Número total de visualizações de páginas

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Cântico



Foto: Ricardo Silva


1 Fiz-me Zéfiro pela madrugada. Na bruma levantada do mar oceano procurei minha amada. Nos nichos das falésias e nas dunas das ocidentais praias da vetusta Lusitânia a busquei. 

2 Sonhando contemplá-la, fustiguei as verdes planícies fazendo gritar os montes e, levantando vendavais nos campos da cor do limão, almejei outrossim descobrir seu formoso corpo desnudo. 

3 Abri de par em par as portas das moradas do Endovélico clamando por ela. Anunciaram que se refugia nos Montes da Lua, por entre nevoeiros espessos e pinhais de fantasmas. 

4 Oh assombração dos meus secretos desejos! És veloz como as éguas lusitanas. Esquiva como as enguias dos riachos. Mansa como a ovelha bordalesa. Furtiva como as lobas dos montes de Hermes. 

5 Escondes-te por entre amontoados de conchas, nos silêncios dos pores-do-sol junto do mar occíduo que se enche da fragrância do astro-rei e perfumes delicados te cercam, oh arca sagrada onde deuses comungam e se perdem na tua beleza. 

6 Nos bazares e empórios perscrutas novidades de terras distantes, procuras nos aromas almiscares recordações de antanho e nas epístolas que vêm de longe paradeiros secretos, novas do teu amigo. 

7 Sacudi vossas ramagens oh copas dos carvalhos! Estremecei portais dos templos! Fendei-vos com estrondo altissonante cinéreos granitos! Calai-vos águas dos rios à minha chegada! Vim buscar aquela que me espera, oculta em jardins limianos, coberta de véus de solidão! 

8 Pela aurora protegido, arrebatá-la-ei do seu leito de sono e cobri-la-ei de crisântemos. Partirá comigo para o oriente, onde meus olhos doentes anseiam pelos seus! Será rainha desse meu país por inaugurar; de amor, ternura e madrugadas.

© 2016 Alexandre Alves-Rodrigues

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Bradicardia


Foto: Dan Verhoeven.





Acordei num sonho dentro de água. A água onde estava era de um azul petróleo. Nem fria nem quente. Água por toda a parte. Sem fundo. Sem superfície. Uma luminosidade bruxuleante adivinhava-se do alto. Longe. Silêncio absoluto, calmo como só o acto de mergulhar permite. O silêncio do mar dentro do mar. A calma que as profundezas dos mares guardam em si. Observava alguém descendo ainda mais profundamente que eu, devagar, auxiliado por um cabo. Pensei devagar nos riscos de embolia ao subir demasiado rápido de um mergulho em apneia. Deixei-me estar. Tudo tão calmo. Tudo tão silencioso. Tudo tão azul. Comecei a esvanecer devagar pairando naquela água, tornando-me água também. O azul petróleo escureceu lentamente até ficar negro.

Esta noite acordei com o coração a bater demasiado devagar e a querer saltar do peito, senti a pulsação na cabeça, como se as artérias fossem rebentar. Bradicardia. Eram 4.30 da manhã. Tudo calmo. Tudo silencioso. 



©Alexandre Alves-Rodrigues 2016