Kyrie Eleyson, Christe
Eleyson. Senhor tem misericórdia de mim, pobre pecador que aqui vou relatar
a minha fraqueza carnal, durante a missa à tua pessoa, quando do coral de negro
vestido, aquela formosa mulher sobressaiu e eu vil mortal, da penumbra da minha
cadeira a contemplei durante todo o serviço. Kyrie Eleyson, tu que és denunciador, carcereiro juiz e carrasco da
tua própria lei, tem misericórdia de mim, pelo menos enquanto as sopranos
principais se esgrimem em boquinhas irritantes ignorando-se uma à outra, ou
pelo menos assim parece, no Christe
Eleyson.
Gloria in Excelsis
deo. Dei com ela por acaso enquanto cantava, a voz diluída nas vozes das
outras sopranos e entrelaçada nas outras vozes do coro. Tinha uma espécie de
nobreza de carácter mas sem a altivez típica. Glória a deus nas alturas por tão
formosa mulher - os meus olhos agora fixos nela - estava entre uma senhora mais
velha, de cabelos brancos, e uma menina talvez adolescente, e era de uma beleza
serena et in terra pax , que ressuscitava quando cantava numa sensualidade
de sombra de olhos e carmim de lábios restringida por tão santo local e
ocasião.
Laudamos te, por
um lado porque agora deste descanso a tão formosa criatura, no meio de tão
corpulentas sopranos. A face em descanso sem a expressividade necessária para
te louvar. Não te laudamos por outro,
porque não gosto da segundo soprano principal. Porque é que essa carinha
irritante de lábios fininhos e loiro pintado foi escolhida em vez da minha
musa, enquanto a soprano principal, mais nova de aparência, sentada, hirta
(estúpida), com cara de frete, fazem sempre cara de frete quando não é a vez
delas cantar, de lábios engelhados a pensar; eu canto melhor que tu sua parva
de cabelo loiro pintado e lábios fininhos com uma papada a crescer-te debaixo
do queixo.
Gratias agimus tibi porque as duas idiotas estão ambas sentadas, as duas com ares de
frete, a entreolhar-se pelo canto do olho, eu sei o que pensas de mim, achas-te
melhor passarinho que eu, pois sim. E eu meio enfadado, agradecendo a todos os
santinhos por aquele anjo vestido de negro que me veio iluminar o serão de
outro modo monótono. Eu aqui a ouvir missa. Mas ah, que caracóis aqueles, dois
ou três libertos do resto do cabelo apanhado, em equilíbrio nos ombros finos de
porcelana. Graças, graças por tão formosa figura. Por ela sacrificaria de bom
grado a minha incredulidade.
Domine Deus
que agora temos dueto! Pronto, levantou-se o primeiro tenor de ar simpático que
se interpõe entre as duas sopranos principais nos ensaios, aposto que assim:
senhoras então? Respeitemos a música! Flauta transversal no fundo a dar uma
atmosfera bucólica de naturezas mortas, vinhas e sol de Verão italiano.
Lembra-me um famoso compositor de obras fáceis
mais o seu bandolim amestrado.
Qui tollis peccata mundi, afasta de mim estes pensamentos; como a queria beijar agora, saltar
da cadeira, empurrar o maestro nervosinho, talvez uma biqueirada no primeiro
violinista que se levantaria bruscamente a esfregar o traseiro escandalizado, e
o tenor; senhores, então? Respeitemos a música! E ela sem saber o que a
esperava, entreolhava a senhora mais velha e a menina adolescente, e quando menos
esperasse pregava-lhe um beijo que a faria corar de surpresa, vergonha e
prazer, tudo ao mesmo tempo; agarrar-lhe-ia na mão e rapta-la-ia num sorriso de
sátiro entre surpreendido e o maroto e com requintes de “malvadez”.
Qui sedes ad dexteram Patri. Eu não estou nada sentado à direita do meu pai, que nem é para aqui
chamado. Ena, no programa diz contralto e eu estou a ver um contra-tenor magrinho
a levantar-se do lado da segunda soprano e cantar com voz de senhora (falsete),
falsete!? Cheio de mesuras e choradinhos quando as sopranos lhe gritam censuras
com entoação de cristal quebrado durante os ensaios.
Quoniam tu solus sanctus. Um homem de
voz de homem, não aquele loirinho de voz esganiçada; juro que se fechasse os
olhos diria que era uma mulher a cantar. Corno da caccia obbligato. Bate
certo, um corno de caça, um baixo barbudo com ar de corno, o corno
tocado por uma gorda senhora de óculos, muito vermelha a tocar baixinho, aposto
que casada com o corno, o de barbas, não o de voltas e revoltas de latão, ora
pois. A minha santa, enquanto os cornudos se digladiavam apanhou o cabelo com
uma mola, de tal modo que o cabelo lhe deixava entrever uns brincos negros
brilhantes de obsidiana, e o pescoço, gloria in excelsis, agora sim, de
mármores de Carrara que eu beijaria eternamente num arrepio infinito de
pele-de-galinha.
Cum Sanctu Spiritu que glória divinal, aquela boca voltou a mexer-se, os seios trementes
enquanto os ohohohoho’s do in Gloria Divinal são exalados em ritmo
frenético, atirando-me para um transe ora suado ora acordado, incrédulo de
tamanha capacidade torácica potenciada pela secção de metais, acicatados por
sua vez pelo órgão distante mas presente, fazendo vibrar paredes e entranhas enquanto
os arcos das cordas se movem para cima e para baixo e em diferentes ângulos,
atirando-me ora para picos de cumes nuca antes escalados, ora para abismos
secretos negados pelo decoro da solenidade.
Credo! Estou
que nem posso, como se no meio de um delicioso pesadelo do qual por um lado não
quero acordar, mas por outro me embaraça se não abrir os olhos e descobrir que
afinal estou deitado em minha cama, ouvindo os ecos distantes de lás mixolidios
de uma música ancestral tantas vezes ouvida, a ressoar dentro do cérebro como
se de uma coceira mental se tratasse.
Patrem Omnipotentem factórem cæli et terræ, visibílium
ómnium et invisibílium, que também
fabricou esta deusa menor, de beleza inigualável, de caracóis suspensos, boca
de carmim, seios vibrantes e coxas que se adivinham formosas e tenras. E
criou-me a mim, criatura imerecedora de tal graça e formosura, viajante
clandestino das fantasias profanas em território sacro. Oh alegria dos sentidos
e infortúnio de vida! Estou tão Saturnal que nem posso!
Et in unum Dominum, que não cala estas duas agora, contralto com ar e voz de senhora
madura, de cara redonda a contracenar com a hirta (estúpida) com carinhas de
frete quando não está a cantar, a repetir qual macaco as deixas da contralto,
como se a imitasse mas em voz mais nova e límpida, de lábios engelhados a pensar; eu canto
melhor que tu sua parva. O meu anjo, tão solene, tão pura e meiga assim quieta,
o corpo agora sossegado mas não saciado, mesmo depois de cavalgar ohohohs e
ahahahahs.
Et Incarnatus est. A sombria melodia toma forma de um andante majestoso, como um
príncipe que se passeia de arminho e rubro por entre os corredores desta nave,
de ceptro e orbe nas mãos e coroa na cabeça com a bela do coro ao lado; a minha
nobre rainha, voz de cristal puro, mãos de veludo delicadas como filigrana,
frágeis como porcelana fina.
Crucifixus, assim
me sinto eu no meio desta multidão que, por ora já se deu conta da minha agitação
e inquietude, chamam Pilatos para me julgar por assédio forjado em pensamento à
linda soprano, de negro vestido,
caracóis em equilíbrio nos ombros finos de porcelana e lábios de cereja.
Et resurrexit
Assim seria eu, príncipe do teu reino, da tua paixão feito homem, nasceria de
novo por entre as tuas coxas de alabastro e ascenderia aos céus em glória aclamado
por Euterpe, Melpomene e Polímnia. Oh quão venturoso seria. E de novo voltaria para
julgar todos aqueles que duvidaram desse amor por um segundo que fosse.
Et in Spiritum
o baixo agora canta, nos seus graves de baixo barbudo com ar de corno mas com
voz melíflua, as virtudes da trindade e da igreja universal, e eu para aqui em
inquietudes de vestidos negros e brincos de obsidiana, ombros de porcelana e
mãos de filigrana, a tremer e a suar enquanto umas bochechas vermelhas sopram
oboés.
Confiteor
que sou fraco e facilmente excitável, mas perante uma beleza feminina como
esta, de voz de anjo e olhos de sombras sensuais como que a chamar-me para o
seu regaço, qual Ligeia a enfeitiçar Odisseu, no entanto preferia atirar-me mil
vezes aos rochedos de Capri que tapar os ouvidos e ainda menos os olhos e
ignorar esta Afrodite. Confesso-me mas não me arrependo. Não me receitem
liturgias nem rosários, o meu pecado, a existir, só tem como cura aquela
soprano de olhos de obsidiana, lábios de porcelana e seios de cristal.
Et expecto ressurgir
desta mortandade em que me encontro para a vinda de um mundo futuro ao lado da
minha princesa, com corais a cantar atrás de nós em procissão e orquestras
monumentais a tocar missas cantadas e modinhas brasileiras.
Sanctus. Só
um santo mesmo para aguentar esta tormenta, este sonho, pesadelo, este suor.
Queria sair daqui mas não consigo, estou colado ao assento, agora sem me
conseguir mexer. Este carnaval de vozes, instrumentos, o órgão, o maestro
nervosinho, as duas sopranos sentadas, o contra-tenor de voz de falsete e
mesuras, o corno do baixo todos em redor de mim com ar de troça, de escárnio
como se fossem todos um Dominus Deus Sabaoth.
Hosanna in Exclesis por tão grande perfeição, de corpo, de voz, de rosto. Concebida por
anjos, lavrada por mãos santas em útero da mais fina renda, amamentada por
Afrodite com o mais fresco orvalho matinal, sedutora velada, Erato instrutora
dos amantes, ensina-me a ser desejado por ti.
Benedictus por
ter o privilégio, mesmo que à distância, de te poder contemplar minha deusa,
minha nereida das águas calmas, minha
Agnus Dei só
tu com o teu poder me libertas desta condição de indigno de ti e da voz
mesureira deste contra-tenor magrinho e choradeiro, minha ovelha, formosa na
forma e na aparência. Sucumbo ao poder da tua beleza, magnética e irresistível.
Dona Nobis Pacem. Chove lá fora.
© Alexandre Rodrigues 2012
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