Amigo de há longos anos, o escritor João Leal, autor de "Alçapão", publicado pela Quetzal, pediu-me amavelmente e para grande surpresa minha, que postasse este seu texto no meu blog.
Foi o Pedro que me apresentou o Revolta na Bounty. Chegadas as férias de
Verão, o meu irmão mais velho encetava jornadas épicas de leitura compulsiva. Ficou
de tal modo entusiasmado as aventuras do capitão Bligh e dos amotinados da
Bounty que me propôs a tentativa de teletransporte para Pitcairn, a ilha
deserta em que os marinheiros revoltosos desembarcaram e de cuja praia ficaram
a ver o navio a arder ao largo. Para isso, deveríamos os dois concentrarmo-nos
ao mesmo tempo no objectivo com o máximo de força possível durante um minuto ou
dois. Alinhei, achando a ideia formidável e cheia de possibilidades. Para
grande decepção dos meus onze anos de idade, no final do período combinado continuávamos
no nosso quarto, cada um na sua cama do beliche.
Se
hoje em dia a Internet permite saber tudo sobre a ilha de Pitcairn, sendo mesmo
possível passear na ilha com o street
view da Google, em meados dos
anos 80 eu e o Pedro só tínhamos o livro de bolso da Europa América, um Atlas
de capa azul do Círculo de Leitores e a nossa imaginação para preencher as
colossais lacunas de informação. Sabíamos, por exemplo, que passados quatro
anos da chegada à ilha tinham morrido sete marinheiros, os seis taitianos e duas das onze
taitianas que acompanharam os amotinados. Acidentes, assassinatos, suicídio e
doenças mortais haviam reduzido a comunidade a dois homens, Ned Young e John
Adams, e a nove mulheres. Tentando evitar a repetição do caos e terror desses primeiros
anos, os dois homens tomaram a Bíblia de bordo do Bounty como referência para o
estabelecimento de ordem. Young ensinou Adams a ler a partir do livro e ambos
acabaram por conseguir converter as mulheres taitianas ao cristianismo.
Os
habitantes de Pitcairn estiveram isolados durante dezoito anos, altura em que
um navio parou por acaso na ilha para se abastecer de cocos. A tripulação do
USS Topaz encontrou uma comunidade organizada e pacífica, em que as crianças
eram alfabetizadas num clima de abundância. Young tinha morrido de doença dez
anos antes e Adams era o único homem. Com ele estavam onze mulheres e vinte e
três crianças.
Certamente
que a Bíblia foi central na vida e no sucesso da comunidade, cuja meia centena
de habitantes atuais são descendentes dos marinheiros amotinados desse
longínquo século XVIII. E é com esse nível de importância que considero esse mesmo
livro na minha história pessoal. Filho de pais que se conheceram na Igreja
Baptista de Leiria, sei que se a Bíblia não existisse, isto é, se a comunidade
baptista não existisse, eu não teria nascido.
Vivi
a infância com a noção de que pertencia a uma minoria religiosa. Tinha a
certeza de que era um dos pouquíssimos iluminados, alguém com uma vantagem
moral sobre os colegas da escola e vizinhos lá da rua. Era óbvio que na iminente
segunda vinda de Cristo, sendo eu justo, seria arrebatado, deixando perplexos
todos os rapazes com quem nesse momento estaria a jogar à bola. Na longínqua
hipótese de morrer antes desse arrebatamento, era certo que iria para o Céu,
onde me iria reunir a todos os outros evangélicos baptistas, os únicos com quem
Jesus estaria disposto a partilhar a eternidade.
Olhava
para todos aqueles que não eram da minha família, ou da minha igreja, como o
“mundo” que eu tinha como missão ajudar a redimir do seu pecado. Tinha a noção,
exacerbando uma marca comum protestante, de que a Igreja Católica era um grupo
de malfeitores dissimulados e tirânicos. Era um “nós” e “eles” que me trazia uma
noção perfeita de identidade: havia alguém para salvar e um adversário mais
poderoso para combater. Ser um exemplo era ponto de honra. Não mentir, não
agredir, ser modesto, ajudar o próximo e exercer compaixão pelos mais fracos do
recreio da escola garantia-me que fazia o que se esperava de um baptista e que
era um menino muito especial aos olhos de Deus.
Se
cá fora, entre os do “mundo”, já era bom, aos domingos na igreja era ainda
melhor. Se lá fora me sentia como um membro de um conjunto de super-heróis de
que dependia a única salvação possível dos habitantes do planeta Terra, lá
dentro, sendo o filho mais novo do pastor, sentia-me realmente especial. Todas
as pessoas me amavam, apaparicavam e creio que nunca voltei a ser tão mimado de
um modo tão generalizado. Para os da minha idade existia o flanelógrafo, um
quadro feito de flanela no qual se colavam figuras com velcro na parte de trás
para contar as histórias bíblicas. Os apóstolos, os profetas, ovelhas, camelos,
anjos, pedras, a Sarça Ardente, a cruz e toda uma miríade de ilustrações que
apareciam para nossa maravilha nessas versões suavizadas daquelas histórias
tantas vezes tão violentas. Cantávamos, também, muito. A minha canção preferida
era a que dizia O meu coração era preto/Mas Cristo aqui já entrou/E o seu
precioso sangue/Tão alvo assim o tornou/E diz na sua palavra/Que em ruas de
ouro eu andarei/Que dia feliz quando eu cri/E a vida eterna ganhei.
Nunca
tive problemas na escola ou no bairro por causa da minha religião. As outras
crianças queriam brincar e as inclinações espirituais dos outros não tinha o
nível de interesse das corridas de bicicleta, dos jogos contra a Rua G, das
pistas de carrinhos desenhadas a giz, de jogar à apanhada, ao espeta, ao
berlinde e às missões de exploração pelas hortas circundantes. Quanto aos
adultos, todos casais jovens pós 25 de abril em bairro económico, eram, no seu
comunismo maioritário, suficientemente contra a Igreja Católica para acharem os
Leais gente boa com uma ligeira condição de excentricidade que até trazia algum
colorido à vizinhança. De resto, só existiam três pormenores menos positivos: chamarem-me
de vez em quando Jeová (um erro de ignorância quase ultrajante), não festejar o
Carnaval (aparentemente era pecado) e perder os desenhos animados que davam ao
domingo de manhã (estava sempre na igreja).
Impressionante
era a vertente de imaginação e aventura à volta das histórias dos profetas e
heróis bíblicos. Guerras, milagres, reis, príncipes e coisas que ninguém me
conseguia explicar. Ler, por exemplo, o início da narrativa de Ezequiel e não
conseguir criar uma imagem para tantas asas e olhos naquelas rodas suspensas no
ar. Admirar o drama de José, que é vendido como escravo pelos próprios irmãos,
e tentar replicar na mente como seria a capa multicor que o pai lhe dera.
Vibrar com a travessia do mar pelo povo israelita em fuga do Egipto, com o
golpe certeiro da pedra atirada por David que derruba Golias, com a
multiplicação dos pães e dos peixes de Jesus, com a pomba a chegar à arca
navegante do Dilúvio, com o ruído das trombetas e das muralhas de Jericó caindo
ao fim da sétima volta ou com Daniel rodeado de leões que não lhe tocavam
porque Deus lhes dizia para não lhe tocar.
Naturalmente
esperava milagres. Coisas mágicas aconteciam e o livro sagrado estava cheio
delas. Se Deus fazia crescer aboboreiras de um modo instantâneo, usava baleias
e fazia discursar um burro era possível que alguma coisa do género me pudesse
acontecer também. Era uma questão de estar atento e de ir tentando, de vez em
quando, pedir-Lhe a Sua intervenção em momentos considerados merecedores e
suficientemente graves. Assim, foi com uma grande dose de tristeza que não vi
atendida a minha prece para que a nossa velha televisão familiar a preto e
branco se transformasse numa a cores em vésperas do campeonato do mundo de
1982. Um pouco também, embora não sendo de longe tão urgente, como quando orei
pedindo para que o meu incapaz olho esquerdo se tornasse tão funcional como o
direito. Claro que existia uma dinâmica mais
normal de oração, uma espécie de serviços mínimos a garantir, que estava mais
afecta ao momento imediato antes de dormir, em que pedia ao Senhor Jesus coisas
banais como a protecção nocturna ou que o dia seguinte corresse bem e que eu
não me magoasse na escola. Partilhei durante os primeiros anos o quarto com o
meu irmão Miguel e era ele que dizia “Vamos orar?” e eu “Sim” e então ele
começava “Senhor Jesus” e eu repetia “Senhor Jesus” e ele “Obrigado por este
dia” e eu “Obrigado por este dia” indo por aí em diante até ao final habitual
“Em nome de Jesus, amém”. Estranhas, decerto, para os meus amigos que lá iam a
casa comer seriam também as orações que fazíamos antes iniciarmos o almoço e
jantar. O meu pai dizia “Vamos orar”, fechávamos os olhos, baixávamos a cabeça
e só começávamos a comer depois de o amém ser dito por todos em uníssono. Por
alguma razão, talvez por serem refeições mais ligeiras, o pequeno-almoço e o
lanche não careciam de agradecimento.
No
Verão ia aos acampamentos em Água de Madeiros, perto da Marinha Grande, em que
me juntava aos meus amigos sazonais baptistas de todo o país. As casas de
madeira espaçadas no pinhal, o campo de futebol, a capela, a praia e os
monitores, a que chamávamos conselheiros, faziam tudo ser suficientemente
diferente do universo Cacém-Amadora-Pero Pinheiro, o eixo da minha vida, para que
eu considerasse aquela semana a melhor do ano. A Bíblia era omnipresente nas
vozes dos adultos que orientavam os pequenos campistas e não era raro que
alguns de nós decidissem dar a sua a vida a Cristo, existindo mesmo aqueles com
a convicção e vontade de se tornarem missionários pelo mundo. Para isso muito
contribuíam as Histórias Missionárias
contadas por uma senhora a quem chamávamos Tia Nieta, cujo talento para segurar
a nossa atenção infantil com as aventuras de homens e mulheres que tinham
arriscado ir para a India, ou para a China, por amor a Deus, era absolutamente
irresistível. Havia também os concursos de destreza bíblica, em que o
conselheiro se colocava de pé virado para nós, que estávamos sentados, e dizia
uma referência bíblica, por exemplo «Mateus 5:24», ao que correspondíamos com a
nossa melhor rapidez no folhear das nossas bíblias, levantando-se o primeiro a
encontrar o texto e ganhando um ponto numa competição que ia acumulando ao
longo da semana.
Apesar
de hoje ser óbvio que eu na altura não estaria a lidar da melhor forma com os
dados à minha disposição, esse era mesmo o meu mundo. Foi um nível de certeza
de que as coisas eram perfeitas que não voltei a experimentar.
Existia,
no entanto, uma outra peculiaridade na minha história pessoal que eu
considerava ainda uma maior vantagem do que pertencer à única religião
verdadeira. Num segundo paralelo com a histórias dos habitantes de Pitcairn, e
tal como John Adams, o meu avô paterno também aprendeu a ler sozinho através da
Bíblia.
José,
natural de Vilela, Cabeceiras de Basto, emigrou para o Brasil em 1926. Daí, foi
para a Argentina, para a província de Misiones, onde conheceu um finlandês cuja
filha mais velha, Joana, haveria de desposar. O meu bisavô Alvar emigrara da
Finlândia, então sob domínio russo, em 1906, incluído num grupo nacionalista
que aproveitou a oferta de terras por parte do governo argentino para tentar
criar uma comunidade que se planeava uma réplica da terra natal. O seu pai, o
meu trisavô, era um capitão da marinha encarregue do farol de uma pequena ilha
no mar Báltico.
As
histórias que me contavam sobre todas estas pessoas, e a minha imaginação,
criavam em mim uma ideia de privilégio que não me coibia de usar. Como é que um
miúdo poderia ficar indiferente quando eu contava que tinha suecos,
finlandeses, alemães, espanhóis, argentinos e italianos no espaço de umas
escassas quatro gerações? Encontros com jaguares, com árvores que falavam e com
índios: quem poderia bater isto? Quando os outros miúdos diziam que iam para a terra, nas férias, eu, que não tinha
terra nenhuma além do Cacém, dizia que não podia, uma vez que a selva da
Argentina ficava demasiado longe para poder ir e voltar a tempo do início das
aulas. Se isto não causasse o nível de impacto projectado, avançava para as
histórias. Quando me apercebia que talvez já estivesse a mentir, o que era
frequente, rematava com um “já não sei, mas acho que foi assim”, confissão de
fingida incerteza que, esperava eu, talvez servisse para apaziguar a tristeza
de Jesus pela minha gabarolice mentirosa.
Era
na figura do meu então recém-falecido avô que eu homologava o exemplo total de
pessoa que eu deveria ser. José, ou Che, como a minha avó lhe chamava, aprendeu
a ler sozinho para poder verificar na Bíblia, por si, o que lhe diziam os
padres. Detentor de um espírito crítico e autodidacta, precisava de compreender
para assinar por baixo. Ao ter aprendido a ler para poder estudar a Bíblia, o conhecimento
travado com um missionário inglês serviu para encontrar uma visão do
cristianismo muito mais próxima da que o seu estudo pessoal lhe tinha trazido e
bem diferente da que o catolicismo lhe apresentava.
Foi
essa necessidade de análise pessoal da Bíblia do meu avô, uma certa ideia de integridade
intelectual, que, de algum modo, acabei por adoptar. O esclarecimento da
verdade divina e terrena eram as coisas mais importantes a ter em atenção. Daí
que as dúvidas bíblicas tenham começado bastante cedo, presumo que para
incómodo dos adultos. Lembro-me de duas situações dessas, as primeiras a quem
ninguém me conseguiu responder. Se, como me tinham dito, tinha sido Moisés a
escrever o Pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia) como é que é
descrita a sua morte no capítulo final de Deuteronómio? E como pôde Deus fazer
com que David, ao fugir de Saul, fizesse da mentira uma parte do Seu plano? E
no planeta Terra, mais próximo, como é que podiam os nossos vizinhos do lado,
sendo ateus, celebrar o Natal? Também não entendia como é que outros vizinhos,
sempre tão bondosos, podiam ter aumentado o volume da sua aparelhagem para
decibéis de festa quando se soube que o Francisco Sá Carneiro tinha morrido. E
o que pensar da minha professora primária que sendo tão nossa amiga, castigava
de um modo desigual, perdendo a cabeça de um modo incompreensível com o único
rapaz de cor da nossa classe, fazendo com que cada estalo e orelha puxada
fossem gritos selvagens de quem estava, talvez, ainda em guerra? E, no meio
familiar, a idade de ir tornando as pessoas de carne e osso tinha chegado e as
falhas mais pequenas chocavam-me pela incoerência demonstrada em relação ao que
a Bíblia indicava como exemplar.
Com
a entrada no Ciclo Preparatório, com as primeiras evidências de gente a snifar
cola e a fumar atrás dos pavilhões, da violência gratuita, dos assaltos e com o
conhecimento dos primeiros casos, na altura tão raros, de colegas com pais
divorciados, o choque com o mundo real foi quase demasiado forte. Ao mesmo
tempo, a comunidade sólida da igreja havia-se esfarelado devido a lutas
internas e tinha agora a dolorosa certeza de que os baptistas, só por serem
baptistas, não eram especialmente melhores que ninguém. Os acampamentos de
verão terminaram, abruptos, por causa dessa divisão na igreja e vi-me, pela
primeira vez, a caminhar sem rede a uma altura que me pareceu excessiva e
assustadora. Continuava a ler a Bíblia, mas esta perdia terreno para a
desorientação. O livro, afinal, só era sagrado e parecia ter todas as
respostas, se vivido e partilhado por mais gente. Agora praticamente sozinho, e
alvo de alguma violência na escola e na rua, a vontade de questionar as
certezas religiosas surgia como uma necessidade de defesa perante a dolorosa
perplexidade de a vida ser bem difícil do que julgara. Nesse sentido,
acompanhei um ou dois dos outros miúdos em assaltos à escola primária e
secundária próximas de casa, sentindo felizmente nesse arriscar uma prova
definitiva de que a integridade era mais importante do que ganhar a amizade e
companheirismo dos outros. Impossibilitado de seguir o meu grupo de amigos da
rua no seu trajecto de crescimento, acabei por ficar isolado numa adolescência de
complicada solidão.
O
livro sagrado, só por si, não me bastava e confirmei-o ao ver-me inserido num
novo grupo de jovens baptistas quando a comunidade a que pertencia aderiu a uma
pequena associação de igrejas. Fiz novos amigos e, tendo a fé surgido de novo
enquadrada num ambiente social, a Bíblia voltou a ganhar força na minha vida. Subsidiada
por esse poderio poético que só existe no final da adolescência, o sentimento
religioso mergulhou no conceito do amor de Deus e de Jesus como caminho para
uma vivência num mundo que me ia parecendo cada vez mais caótico, hipócrita e
violento. Do mesmo modo que as canções pop reverberavam em mim como nunca mais
viria a acontecer, as palavras de Jesus, os salmos de David e a gratidão por
ter nascido de novo transportavam-me de emoção em emoção. Sem deixar de
questionar o texto, o facto de estar apaixonado, com o seu alto índice natural
de incapacidade de verificar com lucidez, fazia-me aceitar com maior facilidade
o que não parecia fazer muito sentido.
Esse envolvimento passional durou alguns anos
e, crescente, acabaria, com a idade de 21 anos, por me fazer decidir largar o
emprego que tinha e ir estudar Teologia. O que sabia era demasiado pouco para o
amor depositado e queria aprofundar os estudos, conhecer o que os teólogos
tinham a dizer e aprender a ler a Bíblia nas línguas originais (grego e
hebraico). A experiência durou três anos e teve como resultado final a
consciência de que tudo não passava de uma espécie de embuste aprimorado ao
longo de dois milénios e meio. Com a totalidade do tempo dedicado, conheci
demasiadas contradições na Bíblia para que nela pudesse continuar a apostar as
minhas fichas. A teologia era somente uma arte de tentar colar de um modo
poético, criativo e despudorado uma série de textos isolados e separados na sua
autoria, muitas vezes, por centenas de anos. O choque que senti foi grande e
terminal. O grande amor da minha vida não tinha, afinal, substância. Errara o alvo
e fiquei com o coração desfeito. Dessa minha decisão, nasceu o abandono de
quase todos os meus amigos da igreja e compreendi, então, o maior medo de um
religioso minoritário: perder o companheirismo dos outros.
É
difícil explicar como pode ser tão bom viver numa redoma bíblica. Muitos dos
meus conhecidos continuam lá, onde eu já estive, com essa percepção de segurança
que eu perdi. No facebook postam versículos bíblicos e partilham músicas
gospel. Continuam ainda baptistas, com amigos baptistas e indo a acampamentos
familiares baptistas no Verão porque se mantiveram fiéis à Bíblia. E eu, aos
poucos que restam dessa altura, sei que não posso fazer tinir essa redoma, porque
eles estão em paz lá dentro, acompanhados pelo quarto e para si mais importante
elemento da Trindade, a Bíblia.
Em
Pitcairn, dos cerca de 60 habitantes atuais, só cerca de meia-dúzia frequentam
os serviços religiosos da única igreja representada na ilha, Adventista do
Sétimo Dia. Ao longo do tempo a população deixou de considerar relevante o
livro sagrado do cristianismo. Quanto à Bíblia da Bounty, depois de muitos anos
fora da ilha, está hoje em exposição em Pitcairn, protegida com numa vitrina.
Por ser o livro mais importante sem ser sagrado. Por carregar com ele os
primórdios da história daquele povo.
De
vez em quando volto a pegar na minha Bíblia. Nunca me quis desfazer dela. É um
memorial dos meus primeiros vinte anos de vida. Está usada, rasgada aqui e ali,
tem muitos sublinhados e comentários nas margens. Ainda reconheço o seu cheiro.
É difícil de folhear por causa de toda a humidade e quase nenhum uso na última
década. Tem as assinaturas de muitos amigos de juventude. A capa é preta e está
maltratada. Os seus bordos estão esbranquiçados do uso quotidiano que teve de
suportar. Nas páginas 136 e 137 do Novo Testamento, em Actos 2, trecho em que
são descritos os primeiros tempos da igreja após a ascensão de Jesus, ainda lá
estão as manchas de sangue de uma vez em que lia ao Sol e o nariz começou a
sangrar. Sei que é o único livro que farei questão que me acompanhe em cada
casa que eu venha a habitar, não por que seja sagrado, mas ser o registo total
de que fui, do que fiz e não fiz, de todas as oportunidades que deixei passar
por lhe ser fiel e de todas as que aproveitei apostando nas suas promessas.
Ainda lá tem as histórias maravilhosas da infância, as palavras que me fizeram
apaixonar por Deus e todos os defeitos, violência e desonestidade com que me
deparei no início da idade adulta.
Se
alguém for criado numa ideia de sagrado, este jamais desaparecerá da sua
identidade. Acredito nisto porque ainda sinto algo primordial a agitar-se na
minha mente. É um movimento único, contínuo e irrepetível. É uma história de
suave paixão pala Bíblia, uma correnteza de água muito distante que não faço
questão de procurar. É já só um rumor, uma experiência quase tão inexplicável e
remota como a tentativa de teletransporte para Pitcairn em dois minutos de
concentração.