele, através da sua larga
experiencia em inventar processos desnecessariamente complexos e burocráticos, que
justifica a expansão da burocracia e consequente contratação de mais burocratas
para os serviços burocráticos que dirige. Dentro deste grupo, claro, existem
burocratas-chefes que apenas se dedicam a fazer cumprir a disciplina a todos os
outros burocratas, e outros ainda que se dedicam apenas a vigiar os burocratas
inferiores. Outros ainda dedicam-se a pequenas tarefas que foram criadas
através de processos burocráticos extremamente complicados e desnecessários, apenas
para justificar a sua existência burocrática, a existência de pequenos
tiranetes-burocratas que são donos destes exíguos reinos sinistros onde pilhas
de papelada supérflua se acumula que depois é servida como alimento ao exército
de burocratas, fazendo assim prosperar estes mesmos feudozinhos. Estes reinados
do chefe-burocrata substituíram a adaga do burocrata júnior e sénior em caso de
necessidade. Escusado será dizer que é sempre necessário porque a ameaça do
inimigo interno, os outros burocratas, está sempre à espreita e é muito importante
para o burocrata nunca baixar a guarda.
Dentro
do exército de burocratas que sobem na escada hierárquica, existe também um que
se move horizontalmente: o burocrata-sindicalista. O burocrata-sindicalista é
um burocrata abnegado e tem menos direitos que os outros burocratas. Não tem o
direito de trabalhar tanto nem tantas horas como os outros burocratas, não tem
o direito de chegar tão cedo ao trabalho como os outros burocratas, nem o
direito de sair tão tarde quando todos os outros burocratas finalmente rastejam
das suas secretárias para os seus buracos escuros onde ainda aí continuam as
congeminações e traições para apunhalar nas costas os outros burocratas. Não, o
abnegado burocrata-sindicalista zela pelos interesses primeiros do seu posto de
burocrata-sindicalista, depois os do seu sindicato e finalmente, os dos outros
burocratas, até porque convém ao burocrata-sindicalista mostrar algum poder aos
seus pares. Esta é a segunda arma do burocrata-sindicalista. O
burocrata-sindicalista trabalha de um modo muito peculiar, a saber: com as mãos
nos bolsos do casaco de hipocrisia que nunca despe, porque a qualquer altura do
dia de trabalho pode ser chamado pelo sindicato para uma reunião burocrática
acerca dos interesses burocráticos do sindicato. O trabalho burocrático, a
ascensão na carreira burocrática e os supostos direitos dos outros burocratas mais
as suas intermináveis minorias e grupelhos de interesse são sempre acordados
entre os chefes-burocratas, os burocratas-sindicalistas e os
burocratas-séniores, por esta ordem, em reuniões burocráticas intermináveis mas
de agenda previamente acordada numa burocrática reunião anterior, resultado de
uma outra reunião anterior a esta onde foram escolhidos os representantes das
várias hierarquias de burocratas que irão definir a agenda das reuniões
subsequentes sobre a evolução dos processos burocráticos futuros e o futuro dos
burocratas. No regime burocrático é muito importante ter muitas reuniões ao
longo do dia para de um modo complementar ao da burocracia, justificar a
existência do burocrata. Essas reuniões servem para preparar outras reuniões e
assim por diante. O burocrata é como um cão que persegue a sua cauda interminavelmente,
com a diferença que o cão cansa-se e o burocrata alimenta-se deste exercício
inútil que só serve para fortalecer a missão do burocrata.
Finalmente
o tecnocrata. O tecnocrata é um alto-burocrata, que tanto pode ter subido na
carreira à força de muito apunhalar outros burocratas nas costas, ou através de
relações incestuosas com a sua mãe, a política, que é no fundo a mesma coisa e
com os mesmos métodos, apenas o cheiro é diferente. É da responsabilidade do
tecnocrata lamber as botas ao politico-ministro e quando este defeca as suas
ideias de jerico na cabeça do tecnocrata, este transformá-las-á com a ajuda
subordinada dos chefes-burocratas em processos burocráticos complexos e
inexequíveis pelos outros burocratas, que se contorcem e guincham como
baratas-tontas, especialmente o burocrata-sindicalista, quando tem de começar o
processo burocrático todo de novo, algo que acontece frequentemente ao longo de
um ano ou quando há mudanças de cadeiras na politica. É nestas alturas de
mudança burocrática que as taxas de apunhalamento nas costas mais sobe,
juntamente com os golpes palacianos. Mas esta fase dura pouco tempo, porque
como já se afirmou o burocrata não opina, nem discute ordens, apenas as cumpre.
Quanto ao burocrata-sindicalista é-lhe oferecido um direito-adquirido
impossível de gerir, a não ser por um complicadíssimo processo burocrático para
que a sua existência também se continue a justificar. Só deste modo o
tecnocrata pode justificar a sua existência e o seu poder, que é um feudo maior
mas sempre subjugado ao feudo do político-ministro, a não ser que este caia em
desgraça no meio dos seus pares ao ser apunhalado nas costas e o tecnocrata
tome o seu lugar. Mas isso é outra
história.
Bureaucracy
— the giant power wielded by pygmies.”
~ Honoré de
Balzac
©Alexandre
Alves-Rodrigues 2014
Sem comentários:
Enviar um comentário
Comentadores de bancada