Hoje quero reflectir sobre o pó. Esse estranho e misterioso
fenómeno ao qual tem sido dada interminável peleja pelo ser humano, armado de
panos, aerossóis e ubíquos aspiradores, quais tanques de guerra nessa irritante
tarefa de eliminar não uma raça, mas todo e qualquer rasto do dito fenómeno
acumulativo em móveis, electrodomésticos e lâmpadas. Confesso aqui neste
humilde e desajeitado repositório, uma das minhas secretas obsessões: o pó. Não
que coleccione em frasquinhos amostras de diferentes casas, países ou outros
artefactos onde este se acumula, mas porque sou daquelas pessoas às quais o pó,
em excesso, lhe causa muita aflição visual, não na forma alérgica mas na
puramente estética.
No entanto tenho de prestar homenagem à minha mãe e à minha irmã
por me terem mostrado como se limpa o pó como deve de ser, diga-se em abono da
verdade sem grandes resultados práticos e duradouros da minha parte. Mas também
ao povo suíço por me terem dado o privilégio de conhecer locais públicos sem
pó. Nunca me lembro de ter passado por um aeroporto, e refiro-me ao de Genebra,
onde se pode lamber o chão da casa de banho sem temor de apanhar uma qualquer onicomicose
na unha, esporotricose, cromomicose ou outra micose profunda na língua e onde o
pó é quase (porque ninguém é perfeito, nem mesmo os suíços) inexistente.
O pó é um fenómeno de tal modo difícil de compreender e
ainda de mais explicar, que no universo da banda-desenhada (quadrinhos para os
meus leitores brasileiros) e da animação, não me lembro de nenhum, nem mesmo do
magistral Miasaki, onde o pó figurasse. Não me refiro pois às nuvens de pó
causadas por veículos em andamento ou mesmo às cómicas explosões das quais o
vilão é alvo, e de onde sai coberto de fuligem e com alguns dentes a menos mas
prontamente recuperado e mais importante, vivo para poder a continuar os seus
actos de vilanagem, como só nesse mundo é possível. Refiro-me sim às
individuais partículas de pó que se acumulam nos móveis e outras superfícies
mais ou menos planas. Esse pó, tormento das donas de casa, da decadência
doméstica, e do desprezo que se aglomera em camadas diárias na solidão dos quartos,
salas bibliotecas e museus.
E no entanto viemos do pó. Não me refiro ao pó bíblico,
imperfeito, terrestre, sujo e lamacento de onde o homem inventou a olaria e os
mitos genésicos, mas sim ao pó primordial, cósmico e magistral, causa primeira
do universo e infinitamente mais sublime que se recicla ilimitadamente quando
galáxias, estrelas e outros corpos celestes colidem uns com os outros originando
novas galáxias, estrelas, planetas e de vez em quando seres vivos e ainda mais
raramente, seres inteligentes. Nós humanos somos o resultado desse pó reciclado
e reciclável; já fomos galáxia, estrela e meteorito. Hoje somos humanos, no
futuro longínquo seremos qualquer outra coisa até que a insuportável dispersão
do momento inicial do universo pare e este colapse.
Felizmente para a ciência o começo primeiro do pó não foi
descoberto por astrofísicos portugueses (até porque raros). Isto porque se os
nefandos estudiosos lusitanos tivessem usado do mesmo tipo de onomatopeia que
os verdadeiros descobridores do fenómeno usaram na sua anglo-saxónica língua
muito dada a onomatopaicas descrições, o fenómeno seria não mais que um
escatológico som, resultado da vibração das nalgas de um qualquer deus: o
Grande-Pum. Ainda bem que não fomos nós que descobrimos o tal de Big-Bang. Até
porque não conseguiríamos viver com a vergonha e muito menos com a responsabilidade
(coisa que não gostamos de arcar, de qualquer maneira). Nas línguas
anglo-saxónicas a onomatopeia “bang” serve também de substantivo e descreve uma
explosão: I've heard a loud bang. Em português a onomatopeia correspondente é
“pum”. A pistola fez pum! E pum é também o nome dado à já descrita necessidade
fisiológica de libertar gases intestinais. Decididamente teríamos de inventar
outro nome mais digno, mesmo que menos criativo, por outro lado reduziria a
grandiosidade e por vezes distanciada intelectualidade de tal fenómeno a um
popularucho (e bem português) traque.
Mas voltando ao pó, como vêm poder-se-á concluir que este
negligenciado fenómeno natural é de suprema importância universal. Ele é
transversal a todas as sociedades, culturas e religiões (com direito a fenómeno
sobrenatural e tudo) e é inerente do próprio universo. Como tal daqui lhe
presto esta singela e respeitosa homenagem. E como tenho imenso respeito por
ti, pó, senhor do Universo, grande reciclador e reciclado, vencedor de todas as
batalhas que à tua nobre pessoa estes abjectos humanos fazem, passarei a
limpar-te menos vezes de cima da cómoda ou do móvel da televisão.
©Alexandre Rodrigues 2012
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