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quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O Menino Sonhador



O amor é o estado no qual os homens têm mais probabilidades de ver as coisas tal como elas não são.
Friedrich Nietzsche


Todos os dias aquele menino sonhava. E também sonhava que sonhava. E sonhava tanto que às vezes tinha medo de acordar. Porque a realidade era um íncubo do qual nunca soube despertar. Acordou apenas no dia em que a morte, desprevenido o apanhou. E aí o estado do seu tempo foi outro; o da aflição. A chuva que batia na terra sete palmos acima do seu nariz. O gelo que teimava em não se quebrar. Um frio que lhe estalava nos ossos que se desfaziam.

Para lá de oceanos de dúvidas desse menino existia um naufrágio antigo, afundado por tempestades violentas. Um raio fulminante no escuro. E desse naufrágio nasceu uma loucura demente, ressuscitada de um afogamento de marés. E o menino sonhador escondeu-se num nevoeiro de desconsolo, tão triste que esmagava no seu peito uma dor tão indescritível como real. Uma imensa desolação. E para isto não tinha o menino sonhador qualquer remédio

E se era um menino sonhador foi porque alguém o tornou assim. Provavelmente quem o chamou de menino sonhador. Quem um dia roubou o seu coração e o atirou, junto com a rosa que tinha ao peito, para longe. E o menino nunca mais soube do seu coração nem da rosa, mesmo que os tenha procurado vezes sem conta nos comboios gastos pelo tempo que chegavam trazendo orquídeas de longe. Ou nas mesas dos cafés onde amantes solitários dançavam tangos pela noite dentro. E procurou também nos velhos restaurantes perdidos no tempo onde pedia mesa para dois, na esperança de aparecerem. Nos bares bebia esperando esquecer a rosa e o seu coração. Mas como era um menino sonhador, esquecia-se de se esquecer. Nem mesmo com feitiços duradouros de amizades eternas.

Não poderia o menino idealizar ser outra coisa. Por isso andou sempre fugido, porque os mistérios do mundo no qual nasceu, o magoavam, e levaram-no até a mudar de nome pensando que nunca, jamais o encontrariam. Mas, porque a curiosidade roía, foi ele quem os buscou, ao coração e à rosa. Ele, o perdedor de todas as lutas. Ele o desterrado de todos os afectos. Ele o arrogante. Ele o condenado. Ele o pretensioso. Ele o inconstante. Ele o louco. Aquele que só sabia exorcizar os demónios da sua alma com melaço do Caribe. E ria. Ria como um louco que se ri sem saber que todos se riam de si. Ria para disfarçar os sofrimentos de décadas que ninguém conseguia apagar. Aquela hemorragia antiga que teimava em não estancar. Escarnecia daqueles que escarneciam dele. Porque via na opacidade dos outros a sua transparência.
 
E inventava histórias.

Era tão só reserva de um amor. Bebia todas as raras palavras que vinham de longe, do coração e da rosa, uma a uma como se bálsamo fossem e desconstruías para lhes achar um significado escondido, um código obscuro, místico. Palavras que lhe iluminassem o caminho, que lhe dessem um só segundo de alento. E por isso nunca sabia o que responder. Quando o fazia, achava que era demasiado cedo, irreflectido, ou deixando para mais (demasiado) tarde julgava que se tornava irrelevante ou inapropriado. Nunca aprendeu a comunicar sentimentos. O menino sonhador não foi capaz de o fazer de um modo natural. Sempre lhe soava a ensaiado, a teatro, a coisa contrafeita, à razão que tanto prezava. Mas nada do que pensava era forçado. Aquilo que não dizia era, podem crer, do mais espontâneo e natural que existia dentro de si.  

O ontem ainda poderá ser amanhã.


©2014 Alexandre Alves Rodrigues

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