Achas para uma fogueira já quente.
Vou começar pelo fim. Em liberdade, em
verdadeira liberdade, não aquela que nos quer enfiar pelos olhos dentro a
actual clique política europeia, todos temos o direito de dizer aquilo que
pensamos sem medo de retaliações. E sim, temos, o direito de ofender. Tenho dito.
Daqui para a frente, quem quiser ler vai
perceber porquê.
O papa Francisco manifestou-se recentemente contra
ofensas à crença religiosa dos outros e deu como exemplo, triste a meu ver, que
ofensas à sua mãe seriam retaliadas com um murro. Não querendo entrar aqui em interpretações
duvidosas e bacocas sobre incitamentos à violência, porque sei que não é essa a
intenção de Bergoglio, o que mais me choca, ou não pensando bem, é a limitação
à liberdade que o papa defende. Até porque entra em conflito direto com a
génese da sua própria religião. Jesus ofendeu algumas classes de judeus, Paulo
ofendeu judeus, gregos e romanos, mais ainda sendo ele um ex-judeu ortodoxo e
cidadão romano por direito. E se assim não fosse, hoje o cristianismo nem
sequer existiria. O próprio Maomé ao difundir a sua mensagem de restauração dos
ensinos do deus dos cristãos e judeus ofendeu o “estabilibshment” da península
arábica, ofendeu judeus e ofendeu cristãos. Portanto em matéria de ofensa, quem
quiser que atire a primeira pedra.
O direito de ofender, na minha muito modesta
opinião, até deveria ser constitucionalizado. Sem ele o pensamento humano não
evolui. Se não fosse a ofensa ainda estaríamos na idade da pedra. Se Darwin não
tivesse ofendido a classe científica da sua época, ainda acreditaríamos que a
Terra foi criada em sete dias, ou seja por magia. Se Lutero não tivesse
ofendido a igreja católica ainda estaríamos, do ponto de vista do conhecimento,
na Idade Média. E por aí afora. Eu já estaria queimado no sentido literal e
figurado. E em efigie também.
E sim, também temos o direito de retaliar quando
nos ofendem. Mas, nada, mesmo nada, nem ofensas à mãezinha justificam
violência. Custa? Muito. Mas, em liberdade, em verdadeira liberdade, se me ofendem
eu tenho três opções: ou ignoro, ou entro em diálogo civilizado com quem me ofendeu,
logo subindo o nível do mesmo ou, se o diálogo não funciona, usar dos
mecanismos legais que a liberdade me dá, para denunciar essa ofensa.
E agora partamos para outro assunto
que já há
muito me anda a incomodar. E está por detrás deste e doutros problemas
que o nosso mundo enfrenta. O medo. E a manipulação religiosa e política
do
medo.
O medo tem sido um meio usado desde os
primórdios da civilização para controlar as pessoas. E é um meio (ou arma, como
quiserem) muito eficaz. E nem precisa de ser atirado diretamente. Existem
muitas formas subtis de medo. E quanto mais refinada a politica, a religião, a
filosofia, ou o que lhe quiserem chamar, mais refinadas são as ameaças veladas.
Comecemos com a religião porque talvez seja a
forma mais antiga da manifestação exteriorizada do medo. O medo de morrer. O
medo da perda de alguém importante na nossa vida. É difícil para o ser humano
encaixar a ideia da perda de alguém, e para isso criou mecanismos psicológicos
para mitigar essa perda com a invenção do paraíso. E do reencontro. E
refinou-os. A política ajudou também ao criar conceitos como o bem (nós, a
tribo, o território nativo, a civilização, o paraíso) e o mal (os outros, os da
outra tribo, os vizinhos que nos invejam a prosperidade, os bárbaros, o inferno).
E como a política e a religião foram criadas em conjunto, nada como uma boa
simbiose para mover estes dois conceitos. Se juntarmos a isto a incompreensão
do homem primitivo em relação aos fenómenos naturais que o fascinavam tanto
como o assustavam, temos uma mistura interessante de medo e controlo desse medo
pelas elites governantes.
Fast-forward para os nossos dias. A religião para alguns segmentos da população
ainda é um refúgio para os seus medos de perda. E reparem como a religião
controla subtilmente os medos. O medo de morrer e ir para o inferno, nas suas
imensas e subtis variantes, de ser proscrito pela sua comunidade, que também é
religiosa, o medo de deus lhe virar as costas, de não ser amado, do apocalipse
de fogo e saraiva. Estão a ver onde quero chegar? E manipulando o medo,
manipula-se a vontade e especialmente a vontade dos pobres de espírito, dos
vulneráveis, por exemplo os que foram posto de parte pela Republique, e que acharam que combaterem em nome de uma religião seria
uma alternativa melhor à discriminação. E como se prega olho por olho e dente
por dente… Aliás a religião, tal como algumas facções politicas, é um magneto
para os que são colocados à margem da sociedade. Até chegarem ao poder. E esses
são por vezes os mais fáceis de manipular. E por vezes a religião e a política
mantêm-se propositadamente nas margens para engrossar as suas fileiras ou para continuar
a justificar a sua própria existência, de outro modo injustificável.
Já na política, os medos são outros, mas
parecidos. O medo de perder território, agora chamado de economia, o medo dos
imigrantes (os bárbaros) e de perdermos o nosso paraísozinho, o medo de sermos
mais pobres e incultos que o vizinho, o medo das outras culturas conspurcarem a
nossa que é sagrada e imutável, etc. E jogam-se estes medos - em vez de
serem combatidos - com mais medos; restrições de liberdade por causa do que os “outros”
nos podem fazer. Limites à liberdade de imprensa para não ofender os “outros”
que não pensam ou agem como nós. E a pior de todas as censuras; a auto-censura,
com medo (lá está) de retaliações. Usa-se demagogia para distorcer a realidade
dos factos. A criminalidade decrescente é uma delas, o benefício económico e
cultural da imigração é outro. Basta ligarmos as televisões.
O medo, ou a sua luta, deveria também ser
constitucionalizada. Deveria ser proibido causar medo, aterrorizar ou ameaçar
as populações, intencional ou veladamente, com medos e superstições infundadas
que apenas causam divisões, ódios, terrorismo físico, psicológico e outros tipos de violência. Mas
lá está, causar medo é um conceito que eu, em liberdade, em verdadeira
liberdade, não posso negar a quem o faz. Mas posso combater. Ofendendo.
©Alexandre Alves-Rodrigues 2014