Alfredo Fantasia tinha nascido nos montes perto da
fronteira. Fora criado como pastor de ovelhas e era esse o seu destino certo
não fosse a vida e as suas voltas misteriosas lhe terem pregado uma partida,
daquelas que nos obriga a repensar o nosso modo de viver, e o nosso futuro. Aos
nove anos perdeu o pai pastor e a mãe queijeira para umas gripes fortíssimas
para as quais não havia cura e nem mesmo as mezinhas tradicionais mais fortes
foram capazes de afastar os suores frios, os delírios e por fim a segadora da
morte que os colheu com poucos dias de diferença.
Foi o seu tio materno, Joaquim Cabaça, moleiro de profissão
e a sua esposa Odete, padeira da aldeia que lhe ensinaram aquilo que haveria de
ser o seu mester agora sim, para o resto da vida; padeiro. À altura da morte
dos pais de Alfredo, já andava Joaquim a ensinar os segredos e as artes da
moagem e os tipos de farinha ao seu filho mais velho Ernesto, que daí por
alguns anos herdaria o moinho do pai quando este, sem ninguém o esperar, se
penduraria a si mesmo pelo pescoço num ramo forte de carvalho num dia de
Outono, quando as árvores mostram a copa dourada prestes a cair antes de se
encerrarem para férias durante a invernia. Dizia pois que foi a sua tia que
acabou por lhe ensinar os segredos das leveduras, da massa e da lenha, assim
como os não menos importantes segredos das cozeduras e benzeduras que se dava
naquele tempo ao pão antes de este entrar no forno com dois golpes
perpendiculares numa réstia simbólica de cristianismo atravessado.
Alfredo e Ernesto eram como dois carneiros na época do cio,
a rivalidade entre primos, especialmente quando o clarete das encostas
solarengas começava a fazer efeito nas cabeças de cada um, era por demais
violenta; um por ser filho varão, braço direito do pai, o outro por ser o
perfilhado revoltado que perdera os pais demasiado novo, mas não queria ser de
modo algum, um lobo submisso ao macho alfa da matilha.
Foi pouco depois dos funerais de Joaquim, logo após os
primeiros lutos, e com a bênção resignada da tia que Alfredo decidiu que era
chegada a hora de partir. Ali não era o seu lugar, sabia-o decerto, e a contenda
com o primo Ernesto só poderia agravar-se e já chegava de mortandade naquela
família amaldiçoada. Levou então consigo uma mala com a pouca roupa que a
pobreza lhe permitia possuir, um rolo com dinheiro escondido num bolso secreto
cosido nas ceroulas, suficiente para apanhar o comboio até ao mar e pernoitar por
uns dias, e a arte de padeiro dentro da cabeça. E um farnel de pão, queijo e
vinho que a tia lhe preparara para esconder a fome e o desconforto das velhas
carruagens de terceira classe.
Ao chegar à estação junto à vila de pescadores, e depois de
percorrer as encostas de vinhas, as planícies de trigo e as praias de
pescadores, Alfredo sentou-se em cima da mala, abriu a sacola de pano e comeu.
Vamos pois, por agora deixar Alfredo sossegado para podermos contar a história
de Joaquina Criativa.
Joaquina Criativa era filha de pescadores, nascera e fora
criada na vila encaixada entre os penhascos mediterrânicos e o mar azul
turquesa, fonte de vida e de morte para muitos, e não eram poucos naqueles
tempos, que tiravam das águas o seu sustento à força de braços, lágrimas,
grandes perigos e pouco mais. Tinha o rosto redondo, de bochechas rosadas, e
era a alegria da família, por norma enlutada pois toda aquela gente não
conhecia outra arte que não a da pesca. Já tinha então perdido um irmão,
reclamado como sacrifico pelo oceano em troca de uma rede meio cheia de sardinhas
e de cansaço, mas ainda assim era ela que consolava e animava a mãe dos seus
carpidos sempre que o pai e o irmão mais novo pegavam nos remos e se lançavam
às ondas meretrizes sem terem bem a certeza que iriam voltar inteiros e muito
menos vivos com os frutos que o mar a contra-gosto os deixava acarrear.
Joaquina, junto com a mãe vendia no mercado da cidade grande o peixe que a família
descarregava em cestas por entre as redes esticadas na praia. Por volta das
horas de almoço, depois de salgar o peixe que iria vender, Joaquina dirigia-se
de canasta à cabeça até à estação, onde apanhava o comboio com destino à cidade
grande. E é nessa direcção que agora segue, descalça e curtida por sol e salmoura.
Voltemos então a Alfredo Fantasia que já terminou o seu
parco almoço e se prepara para ir arranjar alojamento naquela vila esquecida
dos homens onde apenas os pescadores lutam pela sobrevivência.
Alfredo preparava-se para pegar na sua mala quando uma voz o
abordou: peixe fresquinho vizinho? Alfredo levantou os olhos e à sua frente
estava a mulher mais bonita que alguma vez vira. Não que tivesse visto muitas,
mas esta era diferente das mulheres da aldeia de onde vinha. Tinha um brilho
nos olhos e radiava uma alegria a que as mulheres das montanhas nunca o
acostumaram. Mais por graça e por tentar a sorte Alfredo aceitou de bom grado o
negócio proposto pela vendedeira, no fundo mais para tentar agradar àquela mulher
por quem o seu coração batia inquieto, do que pela fome que já não trazia. Menina. Perguntou ele. Sabe por graça me
dizer onde posso encontrar uma pensão ou albergue para poder pernoitar uns
dias? Sou padeiro e procuro alguém que me dê trabalho por estes lados. Joaquina
olhou para ele, surpreendida pelos olhos distantes mas seguros de si e pelo
porte altivo daquele homem que não pestanejava ao falar e transmitia-lhe uma
profunda sensação de segurança, diferente daquela que os pescadores, eternos
supersticiosos e submissos do mar, nunca lhe infundiram.
Daqui até casarem e contra a vontade dos pais de Joaquina,
que a viam antes casada com um pescador, foi um ano. Mais tarde, bem mais tarde
Alfredo e Joaquina pouparam o suficiente para abrirem uma padaria para Alfredo,
e mais tarde uma peixaria para Joaquina que sempre fora mulher independente e
não queria viver apenas dos rendimentos do marido.
Esta banal história que hoje conto, passou-se há muitos
anos, em meados do século vinte e um, depois do colapso da então civilização
ocidental, primeiro dos países que a constituíam, alastrando por final aos
blocos que estes faziam parte e no final de uma guerra por recursos que não existiam, e à época eram avidamente adquiridos por estes e outros países até então subdesenvolvidos
e que ultrapassaram e acabaram com o domínio ocidental do mundo ao fim de mais
de quinhentos anos, obrigando as suas gentes a voltarem aos hábitos e ofícios
antigos dos séculos pré-industriais e que há época das últimas grandes guerras
estavam em muitas regiões quase esquecidas. O ocidente depois disso voltou-se
para si mesmo, envergonhado pelo que fez e pelo que perdeu, pelo que construiu
e destruiu, fechou as fronteiras e vive isolado do resto do mundo, isto segundo me
dizem os mercadores, um pouco mais desenvolvido que nós. O meu nome é Deodato
Fantasia Criativa, hoje sou pintor e escritor, contra a vontade dos meus pais
que me viam a tomar conta dos negócios da família que eles criam ver crescer, e aqui relato a história
humilde da minha humilde família nesta terceira década do século vinte e dois
aos sessenta e cinco anos de idade. O mundo nunca mais foi o mesmo.
©Alexandre Rodrigues 2012
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