Muito, mas mesmo muito humilde homenagem ao mestre García Marquez.
Aquele
mar transido de infortúnios e loucura tinha lançado à costa daquela ilha
desterrada, mais um náufrago. Vinha coberto de algas e tinha na pele
esbranquiçada uma crosta grossa de cracas que eram atapetadas aqui e ali por
ouriços e estrelas-do-mar. Numa das orelhas, um caranguejo eremita velho e
caduco, que a confundira com uma casca de gastrópode abandonada e ali fizera
habitação. O náufrago tinha o semblante triste dos melancólicos e no entanto
continuava vivo, pois quando lhe abriram os olhos estes refletiram o fundo do
mar e tudo aquilo que vislumbrara.
Fora
descoberto no areal por sete pescadores tão loucos como valentes que se
preparavam para enfrentar um mar inóspito na esperança de trazer algo que
comer; a fome dolorosa era o veículo da sua insensatez. Disfarçando medo com
coragem, iam confundindo assim os outros habitantes daquele porto, um aglomerado
de casas abarracadas construídas com os despojos que o mar vomitava junto ao
areal branco.
O
náufrago, por ter os olhos vivos, foi levado pelos pescadores para uma das
casas, onde toda a aldeia se reuniu com espanto e curiosidade pois nunca tinham
visto nada semelhante. Parecia ter estado no fundo do mar muitos anos, a julgar
pela quantidade de crostas, mas debaixo daquela fauna e flora estava intacto. E
vivo. Quando acordou, olhou em volta e viu que a aldeia inteira se arrepiou, exclamando
um ah em uníssono, contraindo-se e baloiçando como se fossem anémonas assustadas
ao sabor da ondulação submarina. Quem era aquela gente e o que estava ele ali a
fazer? A última coisa de que se lembrava era a cidade submersa onde os afogados
viviam e onde ele fora parar depois de se ter despenhado de uma falésia antiga por
causa de desamores. Na cidade submersa os mortos tentavam continuar o que
deixaram inacabado em terra, mas desesperavam porque lhes faltavam as mulheres
amadas, as amantes, os filhos bastardos órfãos, os negócios ruinosos ou os infortúnios
da vida, enterrados no fundo de um quintal.
Quando
a aldeia se assegurou que estava mesmo vivo, limparam-lhe as algas, as cracas,
os ouriços e as estrelas-do-mar, cozinharam-nas como puderam e fizeram uma
festa em honra daquele estranho que lhes trouxera alimento e o milagre de estar
vivo depois de tantos anos afogado. Os homens abraçaram-no e as mulheres
beijaram aquele belo estranho que no entanto, depois da festa, foi de novo
atirado ao mar com sete pedras amarradas ao pescoço e aos pés. Tudo por crendice
dos velhos da aldeia que não queriam mortos a andar no meio da sua aldeia,
assustando as crianças e despertando nas mulheres estranhos humores. Até porque
nos dias em que pernoitou naquele fim-de-mundo de gente louca e desesperada, a
Lua tingira-se de vermelho.
© Alexandre Alves-Rodrigues
2015