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sexta-feira, 29 de junho de 2012

A Cheia




Alberto Romão abriu a porta do seu apartamento sabendo que atrás de si deixava para trás uma curta carreira como professor. O seu contrato tinha acabado nesse dia de finais de Maio junto com o final do ano lectivo, e as hipóteses de voltar a ser contratado no ano seguinte seriam escassas por força das remodelações motivadas por políticas que Alberto continuava sem entender. Fechou a porta atrás de si e suspirou. Um prolongado e desanimado suspiro num dia de chuva torrencial que o deixara encharcado até aos ossos durante o longo, e nesse dia penoso, caminho para casa. Despiu tristemente o casaco e pendurou-o no cabide do corredor do pequeno apartamento onde vivia sozinho há mais de sete anos. Dirigiu-se ao quarto e olhou pela janela, reparou que a chuva, batida por um fustigante vento sul, continuava a cair oblíqua e cortante devido a um centro de baixas pressões que fustigava o país desde há uns dias e o seu coração desde há muitos anos. Fechou momentaneamente as cortinas para se despir. Sentia um desconforto frio e enregelante que só desapareceria depois de resolver os seu problemas interiores, de vestir uma roupa seca de algodão e um quente roupão seguido de um fervido chá com um pouco de leite. Reabriu as cortinas na falsa esperança da chuva ter passado. Alberto tinha lido a previsão do tempo no jornal; chuva para os próximos dias em todo o continente com curvas isobáricas concentradas no seu coração. Sabia que o estado de tempo e de espírito iriam durar muito mais que meros dias. Seria um Verão de abundante chuva, e um frio desagradável escorria finíssimo pelo seu coração como um longo e interminável florete trespassando-o lenta e ininterruptamente. Dirigiu-se à ampla cozinha-sala e foi espreitar o rio que passava mesmo em frente ao prédio pelas panorâmicas janelas que deixavam entrar a cinzenta luz do dia e o reflexo castanho do caudaloso rio. Este corria turbulento como Alberto nunca tinha visto. Levava dentro e em cima de si todos os detritos que apanhava no caminho, todo um passado turbulento vindo não se sabe de onde e sem qualquer ideia do que iria acontecer no futuro. Aquele rio fascinava-o. Apreciava as barcaças que por ele por vezes passavam, restauradas por marinheiros amadores que nelas passeavam aos finais de semana com a família, os amigos ou simplesmente o cão. Algumas serviam de restaurante para eventos e festas particulares, ruidosas na noite, tilintando pratos e copos de reformados durante o dia. Por vezes descia do segundo andar para ir passear pelo passeio ao longo da margem nos dias mais solarengos, de resto cada vez mais raros. Não sabia o que fazer com os dias que se adivinhavam, nem com a chuva. Sentia a vontade própria a sucumbir.
Alberto preparou o jantar, empurrou a mesa de modo a fitar o rio de frente e assim ficou longas horas até a luz cinzenta do céu se extinguir e apenas o reflexo da água, iluminado pelas luzes do passeio marginal, ser visível. Foi dormir com a forte sensação de algo inacabado e incompleto em si. Necessitava reflectir sobre o significado de tudo aquilo.

Ao acordar de manhã, depois de uma noite mal dormida, porque inquieta e inquietante, entremeada de sonhos e suores, de ansiedades futuras e tristes passados, Alberto voltou à sala. Reparou que o rio tinha subido bastante durante a noite. O passeio onde por vezes ia caminhar estava completamente submerso de tal modo que apenas o balaústre do corrimão de ferro que dividia o passeio e o rio continuava visível. Alguns detritos acumulavam-se nos pilares, objectos tragados pela fúria do rio e presos naquele momento como se fossem velhas memórias trazidas do passado e que, momentaneamente eram presas no presente até se desfazerem ou soltarem-se. Tragou a última fatia de pão que tinha preparado para o pequeno-almoço e sorveu o resto de café que ainda sobrevivia morno dentro da chávena.

Quando voltou a fitar o rio pela janela este tinha voltado a subir repentinamente, e já tinha alargado a margem, agora o relvado do rés-do-chão que estava a uns bons dois metros e meio de altura do balaústre estava inundado, o rio tornara-se medonho mas fascinante. Do outro lado a base das semi-arcadas do viaduto ferroviário também agora serviam de margem e o chão de terra avermelhada estava semi-coberto daquela água castanha sedimentar. Agora o rio lembrava-o os velhos amores de adolescente que o surpreendiam durante a noite tornando-a insone e fantasiosa, medonhos e ao mesmo tempo fascinantes. Subiam de repente, inundando o pensamento, involuntários, deixando-o à mercê dos estágios hormonais próprios da idade. Lembrou-se de Ana, por quem se tinha apaixonado quase ao ponto da loucura durante quatro anos, e de quem nunca se tinha verdadeiramente esquecido nem nunca aproximado. E de todas as outras Anas que vieram antes e depois, as quais tinham deixado efémeras recordações, patéticas, mas ainda assim efémeras. Alberto sentia-se exactamente assim; patético e apagado. A estranha paralisia que se apossava dele quando queria dar o primeiro passo, ou a atabalhoada forma de se abrir aos outros, sem ainda assim se abrir. A frustração que sentia depois de tudo acabado antes mesmo de ter começado.

Os detritos agora acumulavam-se ainda mais nas margens, como a espuma do mar que se acumula na praia e tinge as brancas areias de um sujo castanho metálico. O rio voltou a subir, com uma fúria violenta, apopléctica, frustrado com o passado e ainda mais com o presente, pressionado, vermelho, blasfemante, irado, que grita sem pensar antes de gritar, que ofende e faz levantar as lágrimas a quem o enfrenta. Alberto deixou-se cair no sofá. Branco, sem sangue, frio, a contrastar com o vermelho quente do rio. Os empregos passados, as frustrações por não lhe reconhecerem o mérito, por o pisarem para passarem à frente, à sua frente. Os sonhos que ficaram por realizar, as coisas que quis fazer e não o deixaram, sentir-se inferior porque o faziam sentir-se inferior, sabendo que não o era. As fugas constantes da realidade, o alheamento completo foram as suas frequentes soluções paliativas. O remédio, esse, tomou-o amargo, tornou-se amargo, sarcástico, cruel, insensível e invisível.

O dia tinha passado sem que Alberto se desse conta. Não se lembrava de ter almoçado ou jantado. A prova de que o fez estava nos pratos sujos por levantar da mesa. Estavam cheios de água do rio, suja, castanha, como uma sopa arrefecida. Eram um prelúdio do que iria acontecer e Alberto agora sabia-o bem. Sabia agora porque tudo se tinha feito claro como um raio de sol por entre as nuvens de chumbo. Alberto não iria parar. For dormir. Deitou-se e esperou que o dia raiasse, chuvoso, cinzento naquela cidade de edifícios cor de ferrugem e terra castanha, de gente triste como ele, gente que levava os ressentimentos dentro da mala à tiracolo, nunca aberta mas guardando todos os pensamentos que nunca chegaram a ser voz, que nunca foram disparados pela boca, talvez por pudor, talvez por vergonha. Talvez.

Alberto levantou-se no escuro do quarto. Ao pousar os pés no chão sentiu um calafrio molhado. O rio já tinha inundado completamente o primeiro andar do prédio e um finíssimo filme de água cobria agora o soalho do seu apartamento. Mesmo assim, dirigiu-se à porta do quarto, percorreu o estreito corredor e saiu em direcção às escadas. Tinha de ir verificar o correio. Alberto não sabia porquê mas tinha desde os começos da sua vida de adulto ficado com a falsa esperança que uma carta, a carta, um dia percorresse todo o processo logístico postal e lhe fosse parar à caixa de correio. Essa espera substituiu a outra espera que lhe marcou o olhar para sempre. Os olhos de Alberto pareciam sempre estar à espera, à procura, percorriam o horizonte à sua volta infatigavelmente na esperança de uma resposta, de uma conclusão para tudo o que ficou por dizer e que não foi dito, selado, lacrado, enterrado e esquecido. Assim que desceu os primeiros degraus da escada mergulhou no silêncio, no silêncio estranho da água, esse mágico silêncio fluido que envolve todo o corpo e deixa ouvir a voz interior que há em cada pessoa, em cada Alberto. A escada de betão estava vazia. Vazia como sempre estivera, desprovida de tinta, verniz ou qualquer outro processo físico-químico que lhe disfarçasse a fealdade. Alberto desceu até ao rés-do-chão, sem luz, sem vida, apenas água e dirigiu-se à caixa do correio. Abriu-a e estava naturalmente vazia. Olhou pela porta que dava acesso ao passeio fluvial, mas este estava envolto num nevoeiro vermelho acastanhado, como numa tempestade do deserto, mas de água. Apenas uns esparsos raios de luz cinzenta penetravam desde a superfície.

Quando regressou à superfície notou que esta já tinha subido pelo menos um metro. Ao abrir a porta de casa, muitos dos objectos do quotidiano de Alberto boiavam como se se estivessem a preparar para a grande viagem. Ali estavam eles a despedirem-se do seu dono e mestre; as caçarolas, os tachos, o relógio de madeira, os postais de Natal, o quadro abstracto e até alguns livros juntos com a garrafa de vinho meio vazia. Alberto afastou-os e dirigiu-se ao quarto. Abriu o armário da roupa meio inundado, e retirou o seu melhor fato. Vestiu-o cuidadosamente como pode e dirigiu-se para a sala. A janela grande estava fechada. A secção que se abria estava a um metro do chão e a superfície da água tocava-lhe na base. Preparou-se para se lembrar da sua infância, meio triste, sem muito dinheiro para prendas de Natal, sem a família toda junta e por vezes passado em casas de familiares. Lembrou-se dos domingos passados em casa da irmã de seu pai, onde por vezes todos os irmãos paternos e os respectivos cônjuges se reuniam para discutir trivialidades, sem enfrentarem o passado juntos a sério e onde a matriarca já senil e incontinente, sentada num sofá apenas se queria ir embora para a sua terra natal.

Nesse mesmo momento, Alberto abriu a janela grande da sala e foi imediatamente engolido pelo rio que mais uma vez subiu vigoroso, ocupando todos os cantos possíveis da sala, e o tragou sem que ninguém até hoje, saiba bem para onde.





©Alexandre Rodrigues 2012