Número total de visualizações de páginas

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O pó, esse mistério.



Hoje quero reflectir sobre o pó. Esse estranho e misterioso fenómeno ao qual tem sido dada interminável peleja pelo ser humano, armado de panos, aerossóis e ubíquos aspiradores, quais tanques de guerra nessa irritante tarefa de eliminar não uma raça, mas todo e qualquer rasto do dito fenómeno acumulativo em móveis, electrodomésticos e lâmpadas. Confesso aqui neste humilde e desajeitado repositório, uma das minhas secretas obsessões: o pó. Não que coleccione em frasquinhos amostras de diferentes casas, países ou outros artefactos onde este se acumula, mas porque sou daquelas pessoas às quais o pó, em excesso, lhe causa muita aflição visual, não na forma alérgica mas na puramente estética. 

No entanto tenho de prestar homenagem à minha mãe e à minha irmã por me terem mostrado como se limpa o pó como deve de ser, diga-se em abono da verdade sem grandes resultados práticos e duradouros da minha parte. Mas também ao povo suíço por me terem dado o privilégio de conhecer locais públicos sem pó. Nunca me lembro de ter passado por um aeroporto, e refiro-me ao de Genebra, onde se pode lamber o chão da casa de banho sem temor de apanhar uma qualquer onicomicose na unha, esporotricose, cromomicose ou outra micose profunda na língua e onde o pó é quase (porque ninguém é perfeito, nem mesmo os suíços) inexistente.

O pó é um fenómeno de tal modo difícil de compreender e ainda de mais explicar, que no universo da banda-desenhada (quadrinhos para os meus leitores brasileiros) e da animação, não me lembro de nenhum, nem mesmo do magistral Miasaki, onde o pó figurasse. Não me refiro pois às nuvens de pó causadas por veículos em andamento ou mesmo às cómicas explosões das quais o vilão é alvo, e de onde sai coberto de fuligem e com alguns dentes a menos mas prontamente recuperado e mais importante, vivo para poder a continuar os seus actos de vilanagem, como só nesse mundo é possível. Refiro-me sim às individuais partículas de pó que se acumulam nos móveis e outras superfícies mais ou menos planas. Esse pó, tormento das donas de casa, da decadência doméstica, e do desprezo que se aglomera em camadas diárias na solidão dos quartos, salas bibliotecas e museus. 

E no entanto viemos do pó. Não me refiro ao pó bíblico, imperfeito, terrestre, sujo e lamacento de onde o homem inventou a olaria e os mitos genésicos, mas sim ao pó primordial, cósmico e magistral, causa primeira do universo e infinitamente mais sublime que se recicla ilimitadamente quando galáxias, estrelas e outros corpos celestes colidem uns com os outros originando novas galáxias, estrelas, planetas e de vez em quando seres vivos e ainda mais raramente, seres inteligentes. Nós humanos somos o resultado desse pó reciclado e reciclável; já fomos galáxia, estrela e meteorito. Hoje somos humanos, no futuro longínquo seremos qualquer outra coisa até que a insuportável dispersão do momento inicial do universo pare e este colapse. 

Felizmente para a ciência o começo primeiro do pó não foi descoberto por astrofísicos portugueses (até porque raros). Isto porque se os nefandos estudiosos lusitanos tivessem usado do mesmo tipo de onomatopeia que os verdadeiros descobridores do fenómeno usaram na sua anglo-saxónica língua muito dada a onomatopaicas descrições, o fenómeno seria não mais que um escatológico som, resultado da vibração das nalgas de um qualquer deus: o Grande-Pum. Ainda bem que não fomos nós que descobrimos o tal de Big-Bang. Até porque não conseguiríamos viver com a vergonha e muito menos com a responsabilidade (coisa que não gostamos de arcar, de qualquer maneira). Nas línguas anglo-saxónicas a onomatopeia “bang” serve também de substantivo e descreve uma explosão: I've heard a loud bang. Em português a onomatopeia correspondente é “pum”. A pistola fez pum! E pum é também o nome dado à já descrita necessidade fisiológica de libertar gases intestinais. Decididamente teríamos de inventar outro nome mais digno, mesmo que menos criativo, por outro lado reduziria a grandiosidade e por vezes distanciada intelectualidade de tal fenómeno a um popularucho (e bem português) traque. 

Mas voltando ao pó, como vêm poder-se-á concluir que este negligenciado fenómeno natural é de suprema importância universal. Ele é transversal a todas as sociedades, culturas e religiões (com direito a fenómeno sobrenatural e tudo) e é inerente do próprio universo. Como tal daqui lhe presto esta singela e respeitosa homenagem. E como tenho imenso respeito por ti, pó, senhor do Universo, grande reciclador e reciclado, vencedor de todas as batalhas que à tua nobre pessoa estes abjectos humanos fazem, passarei a limpar-te menos vezes de cima da cómoda ou do móvel da televisão.

©Alexandre Rodrigues 2012

Sem comentários:

Enviar um comentário

Comentadores de bancada