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sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O Fantástico Milagre de Alípio Gentil




A história que vos vou contar passou-se há muitos anos atrás, quando as estradas eram de terra batida e os cavalos ainda puxavam carros, tendo sido contada em primeira-mão pelo protagonista.

Alípio Gentil nascera sem um único fio de cabelo. Não que isso fosse algo de invulgar num bebé recém-nascido, mas no caso de Alípio o cabelo de facto nunca cresceu e este era tão calvo como uma bola. Alípio crescera com o estigma de ser calvo durante a infância, e ainda por cima naqueles tempos de ignorância, era alvo da chacota dos colegas de escola e dos olhares menos discretos dos transeuntes na rua. A sua mãe tentara todo o tipo de remédios, mezinhas e curas, xaropes e champôs, chás e infusões, mas sempre em vão. Os médicos esses sabiam que o problema de Alípio não tinha cura possível, mas alimentavam as esperanças daquela pobre mãe que lhes pagava as intermináveis consultas a peso de ouro.

Alípio cresceu, fez-se um jovem e um dia, daqueles dias em que os homens sentem a natureza chamar mais forte, decidiu entrar no respeitado estabelecimento de Cordélia Santana, onde o amor é pago, para aliviar a por vezes indomável natureza masculina. Segundo afiançou Alípio anos mais tarde, esta fora a primeira vez que esteve com uma mulher. Fora a conselho de um primo do pai que conhecia as casas de reputação da cidade como as palmas da sua mão e que já cansado de ver Alípio sem noiva ou casado, lhe recomendara a casa de Cordélia Santana como uma das melhores da cidade, onde jovens iniciados, solteirões e homens de boa reputação costumavam visitar nas horas de maior ócio ou de maior aperto. Alípio seguiu o conselho do primo quando um dia a urgência de derramar a semente se tornara de tal modo insuportável que este resolveu tentar o estabelecimento onde, segundo a proprietária, os homens entravam bestas feras e saíam mais mansos que cordeiros. 

Foi nesse mesmo dia que o milagre se deu; Alípio  aplacava a sua aflição por entre as pernas de Agripina Camacho, especialista em ensinar as artes do amor aos rapazes iniciados e por iniciar, quando esta reparou que da cabeça calva e luzidia de Alípio, um tufo de cabelo rompia qual erva daninha em terra deserta. Agripina gritou, e o brado, de susto, confundiu-se com os gemidos de amor desta. Alípio, entusiasmado por aquela mulher esfusiante, desaguou nos braços da pobre Agripina que jazia branca como a cal da parede contra a cabeceira da cama de madeira trabalhada encimada por vermelhas rendas voluptuosas. A face de Alípio então emergiu dos seios de Agripina, com o ar mais desgrenhado do mundo e o sorriso mais pateta que um homem alguma vez deu. Agripina escondeu-se nos lençóis e com o braço livre apontava para a cabeça de Alípio totalmente baralhado, mas que instintivamente levou a mão à cabeça para descobrir incrédulo e cheio de espanto, que do seu crânio até então liso como a casca de um ovo, saía uma mecha de cabelo. 

De um salto, Alípio pôs-se de pé e correu para o espelho que encimava o lavatório de ferro do quarto onde se encontrava. Quando se mirou deu um grito de histeria tão grande que ecoou pelo estabelecimento todo, acordando a pobre Cordélia que dadas as altas horas da noite adormecera sentada no grande sofá de orelhas da sala onde recebia os hóspedes e vigiava a actividade do seu reputado estabelecimento. Alípio por seu turno, com um misto de terror e alegria saltava e gritava completamente nu pelos corredores da casa como um chimpanzé, espantando a clientela que assomava às portas julgando tratar-se de alguma rusga policial, daquelas que destroem prostíbulos e as melhores reputações. Quando finalmente recompôs a calma e a dignidade, vestiu-se alegremente, recompensou generosamente Agripina,  que ainda  não se refizera do choque  e só pensava em consultar uma bruxa, vestiu-se e com a maior alegria do mundo, mais por ter cabelo do que por ter descoberto os até aí misteriosos e velados prazeres do amor e saiu para a rua dirigindo-se a casa. Assim que chegou, Alípio abriu o armário onde guardava os digestivos e licores, desenrolhou o melhor vinho generoso que tinha em casa, encheu um cálice e de um trago engoliu aquele néctar rubro escuro  e ligeiramente viscoso. Rapidamente se deitou, levando algum tempo até que Morfeu, sob a forma daquele néctar lhe tolheu os sentidos e o deixou a dormir apesar de toda a excitação. 

No dia seguinte, já a manhã se fazia tarde, acordava Alípio do mais santo dos sonos quando ao levantar -se da almofada notou que o seu cabelo não se tinha levantado junto com a cabeça,  antes encontrava-se espalmado contra a alvura da almofada de algodão bordejada de renda. Ainda mais incrédulo que na noite anterior, Alípio lançou um grito lancinante que teria arrepiado o mais insensível  dos vilões. Agarrou nos cabelos com ambas as mãos e chorou como uma mãe chora ao perder o mais pequeno dos filhos. Esteve nestes vagares durante mais de uma hora, perdendo pelo repasto e pela vida o apetite matinal  com que se levantara.  

De repente, num impetuoso momento de eléctrica epifania, Alípio levanta-se de um salto, veste-se, come uma refeição de ovos e feijão e sai a assobiar pela calçada. Iria voltar ao estabelecimento de Cordélia imediatamente para confirmar as suas suspeitas. Bateu à pesada porta do prédio em plena luz do dia e de peito erguido clamou: oh da casa! Uma Cordélia arfante assomou à porta e indagou o que quereria Alípio àquela hora da tarde, quando as meninas ainda se preparavam para a matiné e ela preparava a casa para receber os seus estimados clientes. Alípio explicou apenas que queria estar com uma das moças, não importava qual, apenas para se certificar de uma coisa e que pagaria generosamente, tal como tinha pago a Agripina na noite anterior. A dona Cordélia que era tão fraca pela cor do dinheiro como nós meros mortais o somos pela carne, nunca renunciava a uma boa oportunidade de negócio, por mais estapafúrdia que lhe parecesse. Deixou Alípio penetrar na escuridão fresca do vestíbulo desaparecendo logo de seguida por um dos corredores. Alípio ouviu a voz de Cordélia chamar indistinguível por um nome. Passados momentos esta voltava com Úrsula pela mão dirigindo-a para Alípio. Os dois seguiram para a alcova desta, Alípio tirou toda a sua roupa e um pouco mais tarde tirou também todas as suas dúvidas quando se encontrava no leito de Úrsula. No final, Alípio olhou-se ao espelho e o cabelo lá estava novamente. Levou a mão ao bolso das calças penduradas na cadeira de ferro e retirou um maço de notas, recompensou a incrédula Úrsula, vestiu-se alegremente e saiu. 

Desse dia em diante sabia Alípio de antemão que nunca mais precisaria de pagar para estar com uma mulher. Dedicou-se à arte de bem conversar, da sedução e do prazer espontâneo das mulheres. Escusado será dizer que a noticia do fenomenal escalpo espalhou-se como fogo em  caruma seca pela cidade. Alípio era agora admirado quando passava na rua; quantos leques abanavam ao cruzarem olhares furtivos com o olhar confiante do gentil Alípio, não só porque o seu cabelo continuava a crescer a olhos vistos todos os dias, mas porque a continuada cabeleira era sinal de uma abundante e saudável actividade de prazer carnal. Dizia-se à boca pequena que as mulheres da cidade procuravam Alípio para estarem com ele, serem seduzidas pelo seu bem falar, pelas suas historietas e sobretudo para poderem testemunhar em primeira-mão aquele raro milagre capilar.


©Alexandre Rodrigues 2012

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