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sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Missa em Si menor.




Kyrie Eleyson, Christe Eleyson. Senhor tem misericórdia de mim, pobre pecador que aqui vou relatar a minha fraqueza carnal, durante a missa à tua pessoa, quando do coral de negro vestido, aquela formosa mulher sobressaiu e eu vil mortal, da penumbra da minha cadeira a contemplei durante todo o serviço. Kyrie Eleyson, tu que és denunciador, carcereiro juiz e carrasco da tua própria lei, tem misericórdia de mim, pelo menos enquanto as sopranos principais se esgrimem em boquinhas irritantes ignorando-se uma à outra, ou pelo menos assim parece, no Christe Eleyson

Gloria in Excelsis deo. Dei com ela por acaso enquanto cantava, a voz diluída nas vozes das outras sopranos e entrelaçada nas outras vozes do coro. Tinha uma espécie de nobreza de carácter mas sem a altivez típica. Glória a deus nas alturas por tão formosa mulher - os meus olhos agora fixos nela - estava entre uma senhora mais velha, de cabelos brancos, e uma menina talvez adolescente, e era de uma beleza serena  et in terra pax , que ressuscitava quando cantava numa sensualidade de sombra de olhos e carmim de lábios restringida por tão santo local e ocasião.

Laudamos te, por um lado porque agora deste descanso a tão formosa criatura, no meio de tão corpulentas sopranos. A face em descanso sem a expressividade necessária para te louvar. Não te laudamos por outro, porque não gosto da segundo soprano principal. Porque é que essa carinha irritante de lábios fininhos e loiro pintado foi escolhida em vez da minha musa, enquanto a soprano principal, mais nova de aparência, sentada, hirta (estúpida), com cara de frete, fazem sempre cara de frete quando não é a vez delas cantar, de lábios engelhados a pensar; eu canto melhor que tu sua parva de cabelo loiro pintado e lábios fininhos com uma papada a crescer-te debaixo do queixo. 

Gratias agimus tibi porque as duas idiotas estão ambas sentadas, as duas com ares de frete, a entreolhar-se pelo canto do olho, eu sei o que pensas de mim, achas-te melhor passarinho que eu, pois sim. E eu meio enfadado, agradecendo a todos os santinhos por aquele anjo vestido de negro que me veio iluminar o serão de outro modo monótono. Eu aqui a ouvir missa. Mas ah, que caracóis aqueles, dois ou três libertos do resto do cabelo apanhado, em equilíbrio nos ombros finos de porcelana. Graças, graças por tão formosa figura. Por ela sacrificaria de bom grado a minha incredulidade. 

Domine Deus que agora temos dueto! Pronto, levantou-se o primeiro tenor de ar simpático que se interpõe entre as duas sopranos principais nos ensaios, aposto que assim: senhoras então? Respeitemos a música! Flauta transversal no fundo a dar uma atmosfera bucólica de naturezas mortas, vinhas e sol de Verão italiano. Lembra-me um famoso compositor de obras fáceis mais o seu bandolim amestrado. 

Qui tollis peccata mundi, afasta de mim estes pensamentos; como a queria beijar agora, saltar da cadeira, empurrar o maestro nervosinho, talvez uma biqueirada no primeiro violinista que se levantaria bruscamente a esfregar o traseiro escandalizado, e o tenor; senhores, então? Respeitemos a música! E ela sem saber o que a esperava, entreolhava a senhora mais velha e a menina adolescente, e quando menos esperasse pregava-lhe um beijo que a faria corar de surpresa, vergonha e prazer, tudo ao mesmo tempo; agarrar-lhe-ia na mão e rapta-la-ia num sorriso de sátiro entre surpreendido e o maroto e com requintes de “malvadez”. 

Qui sedes ad dexteram Patri. Eu não estou nada sentado à direita do meu pai, que nem é para aqui chamado. Ena, no programa diz contralto e eu estou a ver um contra-tenor magrinho a levantar-se do lado da segunda soprano e cantar com voz de senhora (falsete), falsete!? Cheio de mesuras e choradinhos quando as sopranos lhe gritam censuras com entoação de cristal quebrado durante os ensaios. 

 Quoniam tu solus sanctus. Um homem de voz de homem, não aquele loirinho de voz esganiçada; juro que se fechasse os olhos diria que era uma mulher a cantar. Corno da caccia obbligato. Bate certo, um corno de caça, um baixo barbudo com ar de corno, o corno tocado por uma gorda senhora de óculos, muito vermelha a tocar baixinho, aposto que casada com o corno, o de barbas, não o de voltas e revoltas de latão, ora pois. A minha santa, enquanto os cornudos se digladiavam apanhou o cabelo com uma mola, de tal modo que o cabelo lhe deixava entrever uns brincos negros brilhantes de obsidiana, e o pescoço, gloria in excelsis, agora sim, de mármores de Carrara que eu beijaria eternamente num arrepio infinito de pele-de-galinha.

Cum Sanctu Spiritu que glória divinal, aquela boca voltou a mexer-se, os seios trementes enquanto os ohohohoho’s do in Gloria Divinal são exalados em ritmo frenético, atirando-me para um transe ora suado ora acordado, incrédulo de tamanha capacidade torácica potenciada pela secção de metais, acicatados por sua vez pelo órgão distante mas presente, fazendo vibrar paredes e entranhas enquanto os arcos das cordas se movem para cima e para baixo e em diferentes ângulos, atirando-me ora para picos de cumes nuca antes escalados, ora para abismos secretos negados pelo decoro da solenidade.
Credo! Estou que nem posso, como se no meio de um delicioso pesadelo do qual por um lado não quero acordar, mas por outro me embaraça se não abrir os olhos e descobrir que afinal estou deitado em minha cama, ouvindo os ecos distantes de lás mixolidios de uma música ancestral tantas vezes ouvida, a ressoar dentro do cérebro como se de uma coceira mental se tratasse.

Patrem Omnipotentem factórem cæli et terræ, visibílium ómnium et invisibílium, que também fabricou esta deusa menor, de beleza inigualável, de caracóis suspensos, boca de carmim, seios vibrantes e coxas que se adivinham formosas e tenras. E criou-me a mim, criatura imerecedora de tal graça e formosura, viajante clandestino das fantasias profanas em território sacro. Oh alegria dos sentidos e infortúnio de vida! Estou tão Saturnal que nem posso!

Et in unum Dominum, que não cala estas duas agora, contralto com ar e voz de senhora madura, de cara redonda a contracenar com a hirta (estúpida) com carinhas de frete quando não está a cantar, a repetir qual macaco as deixas da contralto, como se a imitasse mas em voz mais nova e límpida, de lábios engelhados a pensar; eu canto melhor que tu sua parva. O meu anjo, tão solene, tão pura e meiga assim quieta, o corpo agora sossegado mas não saciado, mesmo depois de cavalgar ohohohs e ahahahahs. 

Et Incarnatus est. A sombria melodia toma forma de um andante majestoso, como um príncipe que se passeia de arminho e rubro por entre os corredores desta nave, de ceptro e orbe nas mãos e coroa na cabeça com a bela do coro ao lado; a minha nobre rainha, voz de cristal puro, mãos de veludo delicadas como filigrana, frágeis como porcelana fina. 

Crucifixus, assim me sinto eu no meio desta multidão que, por ora já se deu conta da minha agitação e inquietude, chamam Pilatos para me julgar por assédio forjado em pensamento à linda soprano, de negro vestido, caracóis em equilíbrio nos ombros finos de porcelana e lábios de cereja.

Et resurrexit Assim seria eu, príncipe do teu reino, da tua paixão feito homem, nasceria de novo por entre as tuas coxas de alabastro e ascenderia aos céus em glória aclamado por Euterpe, Melpomene e Polímnia. Oh quão venturoso seria. E de novo voltaria para julgar todos aqueles que duvidaram desse amor por um segundo que fosse.

Et in Spiritum o baixo agora canta, nos seus graves de baixo barbudo com ar de corno mas com voz melíflua, as virtudes da trindade e da igreja universal, e eu para aqui em inquietudes de vestidos negros e brincos de obsidiana, ombros de porcelana e mãos de filigrana, a tremer e a suar enquanto umas bochechas vermelhas sopram oboés.

Confiteor que sou fraco e facilmente excitável, mas perante uma beleza feminina como esta, de voz de anjo e olhos de sombras sensuais como que a chamar-me para o seu regaço, qual Ligeia a enfeitiçar Odisseu, no entanto preferia atirar-me mil vezes aos rochedos de Capri que tapar os ouvidos e ainda menos os olhos e ignorar esta Afrodite. Confesso-me mas não me arrependo. Não me receitem liturgias nem rosários, o meu pecado, a existir, só tem como cura aquela soprano de olhos de obsidiana, lábios de porcelana e seios de cristal.

Et expecto ressurgir desta mortandade em que me encontro para a vinda de um mundo futuro ao lado da minha princesa, com corais a cantar atrás de nós em procissão e orquestras monumentais a tocar missas cantadas e modinhas brasileiras.

Sanctus. Só um santo mesmo para aguentar esta tormenta, este sonho, pesadelo, este suor. Queria sair daqui mas não consigo, estou colado ao assento, agora sem me conseguir mexer. Este carnaval de vozes, instrumentos, o órgão, o maestro nervosinho, as duas sopranos sentadas, o contra-tenor de voz de falsete e mesuras, o corno do baixo todos em redor de mim com ar de troça, de escárnio como se fossem todos um Dominus Deus Sabaoth.

Hosanna in Exclesis por tão grande perfeição, de corpo, de voz, de rosto. Concebida por anjos, lavrada por mãos santas em útero da mais fina renda, amamentada por Afrodite com o mais fresco orvalho matinal, sedutora velada, Erato instrutora dos amantes, ensina-me a ser desejado por ti.
Benedictus por ter o privilégio, mesmo que à distância, de te poder contemplar minha deusa, minha nereida das águas calmas, minha

Agnus Dei só tu com o teu poder me libertas desta condição de indigno de ti e da voz mesureira deste contra-tenor magrinho e choradeiro, minha ovelha, formosa na forma e na aparência. Sucumbo ao poder da tua beleza, magnética e irresistível.

Dona Nobis Pacem. Chove lá fora.

 
© Alexandre Rodrigues 2012

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