VI
Carlos acordou no chão de cimento do cárcere da esquadra de
Policia para onde tinha sido levado junto com a namorada. Esta encontrava-se a
dar os últimos dados ao agente Galdes que, lentamente e de maneira enervante com apenas um dos
indicadores, pois era o único dedo que tinha na mão direita depois de um
acidente com uma pistola de fabrico paquistanês, martelava no teclado do
computador; Poc… poc… … … poc, poc… poc… … … … poc.
- E como se soletra Chávenas? Perguntou o agente.
- Pela sétima vez, C-H-A-Assento agudo no A-V-…
- Assento agudo no A? Mas eu não tenho assento para o A no
meu computador. Isto veio importado da China através de um agente turco que os
envia pela Bulgária para o Reino Unido, e a nossa Policia importa de lá através
de um acordo com a “Garda” da Irlanda do Norte. Além disso só consigo carregar
numa tecla de cada vez - queixava-se – E para adicionar insulto à injúria, nem consigo
fazer as maiúsculas!
- V-E-N-A-S. Continuava Inês, suspirando de enfado.
- Vocês portugueses também é só assentos e tils e sei lá que
mais.
- Também quer contribuir para o acordo ortográfico, senhor
agente? Rosnou exasperada a rapariga.
- Eu não me quero meter nessas coisas. Sabe, tenho muito com
que me preocupar aqui por Malta. Respondeu o polícia.
- Não duvido. Computadores, então, devem ser uma dor de
cabeça para si. Ironizou Inês de novo.
- Nem me fale nisso. Quando já estava a aprender a colocar
papel na máquina de escrever, pimba, tiram-ma da secretária e colocam isto na
minha frente. Já lá vão quase quinze anos e ainda tenho medo de mexer nestas
coisas.
- Pois, já deu para perceber. Disse Inês, contendo a vontade
de esganar o agente da ordem.
- E com esta conversa toda já me perdi. Onde é que nós
íamos? Perguntou Galdes.
Entretanto, Carlos, que tinha acordado, fora ajudado a
levantar-se do chão pelo seu colega de cela, um siciliano de nome Salvattore
Mandanici também ele acusado de posse de droga e arma de fogo que tratou de explicar
ao português, ainda baralhado por causa da contusão, que este se encontrava preso
num posto de Polícia em Malta.
Carlos ficou preocupadíssimo porque iria perder o voo de
volta a casa, mas acima de tudo com o que iriam pensar dele quando soubessem da
sua prisão por posse de droga. Ele que nunca tinha tocado em tal coisa. E que terrível
desgosto iria dar à sua pobre mãe. O siciliano, emocionado ao ouvir as palavras desgosto e mãe
na mesma frase, colocava as palmas das mãos uma na outra e abanava-as para a
frente e para trás enquanto as lágrimas lhe escorriam pela face entristecida.
Ainda de voz embargada comentou baixinho com Carlos:
- Amigo, esta noite sais daqui comigo. Eu ajudo-te a fugir,
ou não me chame Salvattore Mandancini, dos Mandancini de Messina, Sicília. Mãe
alguma deve sofrer o desgosto de ter um filho preso. Eu sei bem o que isso é
porque quatro dos meus irmãos estão presos em Itália junto com o meu pai,
apenas porque temos um negócio familiar e não fazíamos mal a ninguém. Excepto
aos invejosos dos Condrò que nos denunciaram, depois de termos ajustado contas
com um deles por causa de umas lojas na nossa cidade. Tenho tudo planeado – continuou ele – a fuga, um barco à
espera na costa, e zarpamos daqui para fora. O barco é russo, vem de fazer umas
entregas de víveres na Líbia e na Síria e vai passar por Malta esta noite, a
caminho da Rússia passando ao largo de Portugal. O que me dizes?
- E a minha namorada? Perguntou Carlos um pouco nervoso.
- Queres que me livre dela? Se quiseres, arranja-se mas tens
de pagar porque é um serviço à parte.
- Não, não! Exclamou Carlos amedrontado. Ela vai connosco.
Só não sei onde ela está.
- Guarda!! Guarda!! Gritou muito alto o siciliano.
Alguns momentos depois aparece um maltês gordíssimo e muito
esbaforido.
- Ah, és tu Zampa - Disse o siciliano que conhecia mais de
metade dos polícias da ilha - Sabes onde pára a namorada aqui do português? O
rapaz está preocupado com a miúda.
- Está a prestar declarações ao Galdes. Já sabes como é.
Está para durar… Mas assim que acabar, pode visitar o rapaz. Isto se também não
for presa.
Mais tarde, muito mais tarde, Inês veio visitar Carlos que
lhe explicou come se processaria a fuga. Inês, apesar da apreensão inicial,
concordou. Afinal sempre seria melhor do que passar o resto da existência a
fazer declarações ao agente Galdes que só lhes conseguiu sacar as identidades
ao fim de três horas a matraquear no computador com um dedo. Combinaram então
encontrar-se na praia de Anchor Bay, onde o siciliano já tinha um homem à
espera que os levasse de barco até ao navio russo.
Nessa noite, um dos comparsas do siciliano entrou embuçado pela
esquadra dentro, armado de gás lacrimogéneo e facilmente manietou os
agentes que se encontravam de serviço, o gordo e o maneta. O maneta Galdes
continuara a teclar lentamente sem ter dado conta do incidente até que o atacante
lhe apontou a pistola-metralhadora e lhe gritou que largasse o computador imediatamente
ou levava chumbo. Depois de devidamente sedados para não darem o alarme à restante
corporação e permitir uns bons minutos ou horas de avanço aos fugitivos, os
sicilianos e Carlos dirigiram-se à praia de Anchor Bay, a poucos metros da
esquadra, onde se encontraram primeiro com Inês e, um pouco mais tarde com o
marinheiro que os havia de levar até ao navio russo. O marinheiro não era outro senão o sujeito dos braços
desproporcionados, comedor de vegetais enlatados e vendedor de souvenirs que ficou
muito surpreendido de ver aqueles dois turistas ali juntos com Salvattore.
- Eh àgorra! Vierrem todes da choldrra, e irrem todes de
escantilhão prr’ó navie do russe! Apá Mandancini, só m’arranjas é encmendas
destas!
- Cala-te e rema! Foi a ordem do siciliano para o marinheiro
belga, enquanto lhe pagava com latas de couves lombardas trazidas numa mochila
pelo sócio embuçado do siciliano, que mais não era que o seu primo Giovanni
Mandancini, mandado pelos irmãos e pai do Messinense para o libertar.
A proa do navio já se avistava quando do pequeno barco a
remos, Mandancini fez sinais de luz com a sua lanterna portátil. Da ponte do Aкула uma luz
respondeu ao código. Momentos depois uma escada de corda foi desenrolada da
amurada e os três fugitivos subiram até ao convés não sem antes se despedirem
do marinheiro belga, que enviou cumprimentos ao seu amigo Toni dos Besugos,
pescador da Póvoa do Varzim.
- Dobro pozhalovat! Ouviu-se imediatamente do convés do
navio, tendo um homem de porte atlético e bastante alto, primeiro osculado Salvattore
na boca, para depois o abraçar com alguma violência
- Grazie mille, komandhir. Retorquiu Salvattore ao russo.
- E pra qyéque trazes aí essyes doiys? Pode sáber-se?
- O rapaz estava na minha cela em Malta, e estava desesperado
porque um brutamontes em Anchor Bay lhe enfiou um saco de coca no bolso sem ele
dar por isso. Chama-se Carlos e é português. Veio visitar Malta com a namorada
e meteu-se em sarilhos.
- Da! Não mye dyigas que foi matyerial daquyele que
trouxyemos de Amyérica do Sul? Disse o comandante, dando imediatamente uma
gargalhada.
- Pois é. Disse Salvattore encolhendo os ombros. O brutamontes
do teu ex-marujo maltês andou numa refrega aqui com estes nossos amigos.
- Essye melyiante ayinda me deve dyez myil roublos dye un jogo
de Pyoker! Se o apanho a jeyito…
- Já sei, já sei, fazes o mesmo que fizeste aos piratas
somalis… Disse Mandancini enfastiado.
- Pyelas barbas de Karl Marx!! Gritou apopléctico. Nyet
sobrou nenhyum!! Muahahaha! Gargalhava o marujo com malvadez nos olhos coruscantes.
Um charuto de dyinamyite naquelas bocas e PUM!! Nyet pyiratas! Ou eu não mye
chame Serguey Joseph Ulyianovytch! Disse enquanto brandia o punho fechado da
mão esquerda. Que quyeres yentão qyue faça com estes duois?
- Se os puderes deixar em Portugal… É a caminho…- Disse o
siciliano a medo – Dava jeito…
Nesse momento, o comandante pegou em Salvattore pelo
braço e levou-o para um canto à parte, onde os dois continuaram a conversar, desta vez em voz baixa.
- E o quye é que Serguey ganha com yisso? Serguey
tem de ser recompyensado pelo trabalhyinho. Sabes que Serguey não vai a Portugal
desde 1975, quando fazyia serviço turyístyico desde Praça Lubyanka em Moscva,
até Rua Soeiro Pereira Gomes em Lyisboa - Disse o russo enquanto piscava o olho
ao siciliano que ficou com ar de quem não tinha percebido nada – Serguey era um jovem nesses bons tyempos!! Aguora sou “persona
non-grata”, pelas barbas de Fidyel Castro! Disse com algum azedume.
- Alguma coisa se poderá arranjar, até porque o português também
me deve a ajuda para sair da prisão. Retorquiu muito naturalmente o siciliano.
- Bem, Serguey precyisa de montar empryesa para lavagem de
dyinheiro. Isto de enviar “víveres” para Lyibiya e Syiryia não vai durar para
syempre, mas é bem pago e Suiça já não é opção para colocar lucros de operações.
- Eu também tenho alguma “roupa para lavar”, disse o
siciliano piscando olho ao russo. Negócios de família, se é que me entendes… Podíamos
montar negocio juntos ó Serguey, o que achas?
- Em Portugal, pela barbicha de Vladiymyir Ilyitch Lenine!!
Disse o russo entusiasmadíssimo.
- Claro! Queres melhor sitio? Disse o italiano encolhendo os
ombros e colocando os polegares de ambas as mãos de encontro aos outros dedos,
fazendo balançar os punhos.
- E colocamos aqui o teu amyigo como testa-de-ferro. Nyinguém
vai suspeyitar de nada, pelo byigode de Joseph Stalin!! Eheheheh!
- E com um sistema legal mais furado que uma peneira, leis
mais laxistas que as de uma República das Bananas e um poder executivo mais
corrupto que um gangster albanês, vai ser canja! Exclamava o mafioso siciliano.
- Ayinda o fazem candyidato a uma câmara munyicyipal!! Ou
dyeputado!! Muahahahah, pelas sobrancelhyas de Álvaro Cunhal!! Ria-se o russo
quase como uma criança entusiasmada.
- Tem de ter sede na ilha da Madeira - Avisou o siciliano em
tom mais sério - Na zona franca.
- Claro – concordou o russo – Tudo dyentro da lyegalyidade.
Não qyeremos problyemas com nyinguém. Fazemos tal qual os gyestores
portugueses. Dyiscrição absoluta. Tudo muyito opaco, como manda a lei em
Portugal.
- Mas há uma coisa ó Serguey. Que tipo de negócio?
- Syimples! Bustos! Atirou o russo muito naturlamente.
- Bustos!? Indagou o siciliano muito espantado.
-Da!! Bustos de Lenine, Stalin, Andropov, Castro, Ho Chi Min
e até do Kim Il-sung. E matryoskas também. Vyendemos quase tudo na festa do
Avante, e o que sobrar, oferece-se como gyesto de boa vontade internacional aos
autarcas alyentejanos cuomunyistas.
- Genial ó Serguey!! Não sei como te lembras destas coisas!!
- Não te esquyeças que eu fazia serviços turyistyicos em
1975…
- Já sei, já sei, entre a Praça Lubyianka e a Rua Soeiro Pereira
Gomes...
- E vyice-versa – disse o russo arregalando os olhos – E até
já tenho um nuome para empryesa de bustos.
- E qual é? Perguntou Salvattore.
- E Pra Qyué Que Lyeva Aí Yesse Buste?
- Quem? Eu!? Espantou-se o italiano.
- Nyet! Idyotta! É o nuome de empresa de bustos.
- Ah! Genial – Aplaudiu o siciliano – Mas temos de convencer
ali o nosso amigo a entrar no negócio.
- Iysso Serguey deixa para com Salvattore. Afyinal estás a
dever-me essa. Nyet era suoposto trazer convyidados para o meu barco. E Serguey
confyia no teu “poder de persuasão” e “charme” italyiano.
Não terá sido preciso muito para convencer Carlos e Inês a
entrar no negócio. Afinal Salvattore apenas lhes explicou que seriam sócios de
uma empresa de import-export de bustos e matrioskas russos, ficando este e o
russo Serguey como sócios-sombra por razões “burocráticas”.
Dois dias depois, um barco pesqueiro português, combinado
com o russo, veio buscar o casal ao largo da costa portuguesa. Era a traineira “Imperador” de Tozé dos
Besugos. Tendo este sabido que os dois portugueses tinham estado em Malta, quis saber novidades do seu velho amigo marinheiro dinamarquês cuja descrição coincidia com a do esmurrador
de souvenirs de braços desproporcionados.
- Dinamarquês!? Perguntaram Carlos e Inês muito espantados?
- Sim! Dinamarquês de Frederikshavn! Então num se bia luogo
pelo sotaque!? Carago! Gritou o pescador poveiro, meio enervado.
FIM
©Alexandre Rodrigues 2013
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