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sexta-feira, 1 de março de 2013

Férias em Malta - 6ª e últíma parte.




VI

Carlos acordou no chão de cimento do cárcere da esquadra de Policia para onde tinha sido levado junto com a namorada. Esta encontrava-se a dar os últimos dados ao agente Galdes que, lentamente  e de maneira enervante com apenas um dos indicadores, pois era o único dedo que tinha na mão direita depois de um acidente com uma pistola de fabrico paquistanês, martelava no teclado do computador; Poc… poc… … … poc, poc… poc… … … … poc. 


- E como se soletra Chávenas? Perguntou o agente.
- Pela sétima vez, C-H-A-Assento agudo no A-V-…
- Assento agudo no A? Mas eu não tenho assento para o A no meu computador. Isto veio importado da China através de um agente turco que os envia pela Bulgária para o Reino Unido, e a nossa Policia importa de lá através de um acordo com a “Garda” da Irlanda do Norte. Além disso só consigo carregar numa tecla de cada vez - queixava-se – E para adicionar insulto à injúria, nem consigo fazer as maiúsculas!
- V-E-N-A-S. Continuava Inês, suspirando de enfado. 
- Vocês portugueses também é só assentos e tils e sei lá que mais. 
- Também quer contribuir para o acordo ortográfico, senhor agente? Rosnou exasperada a rapariga.
- Eu não me quero meter nessas coisas. Sabe, tenho muito com que me preocupar aqui por Malta. Respondeu o polícia.
- Não duvido. Computadores, então, devem ser uma dor de cabeça para si. Ironizou Inês de novo.
- Nem me fale nisso. Quando já estava a aprender a colocar papel na máquina de escrever, pimba, tiram-ma da secretária e colocam isto na minha frente. Já lá vão quase quinze anos e ainda tenho medo de mexer nestas coisas. 
- Pois, já deu para perceber. Disse Inês, contendo a vontade de esganar o agente da ordem.
- E com esta conversa toda já me perdi. Onde é que nós íamos? Perguntou Galdes.


Entretanto, Carlos, que tinha acordado, fora ajudado a levantar-se do chão pelo seu colega de cela, um siciliano de nome Salvattore Mandanici também ele acusado de posse de droga e arma de fogo que tratou de explicar ao português, ainda baralhado por causa da contusão, que este se encontrava preso num posto de Polícia em Malta.
Carlos ficou preocupadíssimo porque iria perder o voo de volta a casa, mas acima de tudo com o que iriam pensar dele quando soubessem da sua prisão por posse de droga. Ele que nunca tinha tocado em tal coisa. E que terrível desgosto iria dar à sua pobre mãe. O siciliano, emocionado ao ouvir as palavras desgosto e mãe na mesma frase, colocava as palmas das mãos uma na outra e abanava-as para a frente e para trás enquanto as lágrimas lhe escorriam pela face entristecida. Ainda de voz embargada comentou baixinho com Carlos: 


- Amigo, esta noite sais daqui comigo. Eu ajudo-te a fugir, ou não me chame Salvattore Mandancini, dos Mandancini de Messina, Sicília. Mãe alguma deve sofrer o desgosto de ter um filho preso. Eu sei bem o que isso é porque quatro dos meus irmãos estão presos em Itália junto com o meu pai, apenas porque temos um negócio familiar e não fazíamos mal a ninguém. Excepto aos invejosos dos Condrò que nos denunciaram, depois de termos ajustado contas com um deles por causa de umas lojas na nossa cidade. Tenho tudo planeado – continuou ele – a fuga, um barco à espera na costa, e zarpamos daqui para fora. O barco é russo, vem de fazer umas entregas de víveres na Líbia e na Síria e vai passar por Malta esta noite, a caminho da Rússia passando ao largo de Portugal. O que me dizes? 


- E a minha namorada? Perguntou Carlos um pouco nervoso.
- Queres que me livre dela? Se quiseres, arranja-se mas tens de pagar porque é um serviço à parte.
- Não, não! Exclamou Carlos amedrontado. Ela vai connosco. Só não sei onde ela está.
- Guarda!! Guarda!! Gritou muito alto o siciliano. 


Alguns momentos depois aparece um maltês gordíssimo e muito esbaforido.


- Ah, és tu Zampa - Disse o siciliano que conhecia mais de metade dos polícias da ilha - Sabes onde pára a namorada aqui do português? O rapaz está preocupado com a miúda. 
- Está a prestar declarações ao Galdes. Já sabes como é. Está para durar… Mas assim que acabar, pode visitar o rapaz. Isto se também não for presa.


Mais tarde, muito mais tarde, Inês veio visitar Carlos que lhe explicou come se processaria a fuga. Inês, apesar da apreensão inicial, concordou. Afinal sempre seria melhor do que passar o resto da existência a fazer declarações ao agente Galdes que só lhes conseguiu sacar as identidades ao fim de três horas a matraquear no computador com um dedo. Combinaram então encontrar-se na praia de Anchor Bay, onde o siciliano já tinha um homem à espera que os levasse de barco até ao navio russo. 


Nessa noite, um dos comparsas do siciliano entrou embuçado pela esquadra dentro, armado de gás lacrimogéneo e facilmente manietou os agentes que se encontravam de serviço, o gordo e o maneta. O maneta Galdes continuara a teclar lentamente sem ter dado conta do incidente até que o atacante lhe apontou a pistola-metralhadora e lhe gritou que largasse o computador imediatamente ou levava chumbo. Depois de devidamente sedados para não darem o alarme à restante corporação e permitir uns bons minutos ou horas de avanço aos fugitivos, os sicilianos e Carlos dirigiram-se à praia de Anchor Bay, a poucos metros da esquadra, onde se encontraram primeiro com Inês e, um pouco mais tarde com o marinheiro que os havia de levar até ao navio russo. O marinheiro não era outro senão o sujeito dos braços desproporcionados, comedor de vegetais enlatados e vendedor de souvenirs que ficou muito surpreendido de ver aqueles dois turistas ali juntos com Salvattore.


- Eh àgorra! Vierrem todes da choldrra, e irrem todes de escantilhão prr’ó navie do russe! Apá Mandancini, só m’arranjas é encmendas destas!
- Cala-te e rema! Foi a ordem do siciliano para o marinheiro belga, enquanto lhe pagava com latas de couves lombardas trazidas numa mochila pelo sócio embuçado do siciliano, que mais não era que o seu primo Giovanni Mandancini, mandado pelos irmãos e pai do Messinense para o libertar.


A proa do navio já se avistava quando do pequeno barco a remos, Mandancini fez sinais de luz com a sua lanterna portátil. Da ponte do Aкула uma luz respondeu ao código. Momentos depois uma escada de corda foi desenrolada da amurada e os três fugitivos subiram até ao convés não sem antes se despedirem do marinheiro belga, que enviou cumprimentos ao seu amigo Toni dos Besugos, pescador da Póvoa do Varzim.


- Dobro pozhalovat! Ouviu-se imediatamente do convés do navio, tendo um homem de porte atlético e bastante alto, primeiro osculado Salvattore na boca, para depois o abraçar com alguma violência


- Grazie mille, komandhir. Retorquiu Salvattore ao russo.
- E pra qyéque trazes aí essyes doiys? Pode sáber-se?
- O rapaz estava na minha cela em Malta, e estava desesperado porque um brutamontes em Anchor Bay lhe enfiou um saco de coca no bolso sem ele dar por isso. Chama-se Carlos e é português. Veio visitar Malta com a namorada e meteu-se em sarilhos.
- Da! Não mye dyigas que foi matyerial daquyele que trouxyemos de Amyérica do Sul? Disse o comandante, dando imediatamente uma gargalhada.
- Pois é. Disse Salvattore encolhendo os ombros. O brutamontes do teu ex-marujo maltês andou numa refrega aqui com estes nossos amigos.
- Essye melyiante ayinda me deve dyez myil roublos dye un jogo de Pyoker! Se o apanho a jeyito…
- Já sei, já sei, fazes o mesmo que fizeste aos piratas somalis… Disse Mandancini enfastiado.
- Pyelas barbas de Karl Marx!! Gritou apopléctico. Nyet sobrou nenhyum!! Muahahaha! Gargalhava o marujo com malvadez nos olhos coruscantes. Um charuto de dyinamyite naquelas bocas e PUM!! Nyet pyiratas! Ou eu não mye chame Serguey Joseph Ulyianovytch! Disse enquanto brandia o punho fechado da mão esquerda. Que quyeres yentão qyue faça com estes duois?
- Se os puderes deixar em Portugal… É a caminho…- Disse o siciliano a medo – Dava jeito…


Nesse momento, o comandante pegou em Salvattore pelo braço e levou-o para um canto à parte, onde os dois continuaram a conversar, desta vez em voz baixa.


- E o quye é que Serguey ganha com yisso? Serguey tem de ser recompyensado pelo trabalhyinho. Sabes que Serguey não vai a Portugal desde 1975, quando fazyia serviço turyístyico desde Praça Lubyanka em Moscva, até Rua Soeiro Pereira Gomes em Lyisboa - Disse o russo enquanto piscava o olho ao siciliano que ficou com ar de quem não tinha percebido nada – Serguey  era um jovem nesses bons tyempos!! Aguora sou “persona non-grata”, pelas barbas de Fidyel Castro! Disse com algum azedume.
- Alguma coisa se poderá arranjar, até porque o português também me deve a ajuda para sair da prisão. Retorquiu muito naturalmente o siciliano.
- Bem, Serguey precyisa de montar empryesa para lavagem de dyinheiro. Isto de enviar “víveres” para Lyibiya e Syiryia não vai durar para syempre, mas é bem pago e Suiça já não é opção para colocar lucros de operações.
- Eu também tenho alguma “roupa para lavar”, disse o siciliano piscando olho ao russo. Negócios de família, se é que me entendes… Podíamos montar negocio juntos ó Serguey, o que achas?
- Em Portugal, pela barbicha de Vladiymyir Ilyitch Lenine!! Disse o russo entusiasmadíssimo.
- Claro! Queres melhor sitio? Disse o italiano encolhendo os ombros e colocando os polegares de ambas as mãos de encontro aos outros dedos, fazendo balançar os punhos.
- E colocamos aqui o teu amyigo como testa-de-ferro. Nyinguém vai suspeyitar de nada, pelo byigode de Joseph Stalin!! Eheheheh!
- E com um sistema legal mais furado que uma peneira, leis mais laxistas que as de uma República das Bananas e um poder executivo mais corrupto que um gangster albanês, vai ser canja! Exclamava o mafioso siciliano.
- Ayinda o fazem candyidato a uma câmara munyicyipal!! Ou dyeputado!! Muahahahah, pelas sobrancelhyas de Álvaro Cunhal!! Ria-se o russo quase como uma criança entusiasmada.
- Tem de ter sede na ilha da Madeira - Avisou o siciliano em tom mais sério - Na zona franca.
- Claro – concordou o russo – Tudo dyentro da lyegalyidade. Não qyeremos problyemas com nyinguém. Fazemos tal qual os gyestores portugueses. Dyiscrição absoluta. Tudo muyito opaco, como manda a lei em Portugal.
- Mas há uma coisa ó Serguey. Que tipo de negócio?
- Syimples! Bustos! Atirou o russo muito naturlamente.
- Bustos!? Indagou o siciliano muito espantado.
-Da!! Bustos de Lenine, Stalin, Andropov, Castro, Ho Chi Min e até do Kim Il-sung. E matryoskas também. Vyendemos quase tudo na festa do Avante, e o que sobrar, oferece-se como gyesto de boa vontade internacional aos autarcas alyentejanos cuomunyistas.
- Genial ó Serguey!! Não sei como te lembras destas coisas!!
- Não te esquyeças que eu fazia serviços turyistyicos em 1975…
- Já sei, já sei, entre a Praça Lubyianka e a Rua Soeiro Pereira Gomes...
- E vyice-versa – disse o russo arregalando os olhos – E até já tenho um nuome para empryesa de bustos.
- E qual é? Perguntou Salvattore.
- E Pra Qyué Que Lyeva Aí Yesse Buste?
- Quem? Eu!? Espantou-se o italiano.
- Nyet! Idyotta! É o nuome de empresa de bustos.
- Ah! Genial – Aplaudiu o siciliano – Mas temos de convencer ali o nosso amigo a entrar no negócio.
- Iysso Serguey deixa para com Salvattore. Afyinal estás a dever-me essa. Nyet era suoposto trazer convyidados para o meu barco. E Serguey confyia no teu “poder de persuasão” e “charme” italyiano.


Não terá sido preciso muito para convencer Carlos e Inês a entrar no negócio. Afinal Salvattore apenas lhes explicou que seriam sócios de uma empresa de import-export de bustos e matrioskas russos, ficando este e o russo Serguey como sócios-sombra por razões “burocráticas”.
Dois dias depois, um barco pesqueiro português, combinado com o russo, veio buscar o casal ao largo da costa portuguesa. Era a traineira “Imperador” de Tozé dos Besugos. Tendo este sabido que os dois portugueses tinham estado em Malta, quis saber novidades do seu velho amigo marinheiro dinamarquês cuja descrição coincidia com a do esmurrador de souvenirs de braços desproporcionados.


- Dinamarquês!? Perguntaram Carlos e Inês muito espantados?
- Sim! Dinamarquês de Frederikshavn! Então num se bia luogo pelo sotaque!? Carago! Gritou o pescador poveiro, meio enervado.

            
FIM


©Alexandre Rodrigues 2013

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