Em jeito
de amigável resposta ao Circus Maximus
Num mundo tão grande e
complexo, onde atores e teatros são diversos e abundantes, não se deverá
reduzir estes a desenvolvidos e subdesenvolvidos. Pelo meio destes e acima de
tudo para além deles existe uma diversidade tal de teatros, atores e espectadores
que seria redutor enquadrar o mundo em dois blocos, muito ao gosto dos impérios
dos “nós” e dos “eles” (the good guys and bad guys na retórica de um recente “actor”norte-americano
com sobrenome de arbusto.)
Ninguém pois, fica de
fora de nenhum espectáculo, somos todos parte de uma gigantesca encenação que
se desdobra em milhões de sub-enredos dos quais todos somos protagonistas, acabando
por sermos apenas figurantes no grande enredo principal. E mais vezes que nunca,
tal como numa encenação, o nosso sub-enredo desenrola-se e é vitima, devido às
voltas e reviravoltas, do tal grande enredo principal. Assim sendo, o grande
circo da vida tem bons e maus atores, bons e maus cenários, auditórios de boa e
má qualidade, e cadeiras de couro ou de pau. Sejam em cidades ricas ou pobres,
vaidosas ou remediadas.
Todos nós já com certeza
estivemos em cidades pobres onde existem teatros sumptuosíssimos, construídos
pelos arquitectos mais famosos, do mais fino e branco mármore, com os melhores assentos
forrados a cabedal dignos de palácios, acústica impar, fazendo a inveja das
cidades ricas, mas que sofrem apenas de um defeito; são fruto das vaidades, não
de maus actores, mas de atores da mais fina capacidade retórica e representativa,
exigindo que para actuarem, terá de ser num teatro digno da sua magnificência
barroca, mas no fundo sem sumo, e que se esgotam a si mesmos no final do
primeiro acto, deixando depois o teatro às moscas, a audiência afrontada, e a cidade
pobre, ainda mais pobre cultural e financeiramente; no fundo, piolhosa. O
público, esse cada vez mais nu, contribui com ainda mais dinheiro para pagar o
teatro, mesmo que este esteja às moscas; para pagar os grandes atores na
esperança que da próxima é que vai ser, e quando aparece um novo artista, mais
uma obra de renovação é feita, mesmo que desnecessária, sendo exigido ao povo
que aumente as horas trabalho para contribuir para mais obras, em detrimento
das horas de lazer que muitos usariam para ir ao teatro. E claro, onde antes o
povo ia vestido de luzes, agora vai de trapos, porque já esgotou o dinheiro
para pagar o tal teatro que de cada vez que é renovado ocupa mais um quarteirão
da cidade e trabalha ainda mais para o pagar.
Muitos de nós já
estiveram também em cidades ricas, onde o teatro é construído sem grandes
luxos, mas com dignidade, onde os bancos são de madeira duradoura dos arredores
da cidade, retirada de florestas sustentadas, e construída por carpinteiros locais,
paga de acordo com as capacidades financeiras do povo dessa mesma cidade, exigência
aliás do tal público “bem-informado”e não emprestado de outras urbes distantes.
Aos atores, em muitos casos amadores, apenas lhe é exigido que sigam a peça à
letra (ou pelo menos que sigam o espírito desta), e que estejam ao mesmo nível
do público, revelando as suas fraquezas, mas também as suas reais capacidades.
Não precisam de se esgotar no primeiro acto, mas de serem consistentes durante
toda a peça, e especialmente durante toda a temporada. Geralmente estes teatros
não esgotam a lotação na primeira noite, para logo a seguir ficarem vazios
quando o fôlego dos atores se esvai. Porque mais previsíveis e constantes na
qualidade, tem uma audiência constante, e onde cabe sempre mais um espectador,
mesmo que inesperado. E nessa cidade, todos têm a hipótese de ser actor,
figurante ou espectador se assim acharem que contribuem para a riqueza cultural
da cidade, e acima de tudo não existem vedetas.
O único defeito desta
cidade é que desconfia dos cidadãos das cidades pobres, achando que estes não
se sabem governar, que trabalham mal e que são pouco cultos porque despendem
poucas horas em lazer, andam sempre stressados, exaltados, e onde dantes eram
bem dispostos e acolhedores, são agora sorumbáticos e desconfiados dos povos da
outras cidades, especialmente das bem governadas.
Na primeira cidade, os espectadores
querem ser ignorantes da sua condição de figurantes, mesmo depois de terem sido
mil vezes enganados.
Na segunda, todos têm a
hipótese de serem atores, espectadores, figurantes e até, se não lhes apetecer,
ficarem de fora do espectáculo. Mas são estes últimos que perdem porque não
contribuem para a riqueza da cidade.
©Alexandre Rodrigues 2012
Caro Homem Só
ResponderEliminarEu e o Be'emoth acabámos de ler este teu interessante texto e ele encarregou-me de responder, por uma questão de facilidade, já que estamos aqui no meu quintal.
É interessante o texto como disse porque se trata de uma bem conseguida alegoria, partindo da imagem do teatro. Devo dizer que o Be'emoth até se sentiu lisonjeado por ter suscitado esta produção.
Contudo, se existia alguma intenção de contraditório em relação ao Circus Maximus do Be'emoth (o que ele aceita sem qualquer problema), da nossa perspetiva, tal não se verifica. Principalmente porque as raízes de cada uma das alegorias (a do Be'emoth e a do Homem Só) são diferentes.
O Homem Só enfatiza e desenvolve (e bem) o funcionamento no mundo num paralelismo com o teatro, e até apresentando o teatro concreto como paradigma desse funcionamento nos vários «mundos».
O Be'emoth usou a imagem do teatro num sentido mais negativo. Ou seja, o teatro que acontece onde não deveria acontecer. Na sua predileção por sínteses, ele colocou os dois extremos de uma mesma linha: o mundo sub-desenvolvido num deles, o desenvolvido no outro. Ficam sub-entendidos todos os passos intermédios que, evidentemente existem. E nenhum deles é melhor do que o outro, logo não haver lugar para os maus e para os bons.
O que o Be'emoth se refere como «teatro» não é o natural decurso da vida (tantas vezes comparada por poetas e escritores a esta nobre arte), mas sim um conjunto de forças e seus agentes que, fazendo parecer que certas coisas são naturais e espontâneas, manipulam todos os eixos principais de decisão e ação - quer no mundo atrasado como no avançado. O que Be'emoth diz é que quanto mais atrasado é o mundo, menos se exige dos atores (no sentido da alegoria Be'emothiana). No mundo mais avançado, pelo contrário, a qualidade da encenação tem que ser levada a outro nível de requinte - as coisas têm mesmo que parecer muito sérias e bondosas.
Quanto à distinção entre os que vão e são do espectáculo e os que não entram nem assistem, tem a ver com o que cada um engole. E aí não há distinção entre mundos mais ou menos desenvolvidos, mas entre indivíduos e a sua estrutura de valores. Não pertencer ao espetáculo não tem, no caso do texto Circus Maximus, o sentido de demissão em relação à sociedade e às suas atividades. Bem pelo contrário: tem a ver com uma atitude ativa que começa com a vigilância, o crescimento pessoal, o sentido de comunidade, a crítica dos sistemas que são impostos, o empenho na construção de formas alternativas e mais genuínas de funcionamento. Nem o Be'emoth nem eu conseguimos ficar deslumbrados com sociedades que produzem coisas muito bonitas «em casa» e são capazes das maiores atrocidades no quintal dos outros. Ou onde a tão apregoada e aparentemente praticada democracia é manipulada muito acima das cabeças dos cidadãos.
Isto pode soar a generalização, mas corresponde ao que vai sucedendo por este mundo. A salvar o quadro, estão sempre as pessoas que pensam e agem de forma independente e não deixam os créditos da sua admiração em quaisquer fogos de artifício. O Skopos e o Be'emoth tentam ser assim e o seu ortónimo tem experimentado as consequências que isso tem na prática. E não têm dúvidas nenhumas que o Homem Só (nome que soa a independência) também é capaz de o fazer.
Um abraço da comunidade