III
Carlos e Inês, num dos
intervalos de praia, resolveram explorar mais um pouco a capital maltesa. Decidiram
então visitar uma das muitas igrejas da ilha. Dirigiram-se à igreja de São Paulo
Náufrago. Na escadaria de pedra calcária, uma velhinha com aspecto de mendiga,
vestida de farrapos pretos, cabeça coberta, abeirava-se dos turistas, e de voz
rouca apregoava imperativamente:
- Leve uma agenda! Leve
uma agenda!
Carlos e Inês não se
deixaram intimidar pela insistência quase zangada da velha senhora e acelerando
o passo ligeiramente, passaram a arcada entrando de imediato no templo.
Assim que deram os
primeiros passos, olharam em volta e para os tectos do sagrado edifício, quando,
por detrás de uma coluna do lado esquerdo saiu uma outra velhinha, desta vez de
aspecto mais digno mas também coberta da cabeça aos pés de preto, ralhando:
- Mas o que é isto!?
Ahn!? Que pouca vergonha vem a ser esta, hein!?
Carlos e Inês estacaram,
franziram os respectivos sobrolhos em ar de estranheza, olharam um para o
outro, congelaram a expressão por alguns segundos, cinco para ser mais exacto,
e repararam que a beata se dirigia a eles, mais precisamente a Inês:
- Cubra-se, sua desavergonhada!
Cuuuuubra-se! Dizia, prolongando os “uu” em vibrato
aflautado. Está na casa de Deus Nosso Senhor, da Virgem Maria sua esposa e mãe
do Cristo crucificado no madeiro e de São Paulo Náufrago Apóstolo de Jesus!
Disse de uma vez só sem pausas para respirar, ficando muito vermelha.
Não tem vergonha!?
Cuuuuubra-se imediatamente!
Inês, por causa do
imenso calor mediterrânico que se fazia sentir, trazia um vestido de alças de
algodão até aos pés, deixando no entanto os ombros descobertos, só teve tempo de
perguntar:
- Mas como? Onde?
- Então não viu a minha
irmã lá fora? Questionava indignada a devota. Devia ter-lhe pedido um lenço
para se cobrir!
- Lá fora só estava uma
velhinha a mendigar. Argumentava Carlos.
- Qual mendigar, qual
carapuça! Exclamava de dedo indicador espetado. Aquela é a minha irmã. Vá lá
ter com ela para lhe arranjar um lenço.
Carlos, receoso que
acontecesse alguma coisa a Inês acompanhou-a até à escadaria exterior onde se
encontrava a irmã da beata, que parecia esperá-los.
- Então - disse em voz
roufenha – vieram buscar a agendazinha?
- Não. Disseram ambos em
coro.
- Vim buscar um lenço
para poder entrar na igreja. Disse Inês.
- Se comprar a agenda,
leva o lenço de oferta. Resmungou a geronte como se tal fosse óbvio. E continuou:
- Mas tem de mo devolver
à saída, avisou de dedo indicador em riste, fazendo agora sim, lembrar a sua
irmã que estava de sentinela dentro da igreja.
Carlos, respirou fundo,
meteu a mão no bolso das calças e pagou a agenda com uma nota, quando esta
ripostou do nada:
- Dinheiro dentro das
calças é pior que mulher na igreja com vestido de alças. Rematou.
E tendo dito isto cuspiu
no chão com ar de desprezo. Murmurou qualquer coisa, que Inês julgou ser um
padre nosso, e entregou uma agenda da grossura de um livro, cuja capa tinha uma
imagem antiga de um papa falecido, encimada por uma senhora de Fátima de cabeça
levemente pendente para um dos lados e vestida de branco.
- Então e o lenço? Disse
Carlos já meio irritado com aquela conversa do dinheiro nas calças.
- Abra o livro. Rosnou a
velha.
Inês então abriu o livro
que era completamente oco, contendo apenas um lenço preto dobrado.
- Vá, agora cubra-se e
não pequem muito! Seus hereges, filhos do demo! Aposto que nem são
casados. Murmurou quando o casal já se encontravam no cimo das escadas.
Os dois voltaram a entrar
na igreja. Assim que meteram o pé dentro do edifício, a segunda velhinha, de um
salto, sai novamente de trás da coluna, barrando o caminho e mirando Inês de
alto a baixo em silêncio, para se certificar que esta estava, agora sim,
vestida condignamente. Satisfeita, abriu as pernas, mais do que seria suposto
ser possível a uma senhora daquela idade e, com um passo lateral similar aos
dos praticantes de Tai-chi, sempre a mirar o casal, voltou a esconder-se atrás
da coluna já à espreita dos próximos turistas, desta vez um casal de lésbicas
inglesas católicas, que vinham vestidas a preceito, de preto, crucifixo ao
pescoço, véu e sem maquilhagem aparente,benzendo-se com o sinal da
cruz ao entrarem no monumento. A beata olhou para Carlos e Inês com um sorriso
sarcástico e apontou com a cabeça para as lésbicas, como que a dizer; vêm,
assim é que deveriam ter feito, seus sectários.
Inês começou a
sentir-se incomodada por uma das inglesas, que não parava de olhar para ela,
disse ao namorado:
- Se calhar é melhor
irmos andando. Já estou farta desta igreja e do raio das beatas.
Carlos acedeu. Quando se
iam embora, um pé sai de trás de uma outra coluna mal iluminada, fazendo tropeçar o rapaz que, ao tentar equilibrar-se,
espeta um prego no pé, que estava solto de uma tábua no chão. Carlos sentiu a
carne a rasgar dentro do sapato e gritou.
- Puta que pariu! Merda!
Felizmente, proferiu
estas indecorosas palavras em português, ao que a beata apesar de se ter
apercebido que algo se passava, não entendeu o baixíssimo vernáculo em que
foram proferidas. No entanto, ao abordar Carlos que estava sentado no chão a
verificar o ferimento, uma outra beata, anã, que entretanto saíra de trás
da coluna mal iluminada, juntou-se à primeira e proferiu:
- É castiiiigo! Foi Deus
Nosso Senhor que o castigou por ter entrado na igreja sem lenço!
- Mas quem entrou na
igreja sem lenço foi ela! Disse Carlos cheio de dores apontando para Inês.
- Paga o justo pelo
pecador é o castigo vindo do Senhor! Rimou cheia de perfídia, a harpia.
- É melhor irmos ao
hospital ou centro de saúde tratarmos desse golpe que me parece ser fundo.
Inês então, ajudou Carlos
a levantar-se e, amparando-o, saíram da igreja e dirigiram-se onde pudessem
tratar da ferida que obrigava agora Carlos a coxear.
©2013 Alexandre Rodrigues
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