O meu primeiro carro foi um Citroen.
Um Citroen AX 11 TRE. Um pedaço de aço finíssimo com entranhas de plástico
barato, leve como uma pluma e um volante mono-braço.
Antes de tirar a carta de condução
era o carro que eu mais desdenhava. Eu e o meu amigo Nuno. Passávamos tardes a
falar de automóveis e a conversa declinava irremediavelmente para os Citroen
AX. De como eram maus, de tal modo leves que a lenda urbana corrente era que se
travássemos com demasiada forca, o carro dava uma cambalhota sobre si próprio.
E ter um acidente num era uma sentença de morte certa.
Provavelmente não andaríamos longe da
verdade em relação aos acidentes, até ao dia em que, aos dezanove ou vinte anos
de idade, o meu pai veio perguntar-me se eu queria comprar o Citroen AX do meu
tio António. Por trezentos contos. Ao fim de alguma ponderação eu disse que
sim. Afinal o carro tinha poucos quilómetros, estava muito bem estimado e eu,
sequioso de conduzir e o meu pai desejoso que eu não lhe pedisse o carro
emprestado, cedi.
Como quase todos os primeiros carros
de toda a gente este também tinha as suas particularidades. Por exemplo, as
manobras que tínhamos de fazer para caberem cinco pessoas lá dentro. Umas das singularidades
era que não podia levar gente muito pesada atrás porque inevitavelmente a
suspensão macia típica dos carros desta marca fazia as palas de plástico dos
guarda-lamas traseiros raspar pelo alcatrão e fazendo uma barulheira infernal
nas lombas da Estrada da Rasca que nos levava à Serra da Arrábida, acabando
inevitavelmente o dia ou a noite no Portinho da Arrábida, mais concretamente no
Bar da Mafalda a beber imperiais geladas e a jogar Snooker. Por decoro não vou
revelar o nome das pessoas que se sentavam à frente comigo no banco do pendura.
E só me falhou uma vez numa das crónicas cheias de Inverno da cidade de Setúbal
onde vivia. Dia de chuva torrencial e a Estrada dos Ciprestes alagada a caminho
do trabalho. Ao sair de um semáforo, o carro começou a engasgar-se e passados
alguns metros o motor desistiu. Bobina de ignição molhada. Nada de grave,
apenas uma questão de secagem e pronto, mas eu apanhei uma molha valente com
direito a pés alagados e tudo. Depois mais tarde começou a sobreaquecer,
especialmente no Verão. Levei-o ao meu vizinho Arménio, um verdadeiro artista
da mecânica, e digo isto no melhor sentido do termo, que me descobriu um
termostato em estado terminal, prontamente ectomizado deixando livre curso ao
líquido de arrefecimento fluir dentro do motor. Teve como única desvantagem o
facto de o carro levar mais tempo a atingir a temperatura ótima de
funcionamento, salvando assim o motor de incinerar a junta da cabeça. Um
verdadeiro cirurgião automóvel, o meu vizinho Arménio.
E foi nesse Citroen AX que aprendi a
viajar pelo meu país e a apreciar melhor as suas belezas naturais e a paisagem
humanizada, que diga-se em abono da verdade, em algumas localidades é das mais
belas que já vi. A minha natureza solitária já incipiente desenvolveu-se de
certo modo nesta altura, em que a liberdade de viajar sozinho me possibilitava,
quando os loucos das nossas estradas o permitiam, dar livre curso ao
pensamento. Livre não será bem a palavra certa, porque nessa época o meu
pensamento ainda era algo constrangido pela influência religiosa, mas o
“trade-off” dessa minha existência foram as verdadeiras amizades que fiz nesse
tempo e que ainda hoje perduram. Foi também nessa altura que me dediquei à
fotografia. Comprei uma máquina de rolo totalmente manual para ir aprendendo os
segredos do domínio da luz dentro daquela camara escura. Algo que nunca
consegui totalmente, mas também não me saí mal de todo. Dediquei-me aos
automóveis.
Saboreei
nesta altura, pela primeira vez, o amargo sabor das responsabilidades; pagar um
carro todos os meses, um seguro todos os anos, as manutenções e todas as dores
de cabeça que um automóvel causa aos seus donos. Mas uma coisa é certa, nunca o
Citroen AX numa travagem brusca deu uma cambalhota sobre si mesmo.
© 2014 Alexandre Alves-Rodrigues.
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