Estamos todos
mais ou menos familiarizados com os recentes acontecimentos de insurreição
popular na Turquia e agora no Brasil. O que há então em comum entre estas
manifestações e o que está realmente a mudar a nível mundial?
Na Turquia o
problema surgiu quando populares se revoltaram por causa de um plano para
converter um dos poucos jardins de Istambul, num centro comercial onde estavam
incluídos a “reconstrução” de um quartel-general dos tempos do império otomano
e uma mesquita. Todo o negócio, como sempre, muito opaco. O jardim, usado pela
população das redondezas é também ele histórico, e sem este ponto de encontro,
o tal centro comercial iria ou irá contribuir para o desenraizamento da
comunidade local que ali se reúne para as mais diversas atividades. Claro que
tudo isto nos cheira a mais um negócio onde o Estado através dos políticos da
ocasião “oferece” a construção de mais um mamarracho a uma empresa de
construção com boas ligações ao poder, e onde o lucro a curto prazo é o fator
mais importante e o bem-estar da população uma quimera. Onde é que nós já vimos
isto? Mas com toda a certeza não será só por isto que a população turca urbana,
formada e informada através das redes sociais, laica e quiçá viajada se terá
revoltado. E não é só por causa do aumento do preço dos transportes públicos
urbanos que os brasileiros se estão a revoltar. Não. E não foi por causa do
tipo de regime ditatorial que os tunisinos e os egípcios se revoltaram, ou os
líbios se amotinaram e os sírios se envolveram numa guerra civil do mais
desumano que se possa imaginar.
No caso do
Brasil, um país que ainda está em fase de desenvolvimento, o erro português
repete-se; na cegueira e vaidade politica para se fazer sobressair no xadrez
mundial (europeu, no caso português), o Brasil está em velocidade de cruzeiro para
se tornar num paraíso do betão, com a sua prole de estádios, eventos
megalómanos, centros culturais e até escolas hospitais e museus, esquecendo-se
que para se ter boa educação, saúde e cultura, aquilo que é preciso para fazer
funcionar essas mesmas infraestruturas é a qualidade; qualidade no ensino,
qualidade na saúde, qualidade na cultura, investindo com seriedade nestes
recursos para que das escolas saiam bons médicos, bons professores,
engenheiros, mecânicos, eletricistas, etc. Sem eles, o Brasil e a Turquia, tal como
Portugal serão sempre um países em desenvolvimento, sempre coxos, cheios de ar
quente, despovoados e sem dinheiro para manter as megalomanias que as elites
politicas e económicas nos impingem diariamente pela goela abaixo, quer gostemos
ou não do xarope.
O problema tem origem
nessa espécie de animal que Brendan Perry bem descreve na canção “The Bogus Man”;
sicofântico, de sangue frio, “reptiliano”, carreirista e aproveitador. Essa
espécie repelente que faz da intriga, da malevolência e da conspiração o seu modus-vivendi. E este animal, por mais incrível
que pareça, não tem ideologia, nem deus, nem ideal. Apenas vive para o
presente, alimenta-se da sua própria vaidade, e se pensarmos bem, nos tempos
que correm, não tem grande utilidade. É pois de prever que a sua extinção estará
eminente.
Com a falência previsível
dos “ismos” à esquerda e à direita, os partidos ou “ideologias” que ainda teimam
em prevalecer um pouco por todo o mundo, esvaziaram-se, e foram esvaziadas por
esses mesmos animais acima descritos, do seu conteúdo e não são mais do que uma
casca aparente, uma mera formalidade, roçando nalguns casos o folclore, noutros
a palhaçada, sendo alvo de chacota, desprezo e até de genuína revolta na
presente estrutura social do mundo. A função que este animal tinha no equilíbrio
da balança da sociedade, entre a “populaça” e as “elites” sendo ele, um
elemento desta estranha simbiose, erodiu-se por completo, ou foi na maioria dos
casos absorvida pela segunda. A sua função mediadora deixou de existir, ou
melhor, este animal despiu-se daquela que era a sua função principal; servir
quem o elege e lhe paga o salário. Claro que este salário tem vindo a ser, cada
vez mais, complementado pelas “elites” que, apesar de menos numerosas, pagam
melhor que a “populaça” pagadora dos impostos, que convém não esquecer, servem o
bem comum. Quando o tal animal que aqui falamos começa a ser pago pelas tais “elites”,
é lógico que as sirva. E bem. Nesse aspeto o nosso animal tem feito um
excelente trabalho, transferindo os impostos da populaça, não para o bem comum,
mas para os negócios das elites. O problema é que quando o animal começa a
servir apenas uma parte da sociedade, e ainda por cima uma pequeníssima minoria,
passa a ser um animal redundante. E quando o animal é redundante e deixa de fazer
sentido, ou é extinto pelos seus predadores ou extingue-se gradualmente.
No presente
contexto de informação social global, não controlada pelas elites, como acontece
nos media tradicionais, e que moldam
e deformam facilmente a visão do mundo e das noticias de modo a fazer
prevalecer e defender os seus interesses, o nosso animal tem muita dificuldade em
mexer-se, porque não existem maquilhagens, cortes oportunos na imagem ou no som,
ou tempos de antena definidos. Ele tal como todos nós usa as redes sociais, mas
arrisca-se tal como qualquer um de nós à humilhação e ao desprezo. E é caricato
ver como este animal usa da sua linguagem arcana e institucional polvilhada aqui
e ali de frases “populares” e gírias da moda para tentar alcançar o tal “público-alvo”
que ele ainda finge que existe. O problema, para este mesmo animal é que, hoje
em dia, quem faz as notícias, são as pessoas que usando o que as tecnologias
hoje lhes permitem, relatam em primeira mão os acontecimentos. Segundo alguns
estudos, a população jovem não vê televisão, e os que a vêm não acreditam no
que é transmitido. Quando a televisão turca deixou de transmitir os protestos
da praça Taqsim, quem se queixou foram exatamente as pessoas com mais de 35
anos, que juntando o que sabiam através das redes sociais e aquilo que não se refletia
nas notícias, se juntaram aos protestos porque o governo estava a censurar os media tradicionais.
E voltando à vaca-fria,
no caso turco e brasileiro, e até no caso egípcio, as revoltas a que temos
assistido são de cariz social, não contra a pobreza, mas sim contra a corrupção.
A corrupção e inversão de valores, a corrupção dessa estranha simbiose que tem
sido a base da civilização moderna, a natureza fraudulenta das democracias atuais,
as cliques politicas que não permitem grupos independentes de cidadãos acederem
ao poder e finalmente a tal elite que está do outro lado da barricada que que
tem ficado com a parte de leão da riqueza gerada pelo desenvolvimento económico.
E julgo que estes povos acima mencionados não estarão sozinhos naquilo que
sentem.