Já
aqui me pronunciei acerca de rios e de como estes representam a vida. E de como
somos meros barqueiros que, levados pela corrente dos acontecimentos, tão-somente
nos limitamos a manobrar o barco da forma que nos é possível, parando nas
margens de vez em quando para o contemplar, rir, chorar ou conversar com outros
barqueiros que se cruzam connosco. É nas margens desse mesmo rio que o
barqueiro adormece e é como que levitado para um outro rio, mais turvo, um rio
noturno que flui até à nascente transportando-o a ancoradouros passados onde se
encontra com outros barqueiros, alguns que não vê há muito tempo, outros que já
morreram, outros que fez por esquecer mas que o rio dos sonhos insistentemente o
relembra de que existem. Por vezes são entabulados diálogos, na maior parte das
vezes não. Em algumas das viagens, o ancoradouro passado está envolto numa
bruma desoladora, noutras são os olhos do barqueiro que estão semicerrados e
não enxergam o passado claramente. Talvez por falta de respostas concretas. Talvez
porque tenha deixado amarras em ancoradouros abandonados, ou onde o barqueiro
foi deixado à sua sorte, sem um adeus, sem uma razão plausível.
Mas
este rio não tem foz apesar de correr para a nascente que o barqueiro nunca
alcança… Ou melhor, a foz deste rio é o acordar sereno ou atordoado do
barqueiro depois da sua mente se ter, por momentos ou horas, libertado do corpo
e perscrutado o passado, viajando pelo único flúmen que o transporta até esse
mundo onde a realidade se mistura com a fantasia. E sonhar pode ser tão ou mais
doloroso para o barqueiro do que a realidade. É quando as águas deste rio se
revoltam, como que numa tempestade e o sonho se transforma em pesadelo sem
controlo. Porque acordados todos somos senhores do nosso barco, manobramo-lo
como queremos ou como o rio nos deixa, nem sempre com os melhores resultados é
certo. Mas o rumo, esse somos nós que o indicamos. Em sonhos, a nossa mente é o
mestre da embarcação, a mesma mente que acordada, aprendemos a silenciar, e que
se vinga de nós, qual fantasma de natais passados, levando-nos aos ancoradouros
mais recônditos de viagens passadas e, como um algoz, nos manieta, agarrando-nos
pelos cabelos ao mesmo tempo que nos obriga a descerrar os olhos com tal
violência, que somos forçados, não só a relembrar, mas também a participar no
desolador ato que se desenrola em frente da nossa hesitação e autêntico terror.
Quando isto acontece uma e outra vez, é de todo impossível ao acordar, não nos
lembrarmos que existe um rio que corre para a derradeira foz onde os todos os barqueiros
finalmente adormecem. Pelo contrário ao acordar das viagens ao passado,
quedamo-nos distraídos e esquecemo-nos de apreciar a paisagem, porque uma
triste desolação nos acompanha como uma sentinela muda, encaminhando a melancolia
aos nossos olhos e garantindo que nunca, mas mesmo nunca nos esqueceremos do
passado doloroso.
© 2014 Alexandre
Alves-Rodrigues
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