O amor é o estado no qual os homens
têm mais probabilidades de ver as coisas tal como elas não são.
Friedrich Nietzsche
Todos os dias aquele menino sonhava. E também sonhava
que sonhava. E sonhava tanto que às vezes tinha medo de acordar. Porque a
realidade era um íncubo do qual nunca soube despertar. Acordou apenas no dia
em que a morte, desprevenido o apanhou. E aí o estado do seu tempo foi outro;
o da aflição. A chuva que batia na terra sete palmos acima do seu nariz. O gelo
que teimava em não se quebrar. Um frio que lhe estalava nos ossos que se desfaziam.
Para lá de oceanos de dúvidas desse menino existia
um naufrágio antigo, afundado por tempestades violentas. Um raio fulminante no
escuro. E desse naufrágio nasceu uma loucura demente, ressuscitada de um
afogamento de marés. E o menino sonhador escondeu-se num nevoeiro de
desconsolo, tão triste que esmagava no seu peito uma dor tão indescritível como
real. Uma imensa desolação. E para isto não tinha o menino sonhador qualquer
remédio
E se era um menino sonhador foi porque alguém
o tornou assim. Provavelmente quem o chamou de menino sonhador. Quem um dia
roubou o seu coração e o atirou, junto com a rosa que tinha ao peito, para
longe. E o menino nunca mais soube do seu coração nem da rosa, mesmo que os
tenha procurado vezes sem conta nos comboios gastos pelo tempo que chegavam
trazendo orquídeas de longe. Ou nas mesas dos cafés onde amantes solitários
dançavam tangos pela noite dentro. E procurou também nos velhos restaurantes
perdidos no tempo onde pedia mesa para dois, na esperança de aparecerem. Nos
bares bebia esperando esquecer a rosa e o seu coração. Mas como era um menino
sonhador, esquecia-se de se esquecer. Nem mesmo com feitiços duradouros de
amizades eternas.
Não poderia o menino idealizar ser outra coisa. Por
isso andou sempre fugido, porque os mistérios do mundo no qual nasceu, o magoavam,
e levaram-no até a mudar de nome pensando que nunca, jamais o encontrariam. Mas,
porque a curiosidade roía, foi ele quem os buscou, ao coração e à rosa. Ele, o
perdedor de todas as lutas. Ele o desterrado de todos os afectos. Ele o
arrogante. Ele o condenado. Ele o pretensioso. Ele o inconstante. Ele o louco. Aquele
que só sabia exorcizar os demónios da sua alma com melaço do Caribe. E ria. Ria
como um louco que se ri sem saber que todos se riam de si. Ria para disfarçar os
sofrimentos de décadas que ninguém conseguia apagar. Aquela hemorragia antiga que
teimava em não estancar. Escarnecia daqueles que escarneciam dele. Porque via
na opacidade dos outros a sua transparência.
E inventava histórias.
Era tão só reserva de um amor. Bebia todas as
raras palavras que vinham de longe, do coração e da rosa, uma a uma como
se bálsamo fossem e desconstruías para lhes achar um significado escondido, um código
obscuro, místico. Palavras que lhe iluminassem o caminho, que lhe dessem um só
segundo de alento. E por isso nunca sabia o que responder. Quando o fazia, achava
que era demasiado cedo, irreflectido, ou deixando para mais (demasiado) tarde julgava
que se tornava irrelevante ou inapropriado. Nunca aprendeu a comunicar
sentimentos. O menino sonhador não foi capaz de o fazer de um modo natural.
Sempre lhe soava a ensaiado, a teatro, a coisa contrafeita, à razão que tanto
prezava. Mas nada do que pensava era forçado. Aquilo que não dizia era, podem
crer, do mais espontâneo e natural que existia dentro de si.
O ontem ainda poderá ser amanhã.
©2014 Alexandre Alves Rodrigues
Sem comentários:
Enviar um comentário
Comentadores de bancada