Já me questionei várias
vezes porque vim aqui parar. Nem eu sei bem, mas uma das razões foi para fugir
de tudo quanto me entristece no meu país. E se por vezes sinto falta da família
e dos amigos, por outras sinto remorsos por não estar com eles nos momentos
mais difíceis, como quando a minha centenária avó faleceu. Era a pessoa mais
idosa da minha cidade e ao que parece ao funeral apareceram mais curiosos que
amigos e familiares. Por aqui chove.
É uma das razões porque
não volto tão cedo a Portugal. As pessoas. Podem ser do mais generoso que há e
ao mesmo tempo serem uns pacóvios egoístas de primeira. Como aquele gerente de
um banco que não atendeu um cliente por este estar supostamente mal vestido.
Desde quando é que estar vestido para trabalhar, mesmo que seja um emprego
“sujo”, é estar mal vestido?
Aqui somos invisíveis.
Passo na rua e ninguém olha. Os britânicos acham que é rude olhar para
estranhos. Digam lá isto aos marinhenses que olham fixamente para os estranhos
de tal maneira que chega a ser desconfortável. Quando aqui alguém porventura me
olha, e por vezes acontece na mesma rua olharem-me mais do que uma vez,
pergunto à minha mulher se tenho alguma coisa na testa? A resposta é certeira;
estás a ser paranóico. Como é que estou a ser paranóico se num país onde todos
são invisíveis uns para os outros e na mesma rua me olham três vezes?
Manchester. Rochdale Canal facing Oxford Road.
Manchester não é uma
cidade bonita, mas gosto dela. Afinal “beauty is in the eye of the beholder” dizem
por estes lados. Saio de casa e atravesso o Irwell pela ponte pedonal que
desemboca no viaduto de Cornbrook, que o eléctrico percorre mesmo em frente à
minha casa, e que é paralelo ao viaduto ferroviário. Existem muitos viadutos
ferroviários por aqui. Alguns atravessam a cidade perturbadoramente perto das casas no
centro da cidade, numa intimidade estranha de quem não se importa, mas finge
que sim. Em Castlefield encontram-se todos os viadutos ferroviários de
Manchester, de pilares grossos como embondeiros, e rebites do tamanho de rodas
de camião. Relíquias vitorianas ainda em uso atestando a excelente qualidade da
engenharia do século XIX. É em Castlefield que dois canais se encontram numa
grande doca interior composta de edifícios de tijolo avermelhado, construída
nos tempos em que os canais eram as artérias principais de transporte deste
país, antes das locomotivas a vapor tomarem conta de tudo. O Bridgewater Canal,
por um dos seus braços a partir de Trafford, e o Rochdale Canal que atravessa
toda a cidade alimentado pelo rio Medlock. É pelas margens do Rochdale Canal que
eu gosto de passear. Algo que excepcionalmente tenho feito, porque não foi
construído para carrinhos-de-bebé, e desde que o meu filho nasceu, este tem
sido um prazer raramente desfrutado. Gosto do ruído de cascatas das comportas
de desnível reverberando pelos túneis iludindo-nos do ruído da rua, dos carros que passam. Os túneis mais não são que viadutos de ferro
das estradas que transportam as alegrias e tristezas de todos os que por elas
passam e passam por cima de mim: Deansgate, Oxford Road, Portland Street e
Picadilly Gardens.O canal leva os sentimentos da cidade para outras paragens. Por outros canais, talvez outras cidades, para o mar. Não sei.
Os ingleses são pouco
originais na nomenclatura das ruas das suas cidades. Em todas elas existe uma
Vitória ou Albert Square, Oxford Road ou Street, Princess, King, Portland,
Picadilly que em Londres se chama Circus, e que não é mais que uma rotunda, e
Gardens em Manchester que não mais é que um terreiro cuja única árvore de
relevo é feita de metal com nomes gravados dos civis mortos na cidade durante
os bombardeamentos da II Guerra Mundial. Mas é em Picadilly Gardens que
Manchester acaba, afinal toda a gente vem aqui parar. Ou será que é onde
começa? Eu, por mim lanço uma moeda ao ar. Caras, fico. Coroas, volto.
Benjamim encontrava-se
junto ao cais. Assim que soube noticias de Adelaide meses atrás, ficou
excitadíssimo por ir rever aquela cara que há mais de dezoito anos não via.
Quando Adelaide lhe dissera que iria voltar à cidade onde ambos nasceram e
cresceram para rever pais e amigos naquele Natal, Benjamim voltou a lembrar-se
do passado e de como os dois se tinham separado. Uma separação dolorosa para Benjamim,
que se apaixonara por Adelaide, sua vizinha e amiga de longa data. Benjamim
declarara os seus sentimentos, mas Adelaide respondera com um não que ficara
marcado para sempre a ferro e fogo no coração deste. Sempre gostara de Adelaide
apesar de esta lhe parecer por vezes demasiado “coquete” e superficial nas suas
conversas. Benjamim sabia que debaixo daquelas roupas e sapatos de marca que
Adelaide fazia discreta questão de usar, havia mais do que os seus amigos viam e
por vezes escarneciam. Benjamim concordava com eles à superfície, afinal era
assim que Adelaide se mostrava ao mundo. No intimo, sabia sem saber, que
haveria mais dentro daquela miúda do que aquilo que esta deixava transparecer.
Adelaide tinha as mesmas origens humildes de Benjamim, os pais desta mudaram-se
da ex-colónia para aquela cidade, tornaram-se vizinhos dos pais de Benjamim e
por lá assentaram. Adelaide e Benjamim cresceram quase juntos. Quando tinha
onze anos, Adelaide apaixonara-se pelo ar confiante de Benjamim; mais
inteligente para a idade que os outros rapazes, mas também pelos seus olhos
brilhantes e cheios de energia. E por um sorriso que desarmava qualquer um.
Mas, a vida tem destas coisas, e a pré-adolescência é apenas a porta de entrada
para o turbilhão de sentimentos que se segue. Benjamim nessa altura gostava de
Irina, a morena e sardenta filha do professor de matemática que vivia no mesmo
bairro. Adelaide fez Benjamim saber dos seus sentimentos mas este mais
fascinado com Irina, disse-lhe que não. Adelaide desapareceu por alguns anos da
vista de Benjamim, evitando-o. Benjamim cedo se aborreceu de Irina.
Quando uns anos mais
tarde, já Benjamim entrava pela adolescência dentro, voltou a encontrar
Adelaide. Era Verão, durante as festas populares, à noite o rosto bronzeado de
Adelaide reflectia as chamas das fogueiras de rua, mas o semblante estava
diferente, mais mulher sem ainda bem o ser, os olhos cor de avelã mais
luminosos, o cabelo loiro mais longo e ondulante, onde dantes era curto e liso.
A partir desse dia Benjamim nunca mais foi o mesmo. O miúdo extrovertido
tornou-se melancólico para grande tristeza dos pais. Fechava-se longas horas no
quarto sem conseguir tirar a imagem de Adelaide da cabeça, sentindo um grande
aperto no coração. O mesmo aperto que ainda hoje sentia ao fim destes anos
todos. Adelaide tornara-se superficial, "coquete", ou pelo menos
assim queria dar a entender, Benjamim sentia-se inferior. Nunca tinha
abandonado as suas raízes nem pretendia fazê-lo. Claro que tinha as suas
ambições e os seus sonhos, mas Adelaide parecia aspirar a uma vida bem mais
afluente. Era como se em segredo fabricasse essa invisível mas indelével teia
que passou a caracterizá-la da adolescência em diante. Benjamim sentia-se
desconfortável por esse lado de Adelaide, mas ao mesmo tempo o seu rosto não
lhe saía da cabeça. Quando por fim teve coragem para lhe dizer que a amava, sem
esperança de uma resposta positiva, já Benjamim sabia de antemão que tinham
ambos tão pouco em comum; ele tímido, ela distanciada, Adelaide respondeu-lhe
que gostava dele simplesmente como amigo e que estava fora de questão
namorarem.
Benjamim sentiu uma
vertigem, embora ao mesmo tempo as dúvidas que tinha acerca de Adelaide, e o
que ela sentia, ou não por este, dissiparam-se. E não conseguia deixar de
considerar que esta tinha sido uma cilada em silêncio urdida por Adelaide para
se vingar do seu desprezo por ela anos antes. Mal sabia ele que Adelaide por
seu lado carregava consigo sentimentos de culpa tão grandes como o desgosto de Benjamim,
por ter sido tão fria e distante para com este, e por pensar que se ele a
queria teria de lutar por ela. No fundo ainda gostava de Benjamim, mas este por
se sentir sem forças e cansado de amar e não ser correspondido, aceitou a derrota
amargamente e decidiu esquecer Adelaide. Ou assim o pensou.
Façamos agora uma pequena
pausa nesta história, apenas para reflectirmos naquilo a que os antigos gregos
chamavam de caprichos dos deuses contra os mortais, especialmente no que toca
às coisas do amor, ou forças universais que se unem para fazer divergir duas
pessoas de tal modo que estas se desencontram constantemente e que mais não são
que tristes coincidências da vida, fazendo com que muitos a considerem injusta
e triste. Este é um desses irremediáveis casos que o destino não quis unir.
Posto este curto parêntesis retomemos então a nossa história.
Depois deste episódio de
desamores, algo completamente inesperado se passou fisicamente com Benjamim,
resultando que este nunca mais cresceu. Crescer aqui é uma figura de estilo. O
que se passou com Benjamim foi que este não envelheceu um só dia como o resto
dos seus amigos, que com o passar dos anos foram ficando calvos, com algumas
rugas e mesmo grisalhos. Benjamim por seu lado ficou preso no seu corpo e rosto
de adolescente, salvo a sua mentalidade, que evoluiu normalmente muito para
alívio de amigos e familiares. O outro fenómeno que nunca mais desapareceu foi
o tal aperto no coração, como se duas mãos estivessem prestes a esmagá-lo quando
menos esperasse. Uns dos efeitos secundários dessa estranha sensação eram os
constantes pesadelos que tinha de noite, acordando suado e arrepiado com as
visões terríveis que tinha. Benjamim continuou a viver na cidade que o vira
nascer, tendo arranjado um emprego sem história nem distinção.
Adelaide por seu lado,
também não ficou imune fisicamente depois desta desventura. No seu caso, um
envelhecimento físico precoce tomou conta do seu corpo, e aos vinte anos já
tinha rugas marcadas à volta dos olhos, aquilo a que o vulgo chama de
“pés-de-galinha” e que era suposto aparecer muitos anos mais tarde. O outro
fenómeno que nunca mais desapareceu foi um grande vazio no coração de Adelaide,
como se este não existisse ou batesse incógnito algures num vácuo escuro. Esse
vazio reflectia-se no olhar distante e apagado que caracterizou Adelaide a
partir desse dia em diante. Desculpava-se com o estudo da medicina a que se
tinha dedicado de corpo e alma na capital, e à especialização em cardiologia,
disciplina ainda mais exigente, mais por necessidade de saber o que lhe tinha
acontecido do que por verdadeira vocação. Um dos efeitos secundários que
experimentava era o completo desaparecimento dos sonhos enquanto dormia. A
única coisa que ficou foi a sua ambição de se tornar rica e esquecer os tempos
difíceis da sua infância naquela cidade de gente pobre.
Voltemos ao cais do
inicio da nossa história. Benjamim resolvera ir buscar Adelaide ao outro lado
do rio que separava a sua cidade da capital onde esta vivia. A viagem de barco
durava dois dias, não só porque a foz daquele rio era larguíssima, como as
correntes eram extremamente fortes e as marés de uma amplitude tal que nas
vazantes o rio tornava-se uma miríade de ribeiros no meio de um areal empapado
em água, sendo que na enchente as vagas eram tão grande como em alto mar, e
chegaram, em tempos idos, a tragar navios inteiros com tripulação e carga em
alturas de tempestade e lua cheia. Os ferries que agora atravessavam aquele
singular curso de água tinham um casco especial que lhes permitia assentar
direitos no lodo sem se inclinarem ou afundar, e aí permaneciam como que
encalhados durante a maré baixa. Era uma viagem de paciência, mas também
servia, nas horas paradas da maré vazia, para assomar à amurada e reflectir sobre
a distancia física e sentimental das duas cidades e o quão pouco tinham em
comum, ou sobre as injustiças da vida, a natureza, e o piscar de olhos que é a
duração de um ser humano, ao mesmo tempo que se ia cheirando a maresia e
olhando as gaivotas sobrevoando a embarcação. Era nestes vagares que o
adolescente de corpo Benjamim se encontrava, a sua cara era como a de um boneco
de cera, sem expressão que desaparecera devido à peculiaridade da sua condição
física. Benjamim via nas gaivotas a Adelaide que a partir de uma certa idade
quis abrir asas e voar, e via no lodo do rio e nos intermináveis córregos
aquilo em que a sua vida se tinha tornado; um lamaçal labiríntico de
sentimentos contrários e sem saída. As marés quando subiam, eram como um
enxaguo, lavavam por momentos esses sentimentos obliterando-os, mas, qual
feitiço, voltam sempre para o atormentar quando a água desaparecia e o fundo do
rio se mostrava tal qual era, um lodaçal pantanoso. Benjamim não conseguia
deixar de se sentir assim quando pensava em Adelaide, na bela Adelaide que lhe
escapara como a areia da praia se escapa por entre os dedos das mãos. Sentia-se
incompleto e permanentemente triste por não ter sido capaz, ou não ter querido
interpretar os sinais que a evidência lhe mostrara. Mas estava resolvido a não
mostrar nada disso a Adelaide quando a encontrasse. Queria mostrar-se forte e
fazer-lhe ver que a tinha esquecido. Afinal Adelaide agora era uma respeitada
cardiologista, casada com o investigador que tinha estudado o peculiar caso de Benjamim,
e tinha daquele uma filha. Fora por essa via e coincidência, durante uma
consulta com o investigador que Benjamim veio a saber do paradeiro de Adelaide.
O encontro de Benjamim com
Adelaide deu-se no cais do lado da capital. Se esperavam lágrimas ou longos
abraços, desenganem-se aqueles mais dados ao melodramático. Quando se viram,
trocaram cumprimentos de circunstancia, como se tivesse sido ontem que se
tinham visto pela última vez, e não fosse os pouco convictos e circunstanciais
“estás na mesma” e “não mudaste nada” seguido do “obrigado, não é verdade” e do
“quem me dera”, ambos teriam preferido secretamente a opção melodramática, mas
a distancia cronológica e física que os separava, a dignidade a manter naquele
lugar público e a timidez de ambos não o permitia. Adelaide vinha num carro
branco construído nos países do norte. O interior era totalmente branco forrado
a pele, uma daquelas opções de personalização em massa que iludem os mais
incautos, julgando estes que têm um modelo único. Vestia-se, não mais como a
adolescente que Benjamim se lembrava, mas elegantemente, sempre de roupas na
moda que lhe acentuavam a beleza natural. Eram também de cor branca. Benjamim
cogitou cinicamente para si mesmo que esta deveria ser a cor da época. Mas o
nosso Benjamim também não ia mal vestido. A roupa nova que fizera questão de
comprar e usar naquele dia salientava a dignidade e o brilho nos olhos que
ainda conservava junto com as suas feições de adolescente. Reparou então Benjamim
que dentro do carro totalmente branco estava uma pequena criatura, uma menina
inteiramente vestida de preto, de cabelos da mesma cor, tal como os do pai. Benjamim
perguntou por ele. Adelaide respondeu-lhe que estava demasiado ocupado entre
consultas e trabalho na universidade onde investigava as maleitas do coração
físico, porque do outro, o sentimental, existem poucos especialistas, e não
raras vezes são os próprios donos que têm de buscar por si mesmos a cura para as
suas enfermidades.
Na viagem de volta para a
cidade que os viu nascer, Adelaide retirou-se para o seu camarote e
ambientou-se àquele lugar iria passar a próxima noite junto com a sua filha.
Depois disso encontrou-se com Benjamim no bar onde beberam um copo. Ambos
estavam com dificuldade em entabular uma conversa mais profunda e Benjamim
perguntou o que tinha sido feito de Adelaide quando esta resolveu ir estudar
para a capital. Mergulhei nos estudos, foi a sua resposta. Fiz a especialização
em cardiologia, pelo meio namorei um rapaz, mas não deu certo e foi só no fim
dos estudos que conheci o meu marido, primeiro como estagiária no consultório
deste, depois como associada e no fim acabámos namorando e casámos. A Eugénia
veio naturalmente depois. E tu? Perguntou Adelaide, o que é feito de ti? Eu
fiquei-me pela nossa cidade, respondeu Benjamim. Arranjei um emprego no
departamento de trânsito da cidade, nada de especial, introduzo os dados dos
utentes que adquirem licenças e cartas de condução. Não me chateiam muito,
pagam ao final do mês e dá para me manter. Decidi não me preocupar muito com o
emprego, gosto de outras coisas, de admirar o mar, de estar sozinho no meio das
multidões, de apreciar o que a natureza tem para oferecer, afinal só vivemos
uma vez. E não, nunca mais amei ninguém. E com isto levantou-se e retirou-se.
No dia seguinte o ferry
tinha assentado no lodo da maré baixa depois de uma noite agitada de muita
ondulação, que naquele enorme barco não mais era que umas sacudidelas de vez em
quando, mas que mareava os menos habituados ao jogos da ondulação. Benjamim
teve uma noite de pesadelos, como já era seu hábito, apenas mais intensos, e o
aperto no coração quando acordou, banhado em suor, era tal que sentia o peito a
explodir. Adelaide por seu turno dormiu embalada pela forte ondulação depois de
adormecer Eugénia. Adelaide e Benjamim voltaram a encontrar-se. Desta vez
estavam sozinhos, a menina tinha sido deixada aos cuidados da creche existente
no barco e que providenciava divertimentos de vária espécie aos infantes.
Depois de mais conversa de circunstância sobre as famílias de uns e outros,
exasperava então Benjamim, por ser uma pessoa directa e sem rodeios e a
conversa andava demasiado às voltas para o seu gosto. Tomou então a coragem de
um trago, como se inalasse nos seus pulmões todo o ar que pairava por cima
daquele grandioso rio, e confessou a Adelaide que há já algum tempo precisava
saber realmente o que se passou depois daquele fatídico dia em que as suas
vidas tomaram rumos divergentes. Adelaide fingiu não perceber e respondeu a Benjamim
que já lhe tinha explicado. Benjamim insistiu. Não era na sua vida de estudante
e de médica que estava interessado, mas sim sobre o que se passou no seu
coração quando lhe declarou o seu extenso amor por ela. Benjamim explicou-lhe
então que desde há algum tempo se apercebera de uma certa inquietude dentro de
si, como se um fantasma do passado tivesse voltado e pairando constantemente,
se tornara num dos seus constantes pesadelos. Tal como os fantasmas das
histórias, almas penadas em busca de descanso final, Benjamim sentia que
necessitava dessa explicação de modo a apaziguar o seu apertado coração para
que a sua vida pudesse continuar, onde até agora se mantivera suspensa.
Adelaide então, a custo
começou por confessar que anos antes de Benjamim declarar o seu amor por ela,
tinha tido um fraquinho por ele e que se sentira à época um pouco insegura por
ser um rapaz tão extrovertido e por saber também que Irina gostava dele.
Acrescentou Adelaide que na altura se emocionara por causa disso, mas que,
muito mais tarde mesmo, vira a situação como algo sem importância e passageiro,
coisas de crianças. Depois, sentiu uma profunda vergonha, por ter sido
rejeitada por Benjamim, e porque sabia que no bairro as pessoas mais velhas
eram sarcásticas em relação a estas coisas e faziam pouco das crianças. Benjamim
concordou, dizendo que ele passou pelo mesmo quando lá em casa se puxou pelo
assunto de Irina. Adelaide então, olhando para a margem do rio que contornava a
capital disse: Foi nessa altura que tomei a decisão de querer sair da nossa
cidade e deixei de me rever nas pessoas do nosso bairro. Queria aspirar a algo
melhor, ter uma vida mais decente, menos restringida financeiramente. Quando
nos reencontrámos, naquela noite de Verão, eras mais um, tal qual os outros do
nosso bairro de quem eu queria fugir. A tua declaração não me apanhou
desprevenida. Eu sabia que tu gostavas de mim, o bairro é pequeno, sabe-se
tudo. E de certo modo, a minha imaturidade de adolescente queria-se vingar de
ti. Queria que tu lutasses por mim, para me mereceres. Sabes Benjamim, nós
mulheres gostamos de jogar ao gato e ao rato com os homens; não nos queremos
entregar demasiado facilmente por um lado, por outro a nossa insegurança nata
não quer ter dúvidas quando alguém gosta de nós. E mais ainda no teu caso, que
já tinhas gostado de alguém antes… daí o meu não. Adelaide fez uma pausa.
Tentava reprimir a emoção que tinha tomado conta de si, e esforçava-se por não
vacilar e começar a chorar. Vocês homens pensam que nos têm na mão quando enfim
somos nós que vos comandamos, e se porventura nos deixamos cair nos vossos
braços é porque queremos. Afinal estava certa. Não gostavas de mim. Viraste a
cara à luta e eu continuei o meu caminho. Teria sido a minha última
oportunidade de voltar atrás com a minha decisão de querer sair da cidade. Por
isso desapareci assim que pude e nunca mais lá voltei. Até hoje.
Assim que a maré começou
a subir e o barco se começava a sacudir do lodo um vento forte vindo do norte
se levantou. Benjamim agradeceu aquela agitação gelada que lhe esfriava as
ideias e ainda mais a raiva e evitava que as lágrimas lhe saíssem dos olhos.
Deixou que as suas narinas inspirassem aquele ar frio e salgado, como uma droga
que lhe subisse rapidamente à cabeça e com coragem trémula começou por despejar
o que guardara dentro de si durante aqueles anos todos. Era verdade que tinha
gostado de Irina, durante um tempo, mas tinha onze anos e Adelaide ainda era
para ele a vizinha do lado, quase como se fosse sua irmã. E mais tarde quando
soube que Adelaide gostava dele sentiu-se lisonjeado mas sentira que esta tinha
ficado magoada e preferiu não tocar mais no assunto dentro da sua mente, até
porque nessas idades existem muitas coisas com que nos distrairmos, e Benjamim
não era diferente dos outros meninos quanto a esse facto. E também por lá em
casa saber-se que duas meninas do bairro andavam apaixonadas por ele levou a
uma certa chacota por parte dos seus irmãos mais velhos e uns risos meio
paternalistas por parte dos pais. Foi a partir daí que Benjamim se tornou mais
reservado em casa, e encontrava nos amigos mais chegados os seus confidentes.
Sempre me identifiquei com as pessoas do bairro e especialmente os nossos
amigos de infância, confessou Benjamim a Adelaide. Mas naquela noite de Verão,
quando te voltei a ver, algo emergiu em mim, não sei explicar, vi-te com olhos
diferentes, talvez por nos termos distanciado um do outro, e estavas mais
bonita. As noites quentes daquele Verão também ajudaram aos sentimentos que
passei a nutrir por ti. E no entanto sempre te mostraste distanciada… ou assim
me pareceu. E isso magoou-me. Muito. O coração de Benjamim nesta altura quase
que lhe saía pelo peito, a adrenalina estava ao rubro, e o facto de estar embriagado
por esta fez com que continuasse, não antes sem respirar novamente aquele ar
frio. Eu soube por terceiros que tu não estavas interessada em mim, ou que
tinha sido isso que lhes disseste, mas ainda assim queria saber directamente
por ti se assim era. Só assim, pensei eu, te conseguiria esquecer. Quando me
disseste que não, então percebi que realmente não valia a pena perder nem o meu
tempo nem o teu, e porque já estava cansado, desisti. E tentei esquecer-te…
Façamos aqui mais uma
pausa nesta história de desencontros e desamores, para reflectir um pouco sobre
a natureza humana e quão diferentes são os homens das mulheres, e como ambos
reagem de modo desigual nas mesmas situações. Será caso para dizer, que o amor
nem sempre bate à porta certa e quando bate ninguém atende. Se fossemos de
outro planeta e nos contassem esta história não incomum, pensaríamos que estes
estranhos seres humanos, quando finalmente se juntam para partilhar a sua vida
com alguém não é por amor, mas porque decerto o amor nada quis com eles,
acabando por ir bater a outras portas, por caridade ou por medo de esgotar os
seus dias sozinhos. Retomemos então o fio a esta meada.
Depois desta conversa
Adelaide e Benjamim não se falaram mais, antes recolheram aos seus respectivos
camarotes para chorar, de tristeza, de raiva e de frustração, amaldiçoando
ambos a vida, os céus e tudo quanto existe debaixo destes. No entanto ambos
sentiam um grande alívio, como se lhes tivessem tirado o peso do mundo de cima
dos ombros. Benjamim, porque dissera tudo ou quase tudo o que tivera guardado
no seu coração esses anos todos, Adelaide porque finalmente percebera que tudo
o que ficou por dizer por parte de ambos tinha sido dito, explicado e posto em
pratos limpos. Benjamim sentia o seu coração mais leve, sem o sufoco a que se
tinha habituado, Adelaide sentia que o seu coração afinal existia e ocupava um
lugar no peito.
Quando finalmente a
margem da cidade onde os nossos personagens nasceram se começava a vislumbrar
no horizonte e estes se preparavam para voltar ao bairro onde cresceram algo
dentro de ambos se começava a metamorfosear. Benjamim começara lentamente a
envelhecer e Adelaide principiara a perder as muitas rugas que a
caracterizavam, em excesso para a sua idade. No final da sua visita aos pais,
quando Adelaide se preparava para regressar à capital, e acabava de arrumar as
suas malas e a filha no carro branco, Benjamim veio despedir-se. Obrigado por
me teres dado a oportunidade de me explicar. Eu é que agradeço, retorquiu
Adelaide. Ainda bem que esclarecemos tudo. Ambos notaram que o outro estava
diferente, Benjamim com algumas rugas e alguns cabelos brancos nos lados da
cabeça, Adelaide rejuvenescera quase vinte anos e tinha agora um olhar mais
luminoso, menos cansado e mais fresco. Adelaide partiu triste por ter perdido Benjamim
para a vida e por não ter usufruído desta como deveria, mas aliviada por ter o
seu coração de volta e no seu lugar próprio. Benjamim ficou alegre por agora
poder continuar a sua vida, onde esta parou e foi percorrer o mundo, pois até
aí só conhecia a sua cidade e pouco mais.
E para que volte a haver
equilíbrio no universo desta história, porque é justo e saudável, Benjamim
acabou os seus dias ao lado da viúva Adelaide, como vizinho desta numa cidade
qualquer longe de tudo, contando-lhe as fabulosas histórias das suas viagens em
belos almoços regados com muito vinho.