Navego à vista neste limbo inevitável em que acorda todo
o emigrante um dia, quando se apercebe dos anos a passar e está, há talvez
demasiado tempo, fora do país que o viu nascer e crescer. A firme
consciencialização de não ter uma pátria, de não se ser de lado nenhum. Já não
sou o mesmo que partiu, que disse adeus à família, que se despediu dos amigos.
Essa personagem é hoje uma velha memória. O país que me acolhe vai lentamente
moldando a minha consciência, e no entanto sou suficientemente estranho nele e
dele para manter uma certa distância, penso que lúcida, sobre esta sociedade em
que me insiro, a qual não consigo, eu próprio, acolher totalmente. Disse-me um
colega de trabalho, que já estou a ficar
demasiado britânico porque não me queixei da bica queimada e fria que me
serviram num dos cafés do aeroporto. Estou a ficar demasiado estoico, demasiado
diplomata, demasiado calado, demasiado... britânico. No entanto bebo uma bica.
Como o faria se estivesse em Portugal, depois do almoço. Uma bica. Esse pedaço
imprescindível e imorredouro de todo o português que se preza. E por dentro
sinto que o português em mim morre a cada dia que passa. cada vez menos
português, cada vez menos ruidoso, cada vez menos refilão, cada vez menos
deprimido por causa da situação económica. De cada vez que vou a Portugal,
sinto-me como um turista, um visitante (sou um visitante) que se sente cada
vez mais distante do passado, que vê inevitavelmente a vida dos seus familiares
e amigos continuar sem ele. Sou como um morto. Quando alguém morre, sente-se
saudade e tristeza, mas a vida continua, prova disso é que passados estes
milhares de anos de civilização e milhares de milhões de mortos, a vida continuou, mesmo quando já nada resta desses mortos, nem o pó. Sinto-me como
uma espécie de morto, que de vez em quando se levanta do seu túmulo frio e
visita os familiares e amigos, em sonhos ou em visões. E quando acordam, a vida
deles continua e dizem uns para os outros: sabes, esta noite sonhei com fulano.
Veio-me visitar. E pronto, fica-se cheio de saudades, mas mais nada. Depois a
vida encarrega-se de os distrair e o morto lá volta para o seu túmulo, lá para esse
país onde vive, essa espécie de paraíso ou inferno, conforme os olhos de cada
um. Para mim, é um limbo. Estou na fase do limbo. Nunca foi verdadeiramente um
inferno, na minha perspetiva, também não é o paraíso que às vezes muitos
emigrantes proclamam quando voltam a Portugal e se gabam das excelentes condições.
E é neste limbo de distanciamento em que vivo, como se pairasse por cima de uma
e de outra sociedade, que vejo com clareza ambas, o quão diferentes são e o
quão parecidas também. Ou talvez seja eu que já nem as distinga. E no entanto
sinto falta das pessoas que deixei para trás, imagino-as de uma determinadas maneira,
talvez idealizada, são as saudades, essa espécie de estupefaciente que nos turva
a realidade, que a faz mais bonita do que ela verdadeiramente é. Porque quando
voltamos e estamos com os amigos e familiares, eles não são nada daquilo que as
saudades nos impingiram, que nós impingimos a nós próprios. Não são a imagem
ideal ou idealizada. São eles, mais velhos, mais preocupados, os filhos mais
crescidos, a viver no mundo sem nós, e nós saímos do nosso outro-mundo, do
túmulo, para estar com eles talvez uma ou duas horas e depois já queremos é
voltar para o país de acolhimento, sete palmos debaixo de terra, ou sete mil
léguas de distância, tanto faz. Aquilo diz-nos pouco, nós já lhes dizemos
pouco, e estamos para ali, uma ou duas horas a olhar uns para os outros sem
saber o que dizer. Acaba-se por fazer conversa de circunstância, porque as
dores da Idalina, e o Tomé desempregado não nos dizem nada, assim como o repasse
que tenho na janela do meu apartamento, ou o preço exorbitante que pago pela
creche do meu filho não lhes diz nada. Concorda-se que a vida está difícil. E
depois despedimo-nos uns dos outros e dizemos que temos pena de não poder ficar
mais tempo. E eles já mortinhos que eu me vá embora e eu mortinho por me ir
embora, de volta para o túmulo.
©Alexandre
Rodrigues 2013
Oi,
ResponderEliminarComo já te tinha dito, gostei muito da tua crónica. Tanto que acabei de publicar no migrant_script.
Abraço
Obrigado Eugénio. Já lá estive a ver. Obrigado pela divulgação do blogue e do livro.
EliminarEu também me sinto um pouco assim. Os meus pais são portugueses, eu nasci em França e cresci desde os 5 aos 18 anos em Setúbal. Aos 18 vim para Inglaterra onde fiz a licenciatura e o mestrado. Trabalhei aqui uns anos e depois estive 2 anos em França e 1 na Suíça a fazer o doutoramento. Voltei a Inglaterra e mais tarde também estive 2 anos a trabalhar em Espanha e 1 ano na Irlanda. Na minha passagem por estes países tentei absorver o melhor de cada cultura e tento usar isto no meu dia a dia. Agora estou de novo em Inglaterra, aqui trabalho e sinto-me em casa.
ResponderEliminarNo entanto, no meio de todas estas as mudanças de país e línguas sinto que já perdi a minha identidade. Identifico muito com a cultura britânica, sou muito “diplomata” e quando vou a Portugal já sinto algum choque “cultural” com certas coisas. Mas quando estou aqui sem ir durante algum tempo a Portugal, sinto saudades do país e da minha família.
Recentemente recebi uma boa proposta de trabalho em Portugal, e depois de muito ponderar acabei por recusar, porque achei que aos meus 39 anos já não me adaptaria com facilidade a Portugal.
Muito obrigado pelo seu comentário. De facto e cada vez mais Portugal começa a ser uma lembrança distante e onde se vai apenas de férias. Mas ainda existe esse estranho "chamamento" que nos leva todos os anos a tirar férias na velha Lusitânia. O seu caso ainda será mais contundente que o meu, dado que viveu fora muito mais tempo e tendo em conta que somos quase da mesma idade a sua "distância" em relação a Portugal será ainda maior.
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