A manhã estava
fria e um nevoeiro gelado percorria as ruas da cidade persuadindo mãos
enluvadas a aconchegar cachecóis e casacos para junto dos corpos. Christopher
desceu as escadas que engoliam os passageiros do metropolitano para dentro das
suas entranhas escuras e sujas. Com um gesto automático retirou do bolso
interior do casaco o passe mensal e passou-o pelo sensor de leitura que
imediatamente abriu as portadas do torniquete num movimento brusco e rápido,
tornando a fecha-las atrás de si imediatamente, esperando ávidas e
intransigentes por mais um passageiro. Seguiu então até à plataforma da estação
esperando pela próxima composição. Olhou em redor, nem por curiosidade, nem por
medo, apenas por reflexo condicionado, para fazer uma ideia muito geral de
quantas pessoas estavam naquele momento à espera, e fazer um cálculo mental se
caberia no comboio que o levaria até ao emprego, ou teria de esperar pelo
seguinte.
Foi quando
reparou naquela mulher. Estava a uns cinco passos de distancia, do seu lado
esquerdo, em frente a um anuncio de carteiras de pele de marca. Trazia uma saia
travada, meias pretas e um casaco de corte clássico, tal como seria de esperar
das muitas mulheres que trabalham nos diferentes escritórios espalhados pela
cidade. Cinzenta e anónima. No entanto algo sobressaía nela que o fez olhar
segunda vez. Seriam talvez os lábios, pintados de um vermelho vivo, ou talvez
os sapatos da mesma cor, únicos fatores de relevo em toda aquela monotonia. A
mulher também olhou para ele e sorriu. Nunca lhe tinham sorrido a caminho do
trabalho. Aliás, não será arriscado afirmar que ninguém sorri de manhã a
caminho dos empregos cinzentos e monótonos em qualquer parte do mundo. Christopher
não fugia à regra, até porque também ia vestido com o previsível fato, uma
gravata e um sobretudo, nada que o fizesse sobressair da norma. No entanto para
a mulher, algo naquele rosto masculino,, no meio de tantos outros rostos, fê-la
olhar uma segunda vez.
Quando o
comboio chegou, a habitual impaciência dos que esperam os que saem para poder
entrar sem grande esperança de encontrar um lugar sentado, empurrou Christopher
para dentro da carruagem, perdendo este a mulher de vista. “Paciência” - pensou
ele como que num reflexo automático – “Era bonita”. E distraidamente como
sempre fazia, tentou olhar pela janela negra, por cima de ombros e cabeças,
apenas para não olhar fixamente nenhum dos outros passageiros que àquela hora
viajavam naquele metropolitano barulhento e abafado, que inebriava os
pensamentos com uma orgia de cheiros diferentes, a perfumes, suores, tabacos e
toda a sorte de vapores misturados no chão por anos e anos de uso, limpos com
vassouras mal-cheirosas e águas tão usadas e negras que só adicionavam imundice àquele chão ao invés de o limpar.
Sentiu então tocarem-lhe
no ombro. Era a mulher da plataforma. Christopher sorriu de volta o sorriso que
não tinha tido oportunidade de retribuir enquanto ambos esperavam pelo comboio.
Desviou os olhos timidamente, esperando que a mulher tivesse desviado os seus.
Afinal, a regra tácita nos transportes públicos dita que ninguém olha duas
vezes para a mesma pessoa. A mulher continuava a olhar para ele fixamente.
Sorriu-lhe de novo. Christopher engoliu em seco e tentou articular algumas
palavras mas saíu-lhe apenas um ruído áspero e rouco, abafado nesse preciso
momento pelo chiar das rodas de metal da carruagem a roçar pelos pesados carris
de aço pregados ao chão de betão do túnel. A mulher franziu o sobrolho, sempre
a sorrir, questionando-o como quem não tivesse percebido. Ele aproveitou para pigarrear
e ganhar algum tempo. “Vai para o emprego, suponho”? Disse então meio
timidamente para iniciar finalmente a conversa. “Já estou no meu horário de
trabalho”. Respondeu ela. A natureza masculina de Christopher não pode deixar
de, imediatamente ter um pensamento
menos bem-intencionado. “Então começa bem cedo” - respondeu ele, em jeito de
quem ao mesmo tempo faz uma pergunta - “ainda não são oito horas”. “Eu nunca
largo o trabalho”, disse-lhe ela. “Esta altura do dia é quando estou mais
ocupada”. Christopher já consumido pela curiosidade e por alguma malícia
perguntou. “E o que faz”? “Trabalho por conta-própria”. Respondeu ela, olhando-o
com curiosidade tentando interpretar as micro-expressões faciais daquela cara
masculina, entre o surpreendido e o sarcástico.
Comentam
algumas mulheres com o mesmo grau de sarcasmo, que delas os homens não
conseguem esconder nada, muito menos expressões faciais. Outra mulher teria
perdido o interesse, mas esta não, esta era daquelas raras mulheres
inquisitivas, de olhar sensual, que muitos tentam em vão conquistar, e que não
raras vezes se apaixonam ou pelos homens errados, que lhes arruínam as vidas, ou
pelos homens mais inesperados que frequentemente se sentem intimidados mas
ainda assim atraídos pela forte personalidade destas. Christopher era talvez do segundo género. De
tal modo que quem tomou a iniciativa de combinar uma jantar, fora ela, que lhe
disse “Gostei da sua cara, inspira-me confiança. Quer combinar um jantar?” Christopher
olhou para todos os lados, como que incrédulo mas ao mesmo tempo embaraçado
pela frontalidade daquela mulher naquele lugar público. De facto as mulheres
primam pela subtileza, umas mais que outras e umas ainda melhor que outras
nesta requintada arte de se dar, sem abrir totalmente no jogo da sedução. E
esta, para não fugir à regra deixou uma série de questões no ar e na cabeça de Christopher,
que por nunca deixar uma oportunidade em aberto, nem virar a cara aos desafios
que a vida muitas vezes lhe lançava, aceitou a inesperada proposta daquela
criatura que nada tinha de extraordinário, a não ser uns lábios pintados de um
vermelho vivo e uns sapatos da mesma cor. Para dizer a verdade, claro que havia
mais naquela mulher, mas o mais de que aqui falamos é sempre muito subjetivo,
cada cabeça terá a sua sentença e quanto a gostos, esses nunca se discutem, e muito
menos nesta história. Combinaram então lugar e a hora e despediram-se.
Christopher
chegou bem mais cedo ao local combinado, onde previamente havia reservado uma
mesa. A sua mais que pontualidade devia-se não ao facto de recear que algo
pudesse correr mal, mesmo que essa fosse uma razão válida para tal antecipação,
mas sim porque durante o resto da semana, embora continuasse a ver a alguma
distância aquela mulher misteriosa no costumeiro comboio subterrâneo que
apanhava todos os dias, esta nunca mais lhe dirigiu a palavra e muito menos um
sorriso, comportando-se como se ele fosse mais um estranho, no meio de todos os
outros estranhos com que se cruzava todos os dias a caminho do trabalho, não
obstante se continuarem a cruzar. De modo que Christopher, durante o resto dos
dias de trabalho sentira-se bastante ansioso porque queria saber mais sobre
aquela mulher e porque se sentiu inseguro ao não conseguir perceber o porquê de
ela não lhe ter dirigido a palavra durante o resto da semana. Teria desistido
do encontro? Ter-se-ia arrependido? Este turbilhão de ideias passava pela
cabeça de Christopher enquanto sorvia em pequenos goles espaçados um aperitivo
liquido de forte teor alcoólico que o ajudava a passar o tempo por um lado, e
ao mesmo tempo ganhar alguma coragem para enfrentar aquela mulher que o
apanhara sem guarda com a sua inesperada frontalidade, por outro.
As suas
duvidas dissiparam-se quando a mulher apareceu no restaurante e o rececionista
lhe indicou o bar onde Christopher se tinha sentado a tomar uma bebida. Christopher
não ficou de modo algum surpreendido pela
forma elegante, e de certo modo sensual, como a mulher vinha vestida. Eram precisamente
esses mesmos atributos que Christopher apreciara naquela cara normal, que de
outro modo passaria despercebida no meio da multidão de todos os dias à espera
do comboio subterrâneo. “Posso convidá-la para beber qualquer coisa?” Perguntou
ele cheio de uma coragem alimentada em parte por algum teor alcoólico no sangue
que já lhe tinha deixado as faces um pouco ruborizadas e os olhos com um brilho
molhado. É curioso como alguns homens mais tímidos necessitam deste tipo de
motivação para conseguirem expressar as
palavras certas na hora certa, e que de outro modo não lhes sairia da boca, ou
então sairiam de um modo tosco e pouco articulado e no momento mais impróprio.
O certo é que a pergunta teve o efeito desejado na mulher que aceitou o pedido
e ao mesmo tempo formulou na sua cabeça, como só as mulheres conseguem, um
pensamento inicial positivo acerca daquele homem que lhe parecia um autentico
cavalheiro ainda que, não obstante o aperitivo, algo tímido. Existe uma
capacidade inata nas mulheres de, em pensamento, criarem como que uma folha de
calculo onde vão apontando as ações dos homens com quem interagem (e também de
outras mulheres) e vão adicionando ou subtraindo valores que ao fim de algum
tempo lhes indicará o somatório desses mesmos valores cujo resultado elas analisam e processam, tendo como resultado final uma relação (se atingidos
pontos suficientes) ou um afastamento se a média for inferior às suas
expectativas. É claro que as expetativas variam de mulher para mulher e a cada
atributo será dado um valor diferente consoante a personalidade e os gostos de
cada uma. Daí que os homens achem, não sem alguma razão, as mulheres muito
complicadas. Elas próprias acham o mesmo, mas sorriem com alguma condescendência e sarcasmo pelo facto de os homens serem criaturas bem mais
simples e menos dadas a contabilidades de caráter. Assim sendo Christopher foi
somando pontos na cabeça da mulher pela elegância do vestir, pelo cavalheirismo
inicial (esse atributo ficará em aberto até ao final da noite), e pela escolha
do restaurante.
Quando se
sentaram para jantar, o homem iniciou a conversa, elogiando a beleza da mulher,
tendo sido a sua verdadeira intenção elogiar mais o modo como vinha vestida e
maquilhada do que a sua beleza natural, se bem que esta última tinha sido como
que realçada pelo modo como soubera escolher
o traje. Ela agradeceu colocando uma expressão meio tímida (se bem que
ensaiada) mas sentindo-se genuinamente lisonjeada, e retribuiu elogiando a elegância de Christopher. Foi quando este finalmente se lembrou que não se
tinham apresentado, e desculpando-se pela sua falta de educação, disse o seu
primeiro nome, guardando para já e para si o sobrenome, dando a entender à
mulher, que também se introduzira entretanto e que dava pelo nome de Melissa,
que aquele encontro seria informal, deixando de parte as formalidades que só
atrapalham nestas ocasiões. Começaram pois a abordar os assuntos mais triviais
primeiro, até porque nestas ocasiões convém jogar o jogo tácito da troca de
informação que é tanto do agrado das mulheres e que os homens se vêm obrigados
a jogar, mais ou menos a contra-gosto, correndo, aqueles que são demasiado
diretos e menos subtis, o risco de, na pior das hipóteses, levarem uma bofetada
ou o liquido de um copo pela cara e na melhor, o desinteresse por parte da
mulher. É claro que este jogo acaba por
ir criando um certo crescendo que a correr bem, acabará num grau menor ou maior
de intimidade, que por sua vez se quedará, ou pela amizade ou pelo paixão
genuína. Christopher explicou então o que fazia; um trabalho sem grande cor,
num escritório de gente aborrecida, que por imposição das chefias cheias de si
mesmas, de vazias cerimónias e burocráticos procedimentos, exigiam
comportamentos cinzentos e cerimoniosos de uns para com os outros, deixando
muito pouca margem de manobra para a socialização ou qualquer outra atividade
menos formal e mais imaginativa. Foi então que Christopher, embalado pela
curiosidade, por um encorpado copo de bom vinho tinto, algumas garfadas num excelente bife esmeradamente apresentado,
e pela velada expetativa que este jogo de troca de informação pessoal, mas
superficial gera, perguntou à mulher com a maior das naturalidades, ainda que
com um certo sorriso de desafio, o que ela fazia profissionalmente. A resposta
começou com uma pergunta, “quer mesmo saber?” “Claro que sim”, disse Christopher
cheio de segurança e ao mesmo tempo de roída curiosidade, até porque quando se
conheceram no comboio muita coisa ficou no ar, especialmente a profissão da
mulher que despertara um interesse cada vez mais difícil de esconder.
“Sou carteirista”. Disse ela.
O silêncio mais ou menos incómodo
que a surpresa gerou em Christopher deveu-se não só ao facto deste não estar à
espera da resposta, mas também porque uma genuína incredulidade se desenvolveu rapidamente na sua cabeça e especialmente porque isso, de certo modo, lhe
bloqueou o discurso falado. Christopher ficou sem saber o que perguntar porque
não queria ser mal-educado e muito menos indiscreto. “Está a brincar” foi a
primeira coisa que conseguiu articular. “Então porque não me levou a carteira?”
– continuou ele, agora num tom mais inquisidor– “teve mais que oportunidade
para isso”. “Porque gostei de si, do seu sorriso e do seu ar melancólico, e
não, não estou a brincar. Sou mesmo carteirista.” Aquela resposta desarmou Christopher
completamente de tal modo que o sangue lhe gelara por momentos nas veias e artérias que cobriam os sues órgãos internos. No entanto, uma espécie de estranha
atração física por aquela criatura fascinante, fora do comum, e de certo modo
perigosa gerou a produção de alguma adrenalina no homem que, em vez da
diplomacia subtil e um certo cavalheirismo que até aí tinha usado como arma de
sedução, foi quase completamente substituída por um estimulo meio animalesco e
fortemente sensual que o atraía cada vez mais àquela mulher. Christopher julgou
no entanto que seria, e com alguma razão, o álcool a falar mais alto. Alguma da
sobriedade que lhe restava permitia-lhe perceber também que, naquele jogo, ela levava
uma vantagem muito grande sobre si, e era preciso igualar o marcador naquela
noite...
A
madrugada fria tinha tomado conta do quarto que horas antes queimara, ardendo
com intensidade, o combustível que se acumulara durante o jantar, enquanto o
jogo de palavras e atitudes mais ou menos dissimuladas subira de tom num
crescendo tal, que a certo ponto, depois de saírem do restaurante, fora de todo impossível a ambos manterem as máscaras de subtileza e cordialidade que até aí
tinham carregado, pelo menos enquanto aquela espécie de jogo tinha durado.
Nenhum dos dois se lembrava na manhã seguinte quem tinha virado o tabuleiro e a
mesa com as peças, onde antes haviam jogado aquele jogo tácito e subtil, para o
combate final que se seguiu no quarto vermelho, do apartamento de Melissa.
Certo é que Christopher, muito depois de se ter vestido, calçado e fechar sem
barulho a porta da saída do apartamento, quando já se encontrava no torniquete
da estação do metropolitano para apanhar o
comboio que o levaria a casa, deu pela falta da carteira. Melissa por
sua vez quando acordou, sentido a falta daquele corpo que antes a envolvera e
fizera abalar as paredes das suas profundas convicções acerca dos homens, e que
havia sossegado ao seu lado depois de apagados os fogos de ambos e consumidas
as forças que os apagaram, percebeu ao levantar-se, que Christopher se tinha
apropriado, em jeito de resgate involuntário, o seu até aí independente coração.
©Alexandre Rodrigues 2013
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