Desço a rua devagar saboreando o silêncio frio
da madrugada, queria poder fechar os olhos, e saborear os cheiros ausentes há
tanto tempo, os sons que ecoam na memória. Caminho, caminho muito, com vontade
de nunca parar de andar. Uns sapatos duram-me pelo menos dois anos, este
Inverno dura há vinte. Por aqui os sonhos não morrem, andam coxos o resto da
vida. As pessoas sobem e descem escadas das estações de comboio em silêncio
resignado. Eu só lhes vejo os calcanhares e os sapatos se for a subir, e as
cabeças se for a descer. Sonhar é tacitamente proibido. Sonhar foi-me vedado à
nascença, e quando sonhava era como se tivesse os olhos cheios de nuvens e não
conseguia distinguir nada. No entanto precisei de fugir para poder sonhar com
clareza, abrir as asas à madrugada no silêncio do isolamento, do frio ou da distância
física, ou pelo menos iludir-me disso. Ainda não me arrependi. Mas não consigo
concluir nada. Se um dia me colocarem um epitáfio podem escrever “aqui jaz
fulano, nunca acabou nada daquilo que começou”. E por isso sinto como que um
estranho vazio, misto de tristeza nostálgica e insatisfação, onde antes a esperança
ocupava lugar. Apesar de tudo continuo a caminhar, nem sei bem porquê, apenas
como se isso fosse uma premissa para estar vivo. Caminhar para não pensar nas coisas que
me atormentam diariamente como o significado do amor, da vida e muito menos da
sua conclusão. Sinto-me desorientado e distante. Distante de mim mesmo. Como se
eu não fosse eu, mas sim outro, um usurpador que tivesse tomado o meu lugar, e
controlasse as minhas ações mas não o meu pensamento. Esse paira no ar à volta
do usurpador que afinal sou eu, usurpador de mim mesmo, incompleto,
insatisfeito, inquieto. E no entanto caminho, caminho muito, com medo de parar
e acabar a caminhada.
©Alexandre Alves-Rodrigues 2013
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