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sexta-feira, 8 de março de 2013

Sonho de uma Noite de Inverno




"Confundi a minha vida com o que escrevia.

 Ao ponto de deixar de saber o que era uma coisa,

o que era outra. Não só escrevia o que me acontecia,

como me acontecia o que escrevia."



Pedro Paixão, Quase Gosto da Vida que Tenho



Esta noite sonhei contigo, éramos mais novos, tu pelo menos eras. Não podemos confiar muito nos sonhos, até porque eles são produto do cansaço, e das tentativas, vãs no meu caso, do cérebro para arrumar as ideias. É como uma limpeza diária do chão. 


Terias não mais de vinte, vinte e um anos, mais madura do que quando nos separámos, mas com um lindo sorriso, adulto e confiante. O sonho foi como que uma porta aberta para outra realidade. Um universo alternativo a esta espécie de realidade fictícia em que vivo permanentemente desde que nos deixámos de ver há muitos, muitos anos atrás. Foi como se a vida continuasse normalmente, algo que nunca aconteceu verdadeiramente. Tinhas aceite o meu convite para jantar em casa dos meus pais. O meu pai tinha o carro que sempre sonhei ter. Essa imagem do carro levou-me a pensar se este universo paralelo em que vivo actualmente não teria afinal acontecido antes da nossa separação. De qualquer modo lá estavas tu, sentada à espera que o almoço ficasse pronto, o meu pai, uns vinte anos mais novo a conversar na sala contigo. Eu por qualquer razão, nervos talvez, estava impaciente, irritado, andando de um lado para o outro, acho que ralhando com a minha mãe sobre o almoço atrasado, com medo que te aborrecesses e te fosses embora de vez. Lembro-me apenas de ir para a sala onde estavas sentada e me teres sorrido. Sorriste de uma maneira que eu nunca te vi sorrir, um sorriso tranquilizador, mas ao mesmo tempo transmissor da tua receptividade à minha insistência em te ter para mim, apesar da tua recusa.  


Depois tive outro sonho dentro do mesmo sonho, no qual tínhamos ido visitar uma qualquer cidade histórica na Áustria, em excursão com o nosso grupo de amigos comuns dos tempos de adolescentes. A certa altura, não sei porquê, perdi-me do grupo e de ti. Sei que perdi imenso tempo com qualquer coisa, acho que um palácio real dos Habsburgos cheio de quadros... os sonhos por vezes tornam-se turvos, os meus pelo menos são assim. Sei que depois apanhei o metro da cidade, que era montanhosa, de ruas em espiral e quando voltei a encontrar o grupo, estavam todos na praia. Imagina, praia na Áustria. E mediterrânica ainda por cima, de uma mar turquesa, cheia de escarpas calcárias, com arbustos e mato rasteiro tentando vencer a força da gravidade e a terra solta onde se haviam agarrado. Por vezes também me sinto como esses arbustos, tento agarrar-me atabalhoadamente à escarpa da vida que me arrasta para o abismo. E depois ganho formas estranhas que toda a gente acha admiráveis mas que não são nada elegantes. Pior ainda, se a escarpa for batida pelo vento e pela chuva, o que na realidade acontece. A vontade é muitas vezes desistir e abraçar o abismo. 


Quando te voltei a avistar no meio da multidão de veraneantes espalhados pelas escarpas, ignoraste-me, como muitas vezes o fizeste no passado. Ou eu assim pensava. Nunca percebi as mulheres verdadeiramente. Senti uma ansiedade muito grande e acabei por acordar cheio de vontade de te ver de novo.


Desde o dia em que nos deixámos de ver, a minha mente migrou para paragens muito distantes. O meu corpo foi bem mais lento, porque vive sem a mente, e tem vagueado por aí sem rumo aparente. Levou onze anos a seguir o caminho da mente, e mais uns quantos até a apanhar. E quando a agarrou, descobriu que era tarde demais para voltar atrás. Descobriu então que viveu em piloto-automático todos estes anos, sem ter coragem para enfrentar demónios e fantasmas do passado, nem dar um rumo novo ao seu futuro, antes navegando ao sabor da corrente do rio que inevitavelmente o levará ao seu derradeiro fim.



 “Sei pouco sobre as mulheres e cada vez sei menos. 
Nem sei – ou quando sei já é tarde demais – se gostam de mim e, quando isso acontece, não chego a saber o que isso possa querer dizer. 
Há muitas maneiras de gostar, é verdade. 
Quando se gosta de um casaco é ele o que trazemos mais vezes. 
Com as mulheres é diferente. 
O que importa, acho eu, não é nem o que elas dizem nem o que elas fazem mas o que elas não dizem e pensam fazer. 
É preciso adivinhar e eu sou muito mau a adivinhar.” 


                                                               Pedro Paixão, Viver Todos os Dias Cansa

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