Alberto Romão abriu a porta do seu apartamento sabendo que
atrás de si deixava para trás uma curta carreira como professor. O seu contrato
tinha acabado nesse dia de finais de Maio junto com o final do ano lectivo, e
as hipóteses de voltar a ser contratado no ano seguinte seriam escassas por
força das remodelações motivadas por políticas que Alberto continuava sem
entender. Fechou a porta atrás de si e suspirou. Um prolongado e desanimado
suspiro num dia de chuva torrencial que o deixara encharcado até aos ossos
durante o longo, e nesse dia penoso, caminho para casa. Despiu tristemente o
casaco e pendurou-o no cabide do corredor do pequeno apartamento onde vivia
sozinho há mais de sete anos. Dirigiu-se ao quarto e olhou pela janela, reparou
que a chuva, batida por um fustigante vento sul, continuava a cair oblíqua e
cortante devido a um centro de baixas pressões que fustigava o país desde há
uns dias e o seu coração desde há muitos anos. Fechou momentaneamente as
cortinas para se despir. Sentia um desconforto frio e enregelante que só
desapareceria depois de resolver os seu problemas interiores, de vestir uma
roupa seca de algodão e um quente roupão seguido de um fervido chá com um pouco
de leite. Reabriu as cortinas na falsa esperança da chuva ter passado. Alberto
tinha lido a previsão do tempo no jornal; chuva para os próximos dias em todo o
continente com curvas isobáricas concentradas no seu coração. Sabia que o
estado de tempo e de espírito iriam durar muito mais que meros dias. Seria um
Verão de abundante chuva, e um frio desagradável escorria finíssimo pelo seu
coração como um longo e interminável florete trespassando-o lenta e
ininterruptamente. Dirigiu-se à ampla cozinha-sala e foi espreitar o rio que
passava mesmo em frente ao prédio pelas panorâmicas janelas que deixavam entrar
a cinzenta luz do dia e o reflexo castanho do caudaloso rio. Este corria
turbulento como Alberto nunca tinha visto. Levava dentro e em cima de si todos
os detritos que apanhava no caminho, todo um passado turbulento vindo não se
sabe de onde e sem qualquer ideia do que iria acontecer no futuro. Aquele rio
fascinava-o. Apreciava as barcaças que por ele por vezes passavam, restauradas
por marinheiros amadores que nelas passeavam aos finais de semana com a
família, os amigos ou simplesmente o cão. Algumas serviam de restaurante para
eventos e festas particulares, ruidosas na noite, tilintando pratos e copos de
reformados durante o dia. Por vezes descia do segundo andar para ir passear
pelo passeio ao longo da margem nos dias mais solarengos, de resto cada vez
mais raros. Não sabia o que fazer com os dias que se adivinhavam, nem com a
chuva. Sentia a vontade própria a sucumbir.
Alberto preparou o jantar, empurrou a mesa de modo a fitar o
rio de frente e assim ficou longas horas até a luz cinzenta do céu se extinguir
e apenas o reflexo da água, iluminado pelas luzes do passeio marginal, ser
visível. Foi dormir com a forte sensação de algo inacabado e incompleto em si. Necessitava
reflectir sobre o significado de tudo aquilo.
Ao acordar de manhã, depois de uma noite mal dormida, porque
inquieta e inquietante, entremeada de sonhos e suores, de ansiedades futuras e
tristes passados, Alberto voltou à sala. Reparou que o rio tinha subido
bastante durante a noite. O passeio onde por vezes ia caminhar estava
completamente submerso de tal modo que apenas o balaústre do corrimão de ferro
que dividia o passeio e o rio continuava visível. Alguns detritos acumulavam-se
nos pilares, objectos tragados pela fúria do rio e presos naquele momento como
se fossem velhas memórias trazidas do passado e que, momentaneamente eram
presas no presente até se desfazerem ou soltarem-se. Tragou a última fatia de
pão que tinha preparado para o pequeno-almoço e sorveu o resto de café que
ainda sobrevivia morno dentro da chávena.
Quando voltou a fitar o rio pela janela este tinha voltado a
subir repentinamente, e já tinha alargado a margem, agora o relvado do
rés-do-chão que estava a uns bons dois metros e meio de altura do balaústre
estava inundado, o rio tornara-se medonho mas fascinante. Do outro lado a base
das semi-arcadas do viaduto ferroviário também agora serviam de margem e o chão
de terra avermelhada estava semi-coberto daquela água castanha sedimentar.
Agora o rio lembrava-o os velhos amores de adolescente que o surpreendiam
durante a noite tornando-a insone e fantasiosa, medonhos e ao mesmo tempo
fascinantes. Subiam de repente, inundando o pensamento, involuntários,
deixando-o à mercê dos estágios hormonais próprios da idade. Lembrou-se de Ana,
por quem se tinha apaixonado quase ao ponto da loucura durante quatro anos, e de
quem nunca se tinha verdadeiramente esquecido nem nunca aproximado. E de todas
as outras Anas que vieram antes e depois, as quais tinham deixado efémeras recordações,
patéticas, mas ainda assim efémeras. Alberto sentia-se exactamente assim;
patético e apagado. A estranha paralisia que se apossava dele quando queria dar
o primeiro passo, ou a atabalhoada forma de se abrir aos outros, sem ainda
assim se abrir. A frustração que sentia depois de tudo acabado antes mesmo de
ter começado.
Os detritos agora acumulavam-se ainda mais nas margens, como a
espuma do mar que se acumula na praia e tinge as brancas areias de um sujo
castanho metálico. O rio voltou a subir, com uma fúria violenta, apopléctica, frustrado
com o passado e ainda mais com o presente, pressionado, vermelho, blasfemante,
irado, que grita sem pensar antes de gritar, que ofende e faz levantar as
lágrimas a quem o enfrenta. Alberto deixou-se cair no sofá. Branco, sem sangue,
frio, a contrastar com o vermelho quente do rio. Os empregos passados, as
frustrações por não lhe reconhecerem o mérito, por o pisarem para passarem à
frente, à sua frente. Os sonhos que ficaram por realizar, as coisas que quis
fazer e não o deixaram, sentir-se inferior porque o faziam sentir-se inferior,
sabendo que não o era. As fugas constantes da realidade, o alheamento completo
foram as suas frequentes soluções paliativas. O remédio, esse, tomou-o amargo,
tornou-se amargo, sarcástico, cruel, insensível e invisível.
O dia tinha passado sem que Alberto se desse conta. Não se
lembrava de ter almoçado ou jantado. A prova de que o fez estava nos pratos
sujos por levantar da mesa. Estavam cheios de água do rio, suja, castanha, como
uma sopa arrefecida. Eram um prelúdio do que iria acontecer e Alberto agora sabia-o
bem. Sabia agora porque tudo se tinha feito claro como um raio de sol por entre
as nuvens de chumbo. Alberto não iria parar. For dormir. Deitou-se e esperou
que o dia raiasse, chuvoso, cinzento naquela cidade de edifícios cor de
ferrugem e terra castanha, de gente triste como ele, gente que levava os
ressentimentos dentro da mala à tiracolo, nunca aberta mas guardando todos os
pensamentos que nunca chegaram a ser voz, que nunca foram disparados pela boca,
talvez por pudor, talvez por vergonha. Talvez.
Alberto levantou-se no escuro do quarto. Ao pousar os pés no
chão sentiu um calafrio molhado. O rio já tinha inundado completamente o
primeiro andar do prédio e um finíssimo filme de água cobria agora o soalho do
seu apartamento. Mesmo assim, dirigiu-se à porta do quarto, percorreu o
estreito corredor e saiu em direcção às escadas. Tinha de ir verificar o
correio. Alberto não sabia porquê mas tinha desde os começos da sua vida de
adulto ficado com a falsa esperança que uma carta, a carta, um dia percorresse
todo o processo logístico postal e lhe fosse parar à caixa de correio. Essa
espera substituiu a outra espera que lhe marcou o olhar para sempre. Os olhos
de Alberto pareciam sempre estar à espera, à procura, percorriam o horizonte à
sua volta infatigavelmente na esperança de uma resposta, de uma conclusão para
tudo o que ficou por dizer e que não foi dito, selado, lacrado, enterrado e
esquecido. Assim que desceu os primeiros degraus da escada mergulhou no
silêncio, no silêncio estranho da água, esse mágico silêncio fluido que envolve
todo o corpo e deixa ouvir a voz interior que há em cada pessoa, em cada
Alberto. A escada de betão estava vazia. Vazia como sempre estivera, desprovida
de tinta, verniz ou qualquer outro processo físico-químico que lhe disfarçasse
a fealdade. Alberto desceu até ao rés-do-chão, sem luz, sem vida, apenas água e
dirigiu-se à caixa do correio. Abriu-a e estava naturalmente vazia. Olhou pela
porta que dava acesso ao passeio fluvial, mas este estava envolto num nevoeiro
vermelho acastanhado, como numa tempestade do deserto, mas de água. Apenas uns
esparsos raios de luz cinzenta penetravam desde a superfície.
Quando regressou à superfície notou que esta já tinha subido
pelo menos um metro. Ao abrir a porta de casa, muitos dos objectos do
quotidiano de Alberto boiavam como se se estivessem a preparar para a grande
viagem. Ali estavam eles a despedirem-se do seu dono e mestre; as caçarolas, os
tachos, o relógio de madeira, os postais de Natal, o quadro abstracto e até
alguns livros juntos com a garrafa de vinho meio vazia. Alberto afastou-os e
dirigiu-se ao quarto. Abriu o armário da roupa meio inundado, e retirou o seu
melhor fato. Vestiu-o cuidadosamente como pode e dirigiu-se para a sala. A
janela grande estava fechada. A secção que se abria estava a um metro do chão e
a superfície da água tocava-lhe na base. Preparou-se para se lembrar da sua
infância, meio triste, sem muito dinheiro para prendas de Natal, sem a família
toda junta e por vezes passado em casas de familiares. Lembrou-se dos domingos
passados em casa da irmã de seu pai, onde por vezes todos os irmãos paternos e
os respectivos cônjuges se reuniam para discutir trivialidades, sem enfrentarem
o passado juntos a sério e onde a matriarca já senil e incontinente, sentada
num sofá apenas se queria ir embora para a sua terra natal.
Nesse mesmo momento, Alberto abriu a janela grande da sala e
foi imediatamente engolido pelo rio que mais uma vez subiu vigoroso, ocupando
todos os cantos possíveis da sala, e o tragou sem que ninguém até hoje, saiba
bem para onde.
©Alexandre Rodrigues 2012