E de modo que é assim, caro senhor. Quando
começámos éramos uns simples lojistas, uns vendiam trapos, outros eram
talhantes, mas tínhamos dinheiro, capital, compreende. E lá fomos emprestando
aos destravados dos duques, condes, barões e até à Coroa que nem miolos tinha para
gerir este antro de parasitas e mais meia dúzia de feitorias a que chamavam
império, capitaneadas por mulatos cheios de ódio, filhos de brancos piolhosos e
de pretas de sanzala. Imagine. Nós, uns burguesitos miseráveis oriundos de
Itália, França, da Alemanha, ou das barrigas peludas das criadas dos valetes
deste covil a que chamam país. Nós que andávamos de jaqueta, gravata e
botas de campónio, cujas mulheres bigodudas copiavam e mal as modas de Paris, éramos
desprezados pelos pelintras dos nobres enquanto passávamos a vida a emprestar
dinheiro àquele fantoche aqui mantido artificialmente pelos ingleses, a que
esta gentalha sem rumo nem destino chamava de el-rei, depois de ter desbaratado
numa guerra fratricida o pouco que o Junot cá deixou quando foi escorraçado
pelo Wellington. É claro que ele não tinha como pagar a conta e deixou o trono
à pateta da filha junto com as contas das guerras passadas. E lá fomos continuando
a emprestar à coroa, que nunca teve como nos pagar. Pagava-nos o que podia e o
que não podia em negociatas de obras públicas, rendas e outras fantasias
fontistas até que nos fartámos desta palhaçada toda e entabulámos conversa com
uns idiotas carbonários insuflados pelos escombros de todas as revoluções
francesas, instigámos-lhes o orgulho nacional ferido de intelectuais de
pastelaria contra o ultimato britânico a essa outra megalomania de
jerico que foi o mapa-cor-de-rosa, que já se estava ver não ia dar em nada e
era uma quimera de gente tonta sem miolos, crentes como só existem neste beco
lodoso dos confins da Ibéria. Alguma vez os britânicos o iriam permitir. E de
tal modo os carbonários fizeram uma merda de um trabalhinho tão mal feito ao
contratar uns idiotas fanatizados que estes no fim acabaram mortos ainda antes de
serem interrogados pelos sicários do João Franco e os verdadeiros
cabecilhas nunca foram apanhados, veja bem o quão burra é esta gente. Aposto
que se em vez de os terem morto, a guarda real os tivesse torturado, tinham
confessado que a ideia do regicídio tinha sido das saloias mãezinhas, umas
analfabetas andrajosas paridas de um penedo de granito. Lá tivemos
de mandar o rei hereditário fazer as malas e colocar no lugar dele uns reis
eleitos que nunca prestaram para mais nada senão para cortar fitas, os bovinos. Nessa
altura já éramos banqueiros, tabaqueiros, donos da eletricidade e do gás, dos
caminhos-de-ferro, da marinha mercante, dos grandes hotéis, das minas nas
colónias de África e mais o diabo a sete. E lá íamos distraindo esta cambada
com festas e beberetes enquanto a república bastarda nos ia prestando
vassalagem dobrando-se para trás para nos ir satisfazendo os caprichos, enquanto
os políticos da mesma se iam digladiando pelo poder deste covil de farrapentos e
analfabetos. É claro que depois de tanto governo e desgoverno caído, de tanto
desmando político, de tanta violência, de tanta divida pública a nós, donos das
fábricas e do armamento, que financiámos a patética expedição da Grande Guerra,
servida em bandeja de lama nas trincheiras de Verdun como carne de canhão para
os hunos, enquanto por cá os finórios de cartola se espadeiravam uns aos outros
pela frente e por detrás na assembleia nacional, nós lá fomos ficando fartos de
tanto pagode, sorrindo aos políticos ao mesmo tempo que íamos untando as mãos e
os paióis dos generais tiranetes deste serralho de derrotados e que lá acabaram
com a palhaçada de uma vez por todas quando cravaram no poder o seminarista de
Santa Comba, o tal que pôs a casa em ordem enquanto dava porrada na arraia-miúda, que
depois de amansada trabalhava para nós a troco de quase nada e ainda agradecia
em comícios pseudo-espontâneos ao salvador da pátria, paizinho, avozinho e
tiozinho desta chusma de boçais. E nas horas de ócio ainda lhes vendíamos revistas
à portuguesa, feiras, touradas e folclore trauliteiro e lá iam rindo a
bandeiras despregadas aquelas bocas desdentadas das piadas veladas ao regímen
que nós fingíamos que não percebíamos, e do toiro cheio de farpas no lombo,
espelho deles mesmos, povo tão burro quanto atrasado, riam-se deles próprios e
da miséria que lhes fomos dando em sopas de pão e toucinho. E diga-se em abono
da verdade que a vida nunca nos correu tão bem nesses tempos de sol, praia e
festas de arromba. Éramos então chamados de capitães da indústria. Pagou-nos o
seminarista sempre atempadamente com o dinheiro que lhe emprestámos, para
fazermos as obras públicas, para explorarmos como deve ser os minérios de
África que depois fazíamos transportar nos nossos próprios barcos para serem
transformados nas nossas fábricas e vendidos como sabonetes e bugigangas às
madames da capital, café aos pseudo-intelectuais das arcadas do Terreiro do Paço
e do Chiado, e ainda alimentávamos o vício aos pobres dando-lhes vinho e tabaco
com fartura para se irem esquecendo da miséria que lhes impingimos a troco de
uma casa portuguesa com certeza, no bairro da fábrica e descontada do ordenado,
e mais umas estradas asfaltadas por onde circulavam os carros que não tinham,
junto com mulas pulguentas picadas por miúdos surrentos e descalços mas muito
honrados, meu caro amigo, porque não andavam a mendigar. E os empregos que
restavam foram parar às fabriquetas obsoletas do condicionamento industrial, um
pequeno preço a pagar para que nós nos pudéssemos cartelizar à vontade e
desfrutar da boa-vida enquanto o seminarista se entretinha a contar os tostões
e a fazer uma zurrapa lá para os lados da aldeia que o viu nascer, pobre diabo,
enquanto vendia sardinhas em lata aos boches e se enchia e nos enchia de
divisas estrangeiras à custa dos dentes dos hebreus que desapareciam da face da
terra em velocidade terminal e nauseabunda, e ainda teve a lata de campónio
manhoso ao negociar com os ianques, sempre burgessos, os despojos de uma guerra
da qual não participou em troca de uma ilha meio adormecida lá para o meio do Atlântico
e que serviu como assento para impedir o papão vermelho de conquistar o espaço
livre que era a nova Europa ocidental, exemplo de democracia, a começar pela
Ibéria e a acabar na mesma e deixando-nos em paz a governar este coio de
indigentes, sempre a lamentarem-se do destino e da saudade, nem eles sabem bem
de quê, os energúmenos. E andávamos todos bem até que o homem, veja você bem, cai
de uma cadeira de lona abaixo, vá, e vai desta para melhor, imagine só. Entre o
hospital e o catafalco, lá lhe arranjámos um delfim às pressas, saído das
fileiras dos legionários, e serviu para ir apaziguando os ânimos
já meio exaltados da escumalha esquerdista que andava pelas universidades e
quartéis a papaguear discursos marxistas contra a guerra colonial e contra a
situação e até queriam eleições, veja bem que catano. Até que uma cáfila de
militares de baixa patente, que só sabiam lamentar-se quando viram as benesses
escorrerem-lhes pelas mãos, e porque a guerra já ia longa, e porque emprenharam
pelos ouvidos a propaganda soviética que lhes ia parar às mãos quando regavam
de napalm as cubatas com os pretos lá dentro, e se chatearam, os coitadinhos, e
pegaram em meia dúzia de chaimites ridículos e mais uma récua de boçais como
eles, e mandaram o delfim para o diabo, ensinar direito aos brasucas que na
altura andavam a ser desentortados pela bendita mão dos generais que invadiram
o Planalto. Dessa é que não esperávamos, e foi um regabofe de comunas que espreguiçaram
as gâmbias depois de tantos anos encolhidos a levarem porrada dos pides, aquilo
é que foi dar ao dente, era manifestações para cá, distribuição de kalashnikoves
para lá, reforma agrária já e nacionalizações para ontem. Cabrões, julgavam-se
mais espertos que nós que já cá andávamos há mais de um século e éramos velhos
como as árvores, e tínhamos manhas de raposa velha, éramos sabidos e matreiros.
Quando os vermelhos começaram a lançar os boatos de que iam imolar os meninos
do monóculo numa tourada do Campo Pequeno, alguém tentou dar a volta a isto,
meu caro amigo, e aí é que a muralha de aço se pôs a ladrar nacionalize-se. Só
que nessa altura já os bancos de jardim de Zurique, Genebra e do Rio de Janeiro
estavam cheios de velhinhos portugueses centenários, antigos como as árvores
que lhes davam sombra e matreiros como raposas, fomos ficando à espreita que o
preque caísse de maduro e se voltassem de novo para nós, de boné na mão a rogar
que tornássemos a mandar naquele covil de asnos mal-paridos. Claro que perdemos
os bens ativos das empresas, mas o grosso não estava cá dentro deste bordel de iníquos
que se foi revolvendo na ilusão madrasta do socialismo e lá iam cantando que o
futuro era agora e que a reforma agrária é que ia matar a fome aos labregos que
ainda acreditavam que nesse país de cornos mansos as coisas alguma vez iriam
mudar. Nem foram precisos oito anos, que aos nossos olhos habituados a muito
passados, foram apenas horas, para que viessem comer da nossa mão e lamber-nos,
não mais as botas de campónios, mas os sapatos italianos, e nos rogassem pelas
alminhas das nossas santas mães e pela senhora de Fátima que déssemos a volta
àquele lamaçal de idolatras rastejantes, e que por causa dos comunas tiveram de
pedir dois empréstimos internacionais, vejam vossas excelências, grunhiam eles, porque os anarcas
dos sindicatos das empresas nacionalizadas bloqueiam toda e qualquer tentativa
de voltarmos a por as coisas como eram quando vossas excelências mandavam e
desmandavam, e quando diziam faça-se a gente fazia e quando diziam desfaça-se nós
nem pestanejávamos, de maneiras que vejam lá o que é que podem fazer pela ditosa
pátria que vos viu nascer e que vos escorraçou injustamente para os confins dos
trópicos cheios de malária que vos come vivos e neves eternas que vos maltratam
as artrites reumatoides. E foi então que conferenciámos uns com os outros em murmúrios
de anciãos e em línguas que mais ninguém, senão nós entendíamos, e lá lhes
fomos fazendo a vontade. Mas pagaram caro a imprudência, porque tal como o
elefante velho de décadas e a tartaruga centenária dos mares dos trópicos, não
esquecemos a humilhação e lentamente fomos tecendo a teia de aranha, gorda das
moscas que caçámos, comprando as empresas que nos extorquíram com o dinheiro
das indemnizações vezes cinquenta, mais gigantescas que quando no-las roubaram,
e incestuámos nas empresas uns dos outros, e comprámos idiotas úteis afetados e
peneirentos que lançámos para a ribalta dos partidos da rebaldaria com manhas
de propaganda de feira, partidos que agora financiamos e que foram abrindo caminho
dentro da vaca como parasitas que a comem por dentro, movendo influências nas
direções-gerais, mercadejando sindicatos com privilégios insustentáveis na casa
pública ao mesmo que tempo que os íamos escorraçando das nossas privadas empresas
que foram crescendo, sugando da teta da república cada vez mais seca, pagando
luvas aos advogados-deputados que legislavam decretos cheios de buracos para
depois nos cobrarem pareceres sobre como devemos usar os buracos a nosso favor
para evitar pagar os impostos que finalmente cobramos à puta velha dos cincos
de outubro em banquetes de asfalto e metal, onde negociatas obscuras cobertas
por telhados de betão são engendradas, regadas com bastantes combustíveis e
ventiladas do cheiro a pestilência de morte anunciada por geradores eólicos
redundantes, privatizando os lucros e nacionalizando a dívida para que seja
paga por esta vara de suínos obtusos e mansos que é o povo inútil e ainda nos
chamam de campeões nacionais, imagine. E é assim que se fazia, faz e fará
circular o dinheiro neste bordel de filhos-da-puta mal-agradecidos para que o
pesadelo nunca se acabe, porque nós somos legião e somos como a hidra de Lerna que
por mais se cortem as cabeças, mais elas crescem e se multiplicam!
©Alexandre Alves-Rodrigues 2013
©Alexandre Alves-Rodrigues 2013
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