Paulo Gracindo - Coronel Odorico Paraguaçu |
"Felizmente, os factos reais, provam estes vendedores de banha da cobra errados no seu pessimismo e no seu fervor escatológico. Mas não nos iludamos. O poder está a ser transferido de uma elite para outra. Nada mais."
Desde há muito me considero um admirador profundo do realismo mágico literário em geral, e do seu expoente máximo, o mestre Gabriel García Marquez, em particular. O primeiro livro que li deste género e desse autor foi o “Outono do Patriarca”, a história de um ditador caribenho, Zacarias Alvarado, cuja idade, entre os 107 e 232 anos, é desconhecida na sua precisão. É pai de 5.000 filhos todos “setemesinhos” e cuja maior proeza, além das outras, foi a de vender o Mar das Caraíbas, em lotes, aos americanos. A minha estupefação ao ler este livro pela primeira vez foi tal, que ainda hoje considero um do meus romances preferidos junto com “O Amor nos Tempos de Cólera” do mesmo autor. Aliás este último é, ainda hoje, uma das minhas referencias literárias e, porque não dizê-lo, de vida.
Há pouco tempo atrás, durante as férias de verão, andava eu entediado nas redes sociais, quando se me deparou, numa delas, um “post” sobre as eleições autárquicas em Portugal. O candidato a presidente de uma junta de freguesia prometia algo como campas mais largas no cemitério local ou qualquer absurdo semelhante. Alguém comparou este absurdo às promessas do prefeito Odorico Paraguaçu da novela “O Bem-Amado”. Um acesso nostálgico transportou-me trinta e três anos atrás no tempo, a 1984, ano em que esta novela foi transmitida em Portugal, teria eu uns oito ou nove anos de idade. “O Bem-Amado” foi escrito em 1962 por Dias Gomes, escritor de teatro, cinema e novelas. Inicialmente uma peça de teatro chamada “Odorico, O Bem-Amado ou os Mistérios do Amor e da Morte”, foi adaptada para telenovela em 1972 tendo estreado no Brasil no ano seguinte e foi a primeira telenovela brasileira a ser transmitida a cores. Concluo portanto que, a minha admiração pelo, e fracas tentativas de emular o mesmo, realismo mágico (aqui, aqui e aqui) advêm pratrásmente na sua génese, talvez inconscientemente, destas fantásticas, e por que não dizê-lo, interessantes telenovelas.
Coronel Odorico, o personagem principal de “Bem-Amado”, é um político corrupto, prefeito de uma cidadezinha (vila) fictícia da Baía, nas margens do rio Paraguaçu, este último verdadeiro. Tal como o Zacarias Alvarado, é um mulherengo inveterado, apesar de casado, e pai de dois filhos legítimos. Um dos seus filhos ilegítimos na novela, nasce de sete meses, e é a cara do pai. Odorico é um intriguista, que procura, a qualquer custo, um defunto para poder inaugurar o cemitério que mandou construir, e que desde então está às moscas porque ninguém morre na cidade de Sucupira. A novela, ao contrário da peça de teatro, foi escrita como uma critica à ditadura militar brasileira, que estava no seu auge e em contraciclo com as últimas ditaduras europeias de direita que agonizavam nos seus estertores de morte. Como disse Chico Buarque de Holanda na época: este país ainda há de ser um imenso Portugal. Não sei se o Brasil se tornou um imenso Portugal ou não. Mas ultimamente, tal como os Estado Unidos da América, tornou-se numa paródia de si próprio.
Mas, como diria Odorico, deixemo-nos de entretantos e cheguemos aos finalmentes. Odorico foi o protótipo perfeito do ditador de García Marquez. Não sei se Marquez conhecia Dias Gomes ou se alguma vez assistiu à novela. Dias Gomes representou no Brasil o realismo mágico sul-americano, tendo sido possivelmente o seu maior expoente nesse país. Outras novelas deste autor, dentro do mesmo género, foram “Saramandaia” onde o realismo mágico é levado ao extremo com personagens como o professor Aristóbulo Camargo, que se transforma em lobisomem nas noites de lua cheia; Marcina, que provoca incêndios onde toca e queimaduras em quem toca; João Gibão, que esconde na sua corcunda um par de asas; Seu Encolheu, que prevê o tempo com dores ósseas; Dona Redonda, que não consegue parar de comer; Zico Rosado, que põe formigas pelo nariz, etc. Outros exemplos são “Roque Santeiro” com a sua mão cheia de estranhos personagens, “Mandala” ou “Araponga”, tudo novelas que me lembro de assistir a seguir ao telejornal num dos dois canais de televisão existentes à época em Portugal nos idos anos 80.
A personagem de Odorico foi criada treze anos antes de Marquez ter escrito em 1975 o seu famoso romance acima mencionado. As semelhanças entre Odorico e Zacarias são bastantes, apesar de Odorico ser menos fantástico que Zacarias. No entanto, partilham bastantes características, físicas e psicológicas: são ambos mulatos, sofrem de maleitas físicas, são mulherengos, ditadores, com filhos "setemesinhos", manipuladores manhosos e matreiros e ambos desprezam o povo que governam; “este bordel de idólatras” nas palavras de Zacarias ou “esse povo não merece o sacrifício que a gente faz por ele” num desabafo de Odorico à sua irmã. São ambos centrados em si mesmos a julgam que o mundo gira à sua volta.
Nestes tempos estranhos em que vivemos de realismo quase mágico e distópico os Odoricos e Zacarias voltaram a aparecer por esse mundo fora, depois de muitos anos escondidos e ostracizados. Invocam uma moral que não praticam, são adeptos, mais ou menos veladamente, de um regime económico que criticam em público mas praticam em privado, usam de palavreado populista que o povo entende e associa facilmente e um discurso que apela àquilo que as pessoas querem ouvir e sentir. Esse discurso, no entanto, não reflecte, a realidade - até a despreza como mentira e falsidade - mas apenas destila o medo instilado pelos media controlados pelos seus amigos e associados. O medo dos imigrantes, dos refugiados, dos outros países, de tudo o que é externo. O mundo à beira do caos económico e moral. A sua histórica incompetência governativa é disfarçada de vitimização: o país é vitima de poderes invisíveis (outros países, blocos económicos, inimigos internos, etc.). Tácticas antigas dos “ismos” mas que voltaram a estar na moda. Defendem que estão acima desses “ismos”, mas, tal como estes, gostam de usar bodes expiatórios para ocultar a sua própria ineficiência e incompetência. Usam de um discurso velho e gasto que, surpreendentemente ou não, ainda arrasta milhões. Uns porque são simplórios e facilmente manipuláveis, quais irmãs Cajazeiras da novela, outros, mais educados e ricos, por interesses óbvios. Afinal a história da humanidade tem-nos mostrado que as mudanças de regime, à esquerda e à direita, não passam de transferências de poder de uma elite para outra. Por todas estas razões “a gente vive num paiol de pólvora”, como cantavam Vinicius e Toquinho aludindo à ditadura militar brasileira. A diferença é que neste momento de estranho realismo mágico, nós, ao contrário dos brasileiros de 1972, caminhamos para lá a passos largos.
É certo que nos dias que correm é mais fácil desmascarar tais imposturas. Mas também é mais difícil para aqueles que ainda vêm as coisas com alguma clareza fazer-se ouvir. Desde o desmantelamento dos sistemas educativos, de saúde pública, infraestrutural e outros, providenciado pelo regimes político-económicos actuais, também eles “ismos”, é certo que o caminho que agora perigosamente percorremos de realidade alternativa é bem mais perigoso que aquele que percorremos como humanidade até aqui, pesar de não ser novo.
Usando do vocabulário de Odorico, deixemos de lado os oraveja e os virgesantíssima e fazendo uma análise teorística, psicanalistica e objectivistica, emboramente especulativista, poderemos concluir que estes novos Odoricos e Zacarias não passam de vigaristas, badernistas, vagabundistas, canalhistas e, porque não dizê-lo, senvergonhistas. Apenas usam uma máscara diferente.
© 2017 Alexandre Alves-Rodrigues
Interessante. Obrigado.
ResponderEliminarFiquei a pensar se esta sensação de que as coisas são hoje diferentes, com esta ideia de populismo e tal, não será exatamente a mesma coisa que sempre vivemos? Estava a pensar nessa ideia de "realidade alternativa" referida. A outra, a de antes, a que não era alternativa, chegava-nos pelos jornais, políticos mo espaço público sem contraditório a não ser de outros políticos, e academias. E hoje parece-me perceber que o que acontece é que esses três sempre nos têm vendido uma realidade pré-programada. Ou seja, talvez uma das conclusões é que na verdade as pessoas, os portugueses, talvez gostem do pensamento único, da ordem. do mesmo modo, parece-me desgraçadamente simplista o texto reduzir tudo a uma mera luta de poderes. Mas, bem vistas as coisas, é por causa disso que somos um país de esquerda: o socialismo (nazi ou soviético) e o pós-modernismo a dizer-nos que a única verdade é a luta de poder entre grupos. Tornou-se um dogma, o mais confortável de todos neste jardim à beira mar plantado.
Obrigado pelo texto!
(http://micropaisagem.blogs.sapo.pt/))
Caro VB,
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu comentário, é muito bem-vindo.
Nas diferentes realidades em que vamos vivendo, e que vão fazendo as épocas históricas, existe sempre uma luta pelo controlo da informação. Se reflectirmos bem, a civilização humana resume-se (simplificando ao extremo) em controlo de recursos e controlo de informação. Regra geral, quem controla um, controla o outro. Vivem em simbiose. Mesmo em democracia, onde o contraditório é um direito, a informação pode ser manipulada, escondida ou editada. Não discordo quando diz que os jornais e os políticos nos vendem uma realidade pré-programado. Não sei se concordo quanto à academia. No entanto as posições epistemológicas, e por consequência as ontológicas, dos académicos podem condicionar os resultados (repare, não disse distorcer). A ressalva é que um bom académico está ciente das limitações das suas descobertas e aberto ao confronto, desde que bem estruturado.
Deixando de parte estes "entretantos", as mudanças de qualquer regime (político, económico ou social), logo de poder, tem tendência para, ao fim de algum tempo, ficarem concentradas ou consolidadas, numa minoria. É o principio de Pareto. Parece que não há nada a fazer quanto a isso. Até mesmo em regimes comunistas, o poder fica, ao fim de pouco tempo, nas mãos de uma pequena elite. Portanto, continuo firme nesta posição que lhe garanto, não é nada simplista. É simplificada na sua descrição. No topo da “cadeia alimentar” as transferências de regime, de partido, de direcção administrativa, de poder, não são mais que mudanças de elite, mesmo que para isso, no meio, tenham de haver “revoluções” com os seus mais ou menos inevitáveis banhos de sangue, guerras, eleições, etc. E por detrás dessas mudanças de elite poderão estar interesses mais poderosos (países, grupos económicos, estratégias geo-políticas, construções de cemitérios, etc.) Veja o exemplo da Síria. E no meio disto tudo está também o controlo da informação e os interesses por detrás desse mesmo controlo. Até o caos informativo em que hoje aparentamos viver, beneficia uns e desacredita muitos.
Quanto a Portugal ser um país de esquerda, sinceramente, não sei. Saí desse “manicómio” há muitos anos e aquilo que transparece cá fora, é que, seja de esquerda ou direita a governação, Portugal é uma país onde se planeiam as coisas mal, se é que se planeia alguma coisa. As evidências são mais que muitas, mesmo com todo o ruído que se gera à volta dos acontecimentos. Continuamos a ter uma elite simplória, fechada sobre si mesma. Continuamos a ter uma população com baixa massa critica (repare, que não menciono níveis educacionais escolares). Continuamos a ter muita falta de civismo no dia-a-dia. Mas o país lá vai resistindo. Portugal é como uma barata. Se vier uma guerra nuclear, há hipóteses do portuguêsinho ser o único sobrevivente.