V
Depois da operação, Carlos encontrava-se de pé enfaixado e amparado
por duas muletas, tendo sido avisado por uma das enfermeiras que devia apenas
evitar a areia das praias para não ganhar nenhuma infecção. O casal resolveu
então ir a Anchor Bay, recomendada pelo recepcionista do hotel, onde foi-lhes
dito, havia uma aldeia-cenário de um antigo filme de Holywood cujo personagem
principal era um marinheiro de desproporcionados antebraços que só comia
espinafres de lata e tinha uma namorada por demais subnutrida. Não se sabe se a
subnutrição da sujeita era devia ao facto de não comer espinafres, vegetal
monopolizado pelo marinheiro, ou se por usar substâncias psico-trópicas
importadas clandestinamente da América do Sul pelo maior rival do namorado, que
a tentava brutalmente seduzir, utilizando para tal as ditas substâncias de
apsecto farinhento e branco. Certo era que se recusava terminantemente a comer
os duvidosos hamburgueres do senhor Cobardolas que havia montado negócio em
Anchor Bay depois de problemas que havia tido quando os dois marinheiros
rivais, o dos antebraços e o brutamontes, resolveram abrir restaurantes do
género, rivalizando entre si, roubando clientela um do outro tendo acabado em
luta de comida, aproveitada então como activos sólidos e liquidos pelo senhor
Cobardolas para abrir o seu próprio estabelecimento comercial aliás famosissimo
na aldeia, talvez por ser o único, depois do desastre comercial que foram as
venturas gastronómicas dos dois marinheiros rivais.
Ao chegarem à aldeia, Carlos e Inês foram logo interceptados
pelo marinheiro brutamontes que lhes tentou vender substancias ilegais de
primeira classe. Carlos reparou que o brutamontes era parecido com a velhinha
da escadaria da igreja que lhes vendera a falsa agenda com o lenço dentro, e rejeitando
qualquer tipo de negócio com o sujeito, este ficou nitidamente mal-disposto, de
tal modo que lhes atirou com algumas altercações menos elegantes, especialmente
à namorada de Carlos que corou valentemente, mesmo estando fortemente bronzeada
do sol da ilha de Malta e jurou vingança do casal.
Mais à frente, o famoso marinheiro dos antebraços
desproporcionados, zarolho e de cachimbo nos beiços havia montado um espetáculo
de rua para os turistas, que consisitia basicamente em largos e pesados
objectos que eram atirados ao ar, esmurrados e transformados pelo mareante em
“souvenirs” e posteriormente vendidos aos turistas. Um dos pontos altos deste
espetáculo eram as ancoras de petroleiro compradas nas sucatas cingalesas de
navios mercantes, que eram transformadas, pelo processo atrás descrito, em ferraduras com
a inscrição “Tifkira ta ‘Malta”, isto
depois de ter esmurrado um mastro em madeira de um veleiro françês em molas de roupa e uma chaminé de um transatlântico em
anzóis de pesca.
No final do espetáculo Carlos comprou algumas ferraduras
para distribuir pelos amigos e familiares e entabulou conversa com o marinheiro
que se queixou da falta de trabalho no mar, primeiro desde que os navios
mercantes deixaram de aportar mais frequentemente na ilha para reabastecer,
depois ainda se dedicou à pesca, mas desde que o país aderira à União Europeia
as coisas estavam mesmo más e lá conseguia fazer algum dinehirito vendendo
“souvenirs” e outras lembranças da ilha.
- Então de onde são? Indagou o marujo enquanto reacendia o
cachimbo, chupando ar que fazia assobiar o aparato e que entretanto começara a
fumegar.
- De Portugal. Disse Carlos.
- Ah sã perrtugueses!! Eh àgorra!! Nã aparrecem muntes de
vocêzes perr aqui!! Disse em português e no mesmo sotaque setubalense do
médico.
- Fala português? Indagou Inês cheia de curiosidade.
- Não me diga que aprendeu com médico do centro de saúde!
Exclamou Carlos meio trocista.
- Quem!? O Costurrêro de Goze!? Ná, amigue!! Eu é que
lh’ensinê tude!! Andê muntes anes à pesca do besugue da Póvoa do Varrzim. Bons
tempes, amigue, bons tempes esses... Disse com alguma emoção. Tá viste aí p’lo
sê pé que já o conheceu!!
- Ah, sim o doutor Scalpello... disse Carlos sem grande
convicção e com alguma dor no pé. Então o senhor é que o pescador holandês que
o médico me falou.
- Holandês, eu!? Nã amigue, ê cá sô belga, da Flandrres!
Esse médique confunde tude. Tamém anda semp’ bêbade!
- Então é daí o sotaque. Gozou Carlos.
Quais sotaque? Mas ê fale com algum setaque!? Que’s verr este
agorra veio p’rraqui p’a m’atentarr a mona!!
- Então e o filme de Hollywood não lhe rendeu nada? Perguntou
Inês cheia de pena do marujo e desviando a convera.
- Nã filha! Aquile só serrviu prra darr dhnêrre a alguns.
Apontava então para a cantina de Cobardolas. E a histórria c’os amarricanes
contarrem da nha pessoa; é tude mentirra!! Ê cá nã come espinafrres de lata. É
couve lombarrda!! Mentirroses!!
- Pronto deixe lá então. Acalmava Carlos o marinheiro. Então
bom dia! Despediu-se.
- Adeuzinhe migas!! E se passarrem p’la Póvoa do Varrzim
digam olá ó mê amigue Toni dos Besugues!!
- Fica prometido! Disse Inês já afastando-se e acenando ao
marinheiro que agora entretinha uma família de turistas húngaros.
O restaurante de Cobardolas encontrava-se cheio de turistas
ingleses que viam ali naquele cantinho, um bocado de casa. Isto porque o famoso
Cobardolas, era de origem inglesa, mais concretamente da cidade de Hull. No
entanto, diziam as más linguas que Cobardolas, por causa do seu vicio no dito
prato, que o fizera famoso, não fazia muito dinheiro com o negócio e tinha ordenados em
atraso e pagamentos aos credores que já o ameaçavam com processos avultadíssimos
em tribunal.
Inês e Carlos encontraram uma mesa vazia, mas ainda cheia
dos restos de comida de uma imensa família de ingleses de Bradford. Quando digo
imensa falo não no tamanho mas na quantidade. Além dos progenitores, eram mais
quatro filhos e um casal de idosos que deveriam ser os avós. Viviam todos numa
casa da câmara municipal, eram todos desempregados ou com actividades
duvidosas, especialmente os mais novos, mas como é da praxe e graças à
generosidade dos governos da coroa britânica em relação aos laxistas, recebiam um grande numero de benefícios, incluindo a renda da casa, a creche do mais pequeno ainda de colo,
e até dizia-se as contas de telemóvel, mais os abonos dos quatro filhos. Como
tal, ainda sobrava para umas viagens “low-cost” com tudo incluído num resort,
mais as despesas no destino pagas pela reforma do casal de idosos reformados da
defunta indústria têxtil do norte de Inglaterra.
Passado algum tempo lá foram servidos pela namorada do
marinheiro, que se arrastava pelo recinto, com grandes olheiras, rugas a mais
para suposta idade e com ar de grande enfado.
- Digam lá, fáxavor! Resmoneou a personagem.
- São dois “Super-Cobardolas” e duas latas de “Cola”. Pediu Carlos.
- É só!? Perguntou displicentemente,congelando um esgar de
repulsa, pois estava habituada às grandes doses pedidas pelos turistas anglo-saxónicos, que por norma se gostam de empanturrar em comidas pouco menos que
saudáveis e totalmente desaconselhadas pelos médicos, estes mais para evitar
despesas de tratamentos cardiovasculares no serviço nacional de saúde, que por genuíno
interesse pelo bem-estar dos cidadãos da velha Albion.
- É só, obrigado. Disse Inês com um leve sorriso.
A namorada do marujo lá se arrastou até à janela que dava
para a cozinha e gritou a ordem de serviço.
Passados alguns minutos, sete e seis segundos, a senhora lá
trouxe o pedido, indo o caminho todo a tossir para os hambúrgueres do casal que
se entreolhava abismado. Devido à fome que traziam, os dois rapidamente deglutiram
aquela mistela de pão, carne picada e alguns vegetais coberta com molho de
tomate, maionese e pickles.
Quando se levantaram, começaram a sentir a cabeça
muito leve, a sentirem-se extremamente bem, eufóricos até, e resolveram sair
para a rua dirigindo-se ao cais onde o barco que os trouxera pela costa até Anchor
Bay já os esperava. Mais uma vez foram abordados pelo brutamontes barbado, de voz rouca que
lhes propôs a compra de substâncias ilegais. Carlos que depois da refeição
tinha perdido o medo, empurrou o marujo de compleição bastante sólida, que por
sua vez desferiu uma punhada no alto da cabeça do português tendo este ficado
estendido no chão sem sentidos. Inês reagiu imediatamente pontapeando o galalau no meio das
partes pudentes. Este, pegou na frágil figura pela cintura com uma mão apenas e
atirou-a ao chão para cima do desmaiado namorado. Imediatamente, detrás de um
poste de iluminação saiu um oficial da “Pulizija” que imediatamente algemou o
par de namorados por desacato à ordem pública e por posse de substância ilegal,
sub-repticiamente colocada no bolso de Carlos pelo sevandija agigantado.
©Alexandre Rodrigues 2013
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