E naqueles dias o poeta
teve uma visão:
E viu que o mundo se
encontrava coberto de um pó espesso e cinzento,que se entranha na roupa, na
pele, nos pulmões. Acumula-se, deposita-se, camada após camada, finamente,
quase indelével nos corredores, nos móveis, nas prateleiras, nos livros, nas
conversas.No bebé que chora sozinho, no velho que morre devagarinho.
E viu as pessoas que se
cruzam consigo na rua, cobertas deste pó, tossindo sem forças, em vão sacudindo
a espessa cinza que se acumula, que lhes cai em cima, lhe cai em cima, lhes
pesa na vida, lhe pesa no coração.
E viu que o pó subia,
não das chaminés das fábricas, em golfadas espessas, como fumo de um incêndio
incontrolável, mas dos televisores e dos rádios, dos jornais abertos, das
assembleias de acionistas, das portas
dos bancos, dos parlamentos, das sedes de governo, dos ministérios, dos
mercados de valores, dos mercados de futuros, das cidades financeiras. Como se
o futuro fosse ainda mais pó, ainda mais cinzento, ainda mais escuro, ainda.
E viu também gente
desumanizada por esse pó, silenciosos porque o mesmo não lhe permitia articular
palavra: era proibido pelo pó. Estavam limitados aos movimentos que os números
ditam, que criam mais números, que fazem das pessoas números, virgulas,
percentuais, parêntesis de uma poeira de disparates virtuais; recessões,
austeridades, regressões, confusões, gritaria, escandaleira, ruído, levantando
ainda mais pó, enchendo os olhos que já não choram, porque para chorar um valor
pecuniário de pó foi inventado para ser atirado aos olhos por escravos desse pó
cinzento, espesso, nojento, brutalizante, estupidificante, espesso, humilhante.
E viu depois que o pó
assentava nas escolas, nas universidades, nos hospitais em monturos abjetos,
de lama criada pela chuva miudinha contínua, que adormece a vontade, tira o
sono e envelhece os rostos dos jovens. A chuva debaixo de um céu cinzento de pó
era cobrada em absurdas portagens celestiais, por estudantes empoeirados que
serviam de moeda de troca a gestores poeirentos e gananciosos, e trabalhavam
vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas para pagar com pó os estudos
sobre nada que lhes eram administrados em colheres de sopa por professores
cheios de pó e cheios de si mesmo, enlouquecidos por causa desse mesmo pó. E vi
também que os doentes dos hospitais, cada vez mais doentes por causa do pó,
pagavam com mais pó para lhes colocarem mais pó em cima que lhes era depois
cobrado por médicos cobertos de pó despejado por gestores titereiros sedentos
de pó. Aos que se recusavam, era-lhes injetado pó por via intra-venosa até se
transformarem em pó que depois era cobrado às enlutadas famílias cobertas de cinza,
despejada de sacos por agentes funerários feitos da mesma lama dos monturos.
E o poeta tomava banho
todos os dias, na vã esperança de se livrar dessa sordidez. Mas da torneira só
saía pó, negro como petróleo, e em vão se tentou livrar dele. O pó voltava, todos os dias, todas as horas,
todos os segundos, e de tal modo que já nem via mais nada senão pó, ouvia pó,
comia pó, sentia pó, cobravam-lhe pó
para existir, para estar, para pensar. E viu o poeta que aquilo era mau.
E não
conseguiu fazer nada.
©Alexandre Rodrigues 2013
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