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quarta-feira, 9 de abril de 2014

Um Pedaço Desta Minha Existência





            Cai uma chuva miudinha, vaporizada. Uma chuva de arco-íris, com um pôr-do-sol encandeante do lado oposto, enquanto aguardo na plataforma da estação de Manchester o comboio noturno para Nottingham. 

Os meus “timings” com as mulheres nunca foram os mais acertados. Ainda hoje é assim. O que me sobra em pensamento falta-me em palavras. Ou será coragem? E as mulheres esperam de nós a conversa. E que seja minimamente interessante. Eu tenho-me como aborrecido. As mulheres também. Acabo sempre por observar atentamente as que conversam entre si ou os homens que as tentam levar na conversa.

Um comboio encharcado está parado à minha frente. O maquinista coloca os motores a funcionar. Um cheiro acre de Diesel queimado enche a plataforma. Mistura-se com o cheiro da chuva. Parte vazio em direção a Liverpool e ao pôr- do-sol. Os Domingos à tarde são estranhos. Vou partir na direção oposta. Também vou vazio.

Foi sempre assim. Gosto da companhia das mulheres, escutar as suas conversas, como atento espectador de um ato teatral que se desenrola à sua frente, por vezes comédia, não raras vezes farsa. É que as mulheres são excelentes na arte da farsa. A maior parte não se apercebe disso, apenas as mais inteligentes. É com elas que gosto de conversar. São essas que observo com delícia e prazer. Mas ainda assim, fica sempre tanto por dizer. Haveria tanto para dizer sobre as mulheres. Ficarão sempre silêncios. Ou serei eu que fico com a sensação de silêncios perenes talvez porque nunca entenderei as mulheres e no entanto leio-as tão bem. Ou assim julgo.

Deixo Manchester para trás, como já deixei outros rumos. No horizonte, o céu é azul. Por cima da cidade é cor-de-rosa, púrpura e laranja. As ruas estão molhadas e as estradas brilhantes da chuva vaporizada momentos antes. O sol põe-se lento e morno, laranja no horizonte, magoando-me os olhos. Um comboio é um bom sítio para pensar.

Fica sempre tanto por dizer. Ficam nestes anos todos uma sensação de desconforto inteiriço que resvala na memória como uma avalanche iminente, mas que nunca aconteceu, porque nada foi dito. Palavras que foram tantas vezes ensaiadas mas que o nó na garganta asfixiou à saída. Um ciclo que nunca se fechou efetivamente. Gostaria tanto de colocar a conversa em dia. E quem sabe uma pedra no assunto. Não há pressa. Há necessidade. Aprendemos nestes anos de experiência as artes da espera e da paciência. 

O horizonte azul é cada vez mais estreito, o comboio acelera rumo ao interior, onde as nuvens são mais espessas, mais densas, mais negras. Na estação seguinte, já não há passageiros, apenas sombras solitárias, caminhando na direção da luz emanada pelas composições do comboio noturno. 

De dia sinto-me ridículo. À noite escrevo… a noite tem destas coisas. Ridículo por não poder voltar atrás e emendar o passado. Ridículo por escrever. Ridículo por não me conseguir libertar deste íncubo, esmagador como uma montanha intransponível, na iminência de desabar sobre mim. Ridículo por intuir que me acham ridículo. Um destes dias conversaremos. Mas antes bebo um copo para ganhar coragem. Ou será para esquecer?

A viagem prossegue rumo à escuridão da noite. Não é percetível se já anoiteceu ou se a luz que resta está coberta pelas nuvens densas. É tão difícil perceber as nuvens. São como as mulheres, deixam-nos turvos, sem conseguir discernir o caminho. Umas porque são belas, outras porque são astutas. Ou ambas as coisas. Ou nenhuma.

Fui em tempos fã da Cybil Shepherd. Sempre me imaginei o Bruce Willis da série televisiva “Modelo e Detetive”. Não que eu seja parecido com o ator. Longe disso. Tal como os dois personagens da famosa farsa, haverá para sempre entre mim e as mulheres uma tensão, um rancor aparente, e em mim um sorriso trocista com vontade de prosseguir, mas sabendo que isso seria desastroso. E nelas vejo essa fraqueza desarmante, tecida nas noites solitárias em que por vezes olham para o escuro da noite pela janela, sabendo também que entre nós não iria dar certo, porque nesse dia o espetáculo acabaria, porque é esse desconforto que dá corda ao enredo. 

O comboio avança já no negro da noite. Entra por túneis escavados nas entranhas do “Peak District”. Apenas sei que passo por eles porque se sente a diferença na pressão dentro da carruagem onde escrevo isto. Este texto, fruto de uma imaginação que se me afigura ora fértil, ora louca. Este texto vaporizado de negro que se confunde com o negro da noite que entra pela janela. É este um pedaço da minha mísera existência. 


©Alexandre Alves-Rodrigues 2014

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Como sobreviver ao amor





  


©Ricardo Silva. Crossroads
Quando o tempo de a contemplar de novo se aproximava, a ansiedade brotava em Acácio Veríssimo como uma fonte. A mesma ansiedade de há tantos anos, aquela inquietude na barriga, uma espécie de euforia dissimulada pelo complexo de achar o objeto do seu amor tão distante e diferente de si, de um outro mundo que não era o seu. E quando finalmente a presenciava, em toda a sua beleza, mesmo depois daqueles anos todos sem a comtemplar, ficava sempre sem reação, talvez porque ela também não mostrava ou demonstrava qualquer emoção na sua presença, senão aquela de cumprimentar alguém que não via há algum tempo. E ele percebia pela sua conversa que, de certo modo ela lhe lia o pensamento, e opinava exatamente o oposto. O que ele não sabia nem conseguia adivinhar, porque sempre fora muito mau a adivinhar, é se ela o fazia para o testar, ou para lhe dar a entender que não queria nada dele. Por si até ficaria contente com a sua inimizade, sempre seria melhor que a indiferença que aparentava, pensava desesperado. Quer dizer, não seria bem indiferença, mas uma certa distância, medida, calculada, e de certo modo eficaz, pensava ele, porque o paralisava quando estava próximo daquela mulher. Sempre assim fora. É claro que sim, sobreviveu sem saber dela durante muitos anos, iludido que a esqueceria. Tão iludido. Porque não passava um dia sequer em que Acácio Veríssimo não pensasse nela, e naquilo que, querendo ela, ainda poderiam ser juntos. É curioso, porque Acácio Veríssimo nunca pensava naquilo que poderiam ter sido, ou o que poderiam ter feito juntos se a oportunidade tivesse surgido no passado distante, se estivessem em sintonia, se ela o tivesse desejado no tempo certo, ou seja ao mesmo tempo que ele a desejou. Bastava terem chegado a acordo quanto aos sentimentos que nutriam um pelo outro, algo que nunca aconteceu de facto. 

Acácio Veríssimo sobreviveu à ilusão que criou e da qual não escapou ileso, a da existência real daquela estranha mulher que apenas e tão só existia na sua imaginação. De todo modo as cicatrizes eram profundas como profundos eram os mares do seu pensamento e não tinha a certeza se alguma vez sarariam, porque deliberadamente e diariamente as limpava com o sal da sua lembrança.

©Alexandre Alves-Rodrigues 2014