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domingo, 3 de setembro de 2017

O Bem Amado Realismo Mágico

Paulo Gracindo - Coronel Odorico Paraguaçu

"Felizmente, os factos reais, provam estes vendedores de banha da cobra errados no seu pessimismo e no seu fervor escatológico. Mas não nos iludamos. O poder está a ser transferido de uma elite para outra. Nada mais."

Desde há muito me considero um admirador profundo do realismo mágico literário em geral, e do seu expoente máximo, o mestre Gabriel García Marquez, em particular. O primeiro livro que li deste género e desse autor foi o “Outono do Patriarca”, a história de um ditador caribenho, Zacarias Alvarado, cuja idade, entre os 107 e 232 anos, é desconhecida na sua precisão. É pai de 5.000 filhos todos “setemesinhos” e cuja maior proeza, além das outras, foi a de vender o Mar das Caraíbas, em lotes, aos americanos. A minha estupefação ao ler este livro pela primeira vez foi tal, que ainda hoje considero um do meus romances preferidos junto com “O Amor nos Tempos de Cólera” do mesmo autor. Aliás este último é, ainda hoje, uma das minhas referencias literárias e, porque não dizê-lo, de vida. 

Há pouco tempo atrás, durante as férias de verão, andava eu entediado nas redes sociais, quando se me deparou, numa delas, um “post” sobre as eleições autárquicas em Portugal. O candidato a presidente de uma junta de freguesia prometia algo como campas mais largas no cemitério local ou qualquer absurdo semelhante. Alguém comparou este absurdo às promessas do prefeito Odorico Paraguaçu da novela “O Bem-Amado”. Um acesso nostálgico transportou-me trinta e três anos atrás no tempo, a 1984, ano em que esta novela foi transmitida em Portugal, teria eu uns oito ou nove anos de idade. “O Bem-Amado” foi escrito em 1962 por Dias Gomes, escritor de teatro, cinema e novelas. Inicialmente uma peça de teatro chamada “Odorico, O Bem-Amado ou os Mistérios do Amor e da Morte”, foi adaptada para telenovela em 1972 tendo estreado no Brasil no ano seguinte e foi a primeira telenovela brasileira a ser transmitida a cores. Concluo portanto que, a minha admiração pelo, e fracas tentativas de emular o mesmo, realismo mágico (aqui, aqui e aqui) advêm pratrásmente na sua génese, talvez inconscientemente, destas fantásticas, e por que não dizê-lo, interessantes telenovelas.

Coronel Odorico, o personagem principal de “Bem-Amado”, é um político corrupto, prefeito de uma cidadezinha (vila) fictícia da Baía, nas margens do rio Paraguaçu, este último verdadeiro. Tal como o Zacarias Alvarado, é um mulherengo inveterado, apesar de casado, e pai de dois filhos legítimos. Um dos seus filhos ilegítimos na novela, nasce de sete meses, e é a cara do pai. Odorico é um intriguista, que procura, a qualquer custo, um defunto para poder inaugurar o cemitério que mandou construir, e que desde então está às moscas porque ninguém morre na cidade de Sucupira. A novela, ao contrário da peça de teatro, foi escrita como uma critica à ditadura militar brasileira, que estava no seu auge e em contraciclo com as últimas ditaduras europeias de direita que agonizavam nos seus estertores de morte. Como disse Chico Buarque de Holanda na época: este país ainda há de ser um imenso Portugal. Não sei se o Brasil se tornou um imenso Portugal ou não. Mas ultimamente, tal como os Estado Unidos da América, tornou-se numa paródia de si próprio.

Mas, como diria Odorico, deixemo-nos de entretantos e cheguemos aos finalmentes. Odorico foi o protótipo perfeito do ditador de García Marquez. Não sei se Marquez conhecia Dias Gomes ou se alguma vez assistiu à novela. Dias Gomes representou no Brasil o realismo mágico sul-americano, tendo sido possivelmente o seu maior expoente nesse país. Outras novelas deste autor, dentro do mesmo género, foram “Saramandaia” onde o realismo mágico é levado ao extremo com personagens como o professor Aristóbulo Camargo, que se transforma em lobisomem nas noites de lua cheia; Marcina, que provoca incêndios onde toca e queimaduras em quem toca; João Gibão, que esconde na sua corcunda um par de asas; Seu Encolheu, que prevê o tempo com dores ósseas; Dona Redonda, que não consegue parar de comer; Zico Rosado, que põe formigas pelo nariz, etc. Outros exemplos são “Roque Santeiro” com a sua mão cheia de estranhos personagens, “Mandala” ou “Araponga”, tudo novelas que me lembro de assistir a seguir ao telejornal num dos dois canais de televisão existentes à época em Portugal nos idos anos 80. 

A personagem de Odorico foi criada treze anos antes de Marquez ter escrito em 1975 o seu famoso romance acima mencionado. As semelhanças entre Odorico e Zacarias são bastantes, apesar de Odorico ser menos fantástico que Zacarias. No entanto, partilham bastantes características, físicas e psicológicas: são ambos mulatos, sofrem de maleitas físicas, são mulherengos, ditadores, com filhos "setemesinhos", manipuladores manhosos e matreiros e ambos desprezam o povo que governam; “este bordel de idólatras” nas palavras de Zacarias ou “esse povo não merece o sacrifício que a gente faz por ele” num desabafo de Odorico à sua irmã. São ambos centrados em si mesmos a julgam que o mundo gira à sua volta.

Nestes tempos estranhos em que vivemos de realismo quase mágico e distópico os Odoricos e Zacarias voltaram a aparecer por esse mundo fora, depois de muitos anos escondidos e ostracizados. Invocam uma moral que não praticam, são adeptos, mais ou menos veladamente, de um regime económico que criticam em público mas praticam em privado, usam de palavreado populista que o povo entende e associa facilmente e um discurso que apela àquilo que as pessoas querem ouvir e sentir. Esse discurso, no entanto, não reflecte, a realidade - até a despreza como mentira e falsidade - mas apenas destila o medo instilado pelos media controlados pelos seus amigos e associados. O medo dos imigrantes, dos refugiados, dos outros países, de tudo o que é externo. O mundo à beira do caos económico e moral. A sua histórica incompetência governativa é disfarçada de vitimização: o país é vitima de poderes invisíveis (outros países, blocos económicos, inimigos internos, etc.). Tácticas antigas dos “ismos” mas que voltaram a estar na moda. Defendem que estão acima desses “ismos”, mas, tal como estes, gostam de usar bodes expiatórios para ocultar a sua própria ineficiência e incompetência. Usam de um discurso velho e gasto que, surpreendentemente ou não, ainda arrasta milhões. Uns porque são simplórios e facilmente manipuláveis, quais irmãs Cajazeiras da novela, outros, mais educados e ricos, por interesses óbvios. Afinal a história da humanidade tem-nos mostrado que as mudanças de regime, à esquerda e à direita, não passam de transferências de poder de uma elite para outra. Por todas estas razões “a gente vive num paiol de pólvora”, como cantavam Vinicius e Toquinho aludindo à ditadura militar brasileira. A diferença é que neste momento de estranho realismo mágico, nós, ao contrário dos brasileiros de 1972, caminhamos para lá a passos largos. 

É certo que nos dias que correm é mais fácil desmascarar tais imposturas. Mas também é mais difícil para aqueles que ainda vêm as coisas com alguma clareza fazer-se ouvir. Desde o desmantelamento dos sistemas educativos, de saúde pública, infraestrutural e outros, providenciado pelo regimes político-económicos actuais, também eles “ismos”, é certo que o caminho que agora perigosamente percorremos de realidade alternativa é bem mais perigoso que aquele que percorremos como humanidade até aqui, pesar de não ser novo. 

Usando do vocabulário de Odorico, deixemos de lado os oraveja e os virgesantíssima e fazendo uma análise teorística, psicanalistica e objectivistica, emboramente especulativista, poderemos concluir que estes novos Odoricos e Zacarias não passam de vigaristas, badernistas, vagabundistas, canalhistas e, porque não dizê-lo, senvergonhistas. Apenas usam uma máscara diferente. 

© 2017 Alexandre Alves-Rodrigues

sexta-feira, 10 de março de 2017

Apocalipse






Imagina no fim dos tempos, um Apocalipse.
Um astro gordo saciando-se de planetas,
adiando impotente o seu inevitável fim.
Cientistas juram que acharam sete Terras.
Sete Terras para adiar o nosso fim.
Há detritos no canal. Não há fim à vista.
As lápides dos mortos cada vez mais se aproximam da vereda.
Os mortos esperam um Apocalipse que os salve.
Dois dedos dos meus pés dormentes enquanto caminho.
As torres de vigia sentam-se, comovidas, à espera,
com privilégios de primeira fila no poente do mundo.
Os crentes buscando um Apocalipse que os salve da morte certa.
Eu buscando um Apocalipse que me salve desta vida incerta.
No levante, guerreiros tentam em vão, forçar o fim-dos-tempos.
E os mortos do cemitério, à espera.

Imagina no fim dos tempos um Apocalipse.
Cientistas juram que acharam sete Terras.
Não há fim à vista. As torres de vigia sentam-se, comovidas, à espera.
As lápides dos mortos cada vez mais se aproximam da vereda.
Eu buscando um Apocalipse que me salve desta vida incerta
Um astro gordo saciando-se de planetas, adiando impotente o seu inevitável fim.
Os mortos esperam um Apocalipse que os salve,
com privilégios de primeira fila no poente do mundo.
Sete terras para adiar o nosso fim.
Os crentes buscando um Apocalipse que os salve da morte certa,
adiando impotentes o seu inevitável fim.
Há detritos no canal. Dois dedos dos meus pés dormentes enquanto caminho.
No levante, guerreiros tentam forçar, em vão, o fim-dos-tempos.

Imagina no fim dos tempos as lápides dos mortos cada vez mais perto da vereda.
Dois dedos dos meus pés dormentes enquanto caminho.
Não há fim à vista. As torres de vigia sentam-se, comovidas, à espera.
Há detritos no canal. E os mortos do cemitério, à espera.
No levante, guerreiros tentam em vão, forçar o fim-dos-tempos.
Os crentes buscando um Apocalipse que os salve da morte certa.
Sete terras para adiar o nosso fim. Os mortos esperam um Apocalipse que os salve.
Eu buscando um Apocalipse que me salve desta vida incerta,
à espera, com privilégios de primeira fila no poente do mundo.
Há detritos no canal. Cientistas juram que acharam sete Terras.
Um astro gordo saciando-se de planetas, adiando impotente o seu inevitável fim.

Imagina no fim dos tempos os mortos do cemitério, à espera.
À espera, com privilégios de primeira fila no poente do mundo.
No levante, guerreiros tentam em vão, forçar o fim-dos-tempos.
Os mortos esperam um Apocalipse que os salve. Há detritos no canal.
Cientistas juram que acharam sete Terras.
As torres de vigia sentam-se comovidas
e dois dedos dos meus pés dormentes enquanto caminho.
Sete terras para adiar o nosso fim. Não há fim à vista.
Eu buscando um Apocalipse que me salve desta vida incerta.
As lápides dos mortos cada vez mais se aproximam da vereda.
Um astro gordo saciando-se de planetas,
adiando impotente o seu inevitável fim.
Os crentes buscando um Apocalipse que os salve da morte certa.

Imagina eu buscando um Apocalipse enquanto caminho.
No fim dos tempos há detritos no canal.
Cientistas juram que os crentes cada vez mais se aproximam.
Não há fim à vista buscando um Apocalipse que me salve desta vida incerta.
Sete terras para adiar o nosso astro gordo.
E os mortos do cemitério, saciando-se de planetas,
tentam em vão forçar o fim-dos-tempos que os salve.
Adiando impotentes o seu inevitável fim, acharam sete Terras.
As lápides dos meus pés mortos sentam-se, comovidas.
À espera, guerreiros da vereda, um Apocalipse que os salve da morte certa.
As torres de vigia com privilégios de mortos
esperam um Apocalipse na primeira fila do poente do mundo.
No levante, dois dedos dormentes à espera do fim.

©2017 Alexandre-Alves Rodrigues