Carlos e Inês entraram no centro de saúde. Este encontrava-se completamente vazio com excepção de um
grupo de quatro funcionários que entretinham o tédio jogando voleibol num campo
improvisado na ampla sala de espera, cuja rede, que separava as duas equipas
era um lençol dobrado e preso a dois suportes de soro fisiológico ligados a dois
pacientes que serviam de árbitros da partida, muito maus diga-se, mais por desconhecerem as regras do jogo que pela sua limitada mobilidade e falta de vista de um deles que tinha deixado os óculos no ambulatório. Depois das formalidades oficiais
hospitalares, e de algumas perguntas secas sobre o ferimento, tais como "porque é que caiu", ou "então não viu onde punha os pés", Carlos esperou cinco
minutos e trinta e nove segundos até o chamarem para o consultório onde o médico, um homem baixo e
atarracado mas de tronco rígido, mãos espessas, envergando uma
camisa grossa aos quadrados por baixo da bata e botas de borracha nos pés, já o
esperava. Carlos entregou o papel que lhe haviam dado na recepção. Os dedos
do médico, demasiado grossos, não conseguiam apanhar o papel e por várias vezes
o deixou cair no chão, amaldiçoando-o, usando
uma linguagem rude própria de um lobo-do-mar. O médico acendeu um cigarro
e colocou-o no canto da boca, fechando o olho por onde o fumo passava, enquanto
esticava os braços para conseguir ler a minúscula letra da enfermeira
recepcionista e disse, em português, com uma voz grossa de aguardente e tabaco:
- Pode-me segurrar o papel p'a ê conseguirre lerre, amigue? É c'us mês olhes já nã serrem o qui érrem dantes! disse ele em bom sotaque setubalense deixando Carlos boquiaberto.
Depois de várias tentativas para ler o documento, algumas tossidelas bronquicas, ameaços de escarros, e alguns murmúrios enquanto lia, finalmente disse:
-Mostre lá o pézinhe. Dexe lá ê verr'isse sacha'vorr.
Agarrou no pé já descalço de Carlos, deixou cair alguma cinza do cigarro no corte, tossiu e afirmou peremptório:
- Vou terr d’o operrar
amigue. O corrte ‘tá infectade e abrriu. Temes d’desinfectarr isse e coserre, disse com os dentes muito cerrados num esgar de quem está com dores. E dizendo isto puxou o fumo do cigarro fazendo um ruído como quem sorve sopa. - Ma nã se
prreocupe ahn, ê cá antes de serr médique fui pescadorr e cosi munta rede de pesca fininha . Foi a melhorr escola de medicina que tive! Ahua! Isse e abrrirr a barriga dos pêxes p'a lhes tirrarr as trripas! E interjectando expirou o fumo para a cara de Carlos.
Carlos sentiu um suor
frio a percorrer-lhe as costas. À sua frente estava um profissional de medicina
que mal conseguia agarrar um papel, imagine-se uma agulha! E que raio de
tamanho de agulha conseguiria ele agarrar!? Já para não falar na absurda falta de vista.
- O doutor é português?
Indagou.
- Nã, amigue! Maltês dos
quatrre costades, e naturral da ilha de Goze, com munt'orrgulhe!! Aprrendi perrtuguês com um ex-clega pescadorre!
- De Setúbal? Perguntou
Carlos levado pela lógica do sotaque sadino.
- Nã! Qual quê!!
Holandês!! Nã se nota do sotaque? Disse apontando para a boca. Ê cá fale perrtuguês com setaque holandês!
Esse mê ex-clega é que pescou munt’em Porrtugal. Duma trraineirra da Póvoa do
Varrzim, no norrte do país.
Carlos decidiu não
contradizer o médico, até porque na situação em que se encontrava não era
ajuizado enervá-lo, tendo em conta que este o iria operar e aparentava ser
daquelas pessoas cujo feitio ferve em pouca água.
- Prrontes! Volte lá
parra a sala de esperra c’a gente já o chama, tá beim?
Carlos coxeou até à sala
de espera e contou a Inês o sucedido. Esta retorquiu:
- Só espero que não
tenhas de ficar muitos dias de cama, senão temos as férias estragadas.
- Penso que não.
Respondeu Carlos por descargo de consciência, quando no fundo sentia-se
preocupado com o desfechar deste episódio. No entanto, os seus receios quanto à
estadia forçada na cama do hotel eram completamente infundadas. Depois da operação que durou
cinco horas, quatro das quais para o médico colocar a linha na agulha, Carlos e
Inês regressaram ao hotel para jantar e descansar.
©2013 Alexandre Rodrigues
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