Era uma família de pescadores, das últimas que
ainda existiam na cidade de Setúbal nos anos oitenta do século vinte. Filhos e
netos de pescadores e vendedores de peixe na praça, portanto gente da
cidade com currículo e linhagem nas artes das redes e da venda de ictios e
crustáceos. Uma família peculiar aquela, aos olhos dos forasteiros ou daqueles que, como
eu nativo da mesma urbe de Elmano Sadino, vinham de famílias de outras
origens, também humildes mas diferentes.
A
avó tinha uma “pedra” na praça e por defeito de profissão falava uns decibéis
acima do desejado (Ah miga qué’zo quem diz lá!). Trazia pesados brincos de ouro
pendendo nos furos já rasgados pelo peso da idade, em constante movimento
cinético-vibratório, locomovidos pela acção do movimento maxilo-facial (erra o
q’mai m' faltava agorra, nã querres nã comprres!). A senhora apesar das suas
origens modestas tinha uma altivez orgulhosa de caracóis naturais e pele
sobejamente enrugada, como uma fadista desgarrada a ajeitar o xaile (ê cá é que sei)
e que nada deve à vida. O avô era um homem magríssimo, curvado que não comia
(nã m’apetece nada), apenas bebia (um copite de vinhe tinte prra mim miga) e
ninguém sabia bem porquê. Era pessoa de poucas falas mas quando se pronunciava
apenas dizia redundâncias às quais ninguém retorquía mais pelo respeito à idade
que pela limitada sabedoria. Mas gostava do mar, das artes da faina, e tinha
uns olhos distantes e molhados quando estava em terra, como que enfeitiçados
pelo vício da pesca, pela vida dura, pelas tempestades e pelas sereias, e por isso tinha uma cara triste e longa. As filhas, duas, distavam entre elas uma
boa década em idade. A mais velha de andar rígido de artrite reumatóide, já
tinha atingido os quarenta e sem saber aproximava-se da viuvez precoce
por causa de uns rins falidos e da hemodiálise que ainda não tinha chegado ao
hospital (ai agorra o qué’que fasse sem o mê Márrio?) mas sempre com pujança nos
pulmões para chamar os filhos que brincavam a mais de cem metros de casa
(Aaaah Migueeeeeeel… andajápacasajantarrecutêpaijáchigouequerrcmerr!!!). A mais
nova teria uns trinta anos, caixa num supermercado, um irritante sinal hirsuto
por cima do canto da boca. Era casada com um soldador desempregado que gostava
mais de adegas e sindicalismo de café que de trabalho e tinha as pernas
inchadas e roxas por culpa de uma cirrose teimosa, mas mesmo assim ameaçava bater nos filhos se
eles não portassem bem (amande-te uma papa desse f’cinhe se nã te pões dirrête
vê lá!). E ainda havia um cunhado de voz esganiçada que tinha uma traineira
verde chamada "Mula da Cooperativa" que já tinha levado por uma vez o andor na festa da Senhora do Rosário de Tróia, e fora expulso do cinema por se
rir demasiado alto durante um filme cómico. Era a cara chapada do futuro
falecido, apenas mais velho e seco pelo sal.
Iam
todos aos fins-de-semana de Verão para Tróia num barco que não parava de
crescer em tamanho à medida que a família se ia alargando. Nesse tempo
acampavam entre a Caldeira e o cais dos Fuzileiros quando ainda era permitido
fazê-lo mais por laxismo das autoridades que por falta de farisaica legislação.
Chegavam com a maré-alta, arreavam a fateixa na areia e depois da barraca
armada, no sentido literal e figurado, era vê-los já na maré baixa; as mulheres
e as crianças a apanhar o mercurial berbigão no poluído Sado, os rapazes de
camaroeiro nas mãos com água pelos joelhos, enquanto que os mais velhos
desamarravam o bote a remos e de cana-de-pesca em riste tentavam a sorte com as
tainhas, à época já a saber mais a gasóleo e a tinta dos estaleiros navais que
a peixe fresco e "vivinho".
Depois
haviam os netos, que já não queriam saber da pesca como modo de vida. Também
não é de estranhar, de tanta prédica ouvirem sobre as dificuldades de ser
pescador e de como o trabalho era mal-ganho e arriscado. E no entanto, todos
pareciam ter a intensa certeza que estavam destinados ao mesmo futuro de pobreza
dos seus pais e avós; uns na construção civil, outros como mecânicos e outros
ainda atrás das grades sem muito que lhes valesse. Apenas iam disfarçando a amarga realidade com sonhos
povoados de casas grandes, carros de luxo e muito futebol.
©Alexandre
Rodrigues 2012
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