Querida Eunice,
Aquilo que irás ler é uma carta cheia de clichés e frases
feitas, algo que usamos frequentemente na nossa relação, no entanto não encontro
outro modo de descrever o que sinto, e quando a leres já terei partido.
Hoje é o meu quadragésimo aniversário e acordei descobrindo
que esta não é a vida que quero para mim. Chama-lhe crise de identidade, crise
de meia-idade, até podes chamar-lhe cobardia e desistência que eu não me
importo. Sei sim que fechado no nosso mundo de rotinas sete dias por semana,
filhos, empregos medíocres, famílias poucochinhas e sei lá que mais, sinto-me a
morrer. A morrer física e mentalmente, devagar mas implacavelmente. Não fui
feito para isto. Perguntar-te-às, então porque só agora me dizes? Porque só
agora tomei coragem, porque só agora não aguento mais, porque só agora. Para ti
talvez seja suficiente, a segurança de um lar e de uma família, casa, comida na
mesa e a educação dos filhos. Afinal não é o que a maioria das pessoas
ambiciona? Eu, infelizmente ou felizmente, já não sei, não sou como a maioria
das pessoas. Eu tenho de continuar a abrir horizontes, quero ver o mundo, mau e
bom, as pessoas, conversar com elas, saber o que fazem e porque fazem. Quero
descobrir outros corpos, outras vidas, dar grandes cabeçadas, arriscar,
aventurar-me, perder-me para me poder achar.
Descobri, tarde de mais dirás tu, que não tenho feitio,
cabeça, pachorra, habilidade ou vontade de estar amarrado a rotinas de
casa-trabalho, trabalho-casa, visitar-a-familia-poucochinha,
mudar-a-fralda-à-miuda, dar-de-comer-ao-rapaz-que-tem-de-ir-para-a-escola,
fazer-amor-aos-fins-de-semana-quando-há-tempo-para-isso-e-não-estamos-ambos-a-cair-de-cansados-por-causa-da-rotinazinha-diária,
as comidinhas, os bolinhos, as bebidinhas, os almoços-e-jantares onde as
pessoas só vomitam trivialidades. Isso para mim é tudo uma prisão. E nem é
dourada, é cinzenta-chumbo, é tão certa como o dia ter vinte e quatro horas.
Porque é que o dia tem vinte e quatro horas, porque é que as horas estão
divididas em sessenta minutos, e os minutos em sessenta segundos? Não quero ter
horários, nem dias de vinte e quatro horas. Quero dias de dezasseis, outros de
trinta. Só assim saberei apreciar a vida e o que ela tem de bom e mau para dar.
Quero poder amar durante dias de quarenta e oito horas, viajar em dias de dez,
e chegar a um destino ao pôr-do-sol sobre um mar laranja em dias de duas horas.
E acordar numa montanha tão alta, ao fim de minutos de sonhos, que consiga ver
o mundo inteiro tal como ele é, não como querem que eu o veja.
Desculpa se achares que perdeste todos estes anos de vida
comigo. Eu da minha parte aprendi muito, e agradeço-te o tempo que passaste
comigo, o amor que certamente me deste, os lindos filhos que tivemos (eu
avisei-te quanto aos clichés). Mas eu não sabia. Ou melhor, sabia mas neguei-o
a mim próprio. Quis pensar que assim, de vidinha estável é que era bem, um
emprego serviçal mas regular, apanhar o comboio todos os dias para ir
trabalhar, voltar a casa e beijar a esposa e os filhos rechonchudos, visitar os
pais avós primos tios ao fim-de-semana, era o que todos à minha volta
esperavam; era o que tu esperavas, a família, os amigos, o senhor Antunes da
repartição de onde me despedi hoje mesmo, a D. Antónia da mercearia onde todos
os sábados íamos comprar fruta (lá está, a rotina), e até o padre que nos
casou. Eu sei que te vai doer, me vai doer, vai doer aos miúdos. Mas era isto
ou a loucura, o inferno. Não essa, mas outra tristeza. Porquê só agora? Não
sei, porque só agora senti coragem, só agora o copo entornou, só agora a vida
que levo deixou de fazer sentido. Era isso ou a loucura, ou o suicídio, ou, ou…
Portanto… não há maneira de dizer isto de outra maneira, que
não soe lamechas ou pirosa, quero que saibas que apesar de tudo podes contar
comigo, os miúdos podem contar comigo, não sei se financeiramente, nem sei se
em pessoa, afinal os meus dias irão ter horas diferentes dos vossos, o meu
tempo e o meu espaço serão diferentes dos vossos. Uma coisa é certa, partirei
como os nossos antepassados pré-históricos partiram; sem a certeza de voltar do
outro lado da montanha. Houve quem afirmasse que do lado de lá a erva é sempre mais verde, e as
estrelas brilham melhor nos arquipélagos do sul.
Não quero que me odeies. Se me odiares, paciência. Não
poderei fazer nada quanto a isso, mas preferia que ficássemos assim. Assim?
Assim. Como estaríamos agora se eu no dia do meu quadragésimo aniversário,
decidisse ficar em casa, esperar que tu viesses com a rotineira prendinha,
acompanhada dos miúdos, fossemos talvez almoçar ou jantar fora como fazemos
todos os anos, e eu infeliz, e tu infeliz, cansados, saudosos do tempo em que
nos amámos de verdade, eu em busca da aventura do teu corpo, tu em busca de
segurança no meu peito, e os miúdos pensando que éramos felizes.
Um abraço grande,
Fernando.
© Alexandre Rodrigues 2012