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sexta-feira, 21 de setembro de 2012

E Venham os Romenos!





Esta noite sonhei com romenos. Nunca na minha triste vida tinha sonhado com romenos. Já sonhei com mortos-vivos, que voava, que caía, que andava de moto com os olhos enevoados, enfim com muita coisa, mas com romenos, nunca (vejam bem, romenos, o rapaz endoidou!!)Aposto que não existe nenhum português a residir em Manchester, Reino Unido que tenha sonhado com romenos. Também não deve existir nenhum com a mesma  forte pancada que eu, aposto. 

Pois bem, no meu sonho havia uma partida de futebol entre um clube romeno ou a selecção romena, não me lembro e uma qualquer outra equipa, que não interessa nem é para aqui chamada, porque o sonho é meu e pronto. O mais caricato é que vinham autocarros e autocarros cheios de romenos com ar de tudo menos de adeptos de futebol (que têm um ar característico). Eram pessoas de meia-idade com ar de agricultores portugueses (pronto agora é que fundiu os fusíveis este), de boné à agricultor, casaco de cabedal preto à agricultor e calças de tecido à agricultor. 

O pior é que me vejo de repente, assim mesmo, de repente, num mercado nocturno cheio de romenos (os tais dos autocarros) a vender peixe e marisco em caixas de madeira no mercado que diziam pixiu e mariscu (no meu sonho aquilo era romeno para peixe e marisco, pronto. Não sei romeno, só sei que é uma língua latina). O que é certo é que de repente, outra vez, me vejo num autocarro vazio da Rodoviária Nacional (UTIC AEC) sentado por trás do condutor, a queixar-me que isto está cheio de romenos, que vieram para o jogo de bola, mas afinal se põem a vender pixiu e mariscu (o desplante desta gente!) no mercado. 

De repente (nos meus sonhos passa-se de um sitio para o outro assim mesmo, sem linearidade) estou de novo noutro mercado, acho que o de Bolton (tal é a loucura que vai nesta cabeça quando dorme) e vejo uma excursão de romenos dirigir-se a mim a perguntar-me como é que se ia para o jogo de futebol (pronto, mandem vir o colete-de forças que este só lá vai assim). Eu disse-lhes: no mesmo autocarro que me trouxe aqui! E eles: então é você que veio o caminho todo a falar mal de nós ao condutor do autocarro romeno que nos trouxe (então não era da Rodoviária Nacional??) . E pronto foi isto o meu sonho que foi interrompido pelo meu filho às três da manhã a chorar. 

A partir daí já não dormi mais; fiquei o resto da noite numa espécie de torpor a pensar em romenos, no fuzilamento do Ceausecu, no Palácio do Povo, em Dacias (que são bem baratinhos e vêm para o Reino Unido em Janeiro do ano que vem), nas duas ex-alunas romenas a quem dei aulas no ano passado, no Vlad Dracul (o empalador) e nas ciganas romenas que nos querem lavar os vidros do carro nos semáforos à entrada da Mancunian Way. 

Haja quem entenda isto. É caso de psiquiatria, não é?



©Alexandre Rodrigues 2012
 

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

A história improvável de Alfredo Fantasia, Joaquina Criativa e seu filho Deodato.






Alfredo Fantasia tinha nascido nos montes perto da fronteira. Fora criado como pastor de ovelhas e era esse o seu destino certo não fosse a vida e as suas voltas misteriosas lhe terem pregado uma partida, daquelas que nos obriga a repensar o nosso modo de viver, e o nosso futuro. Aos nove anos perdeu o pai pastor e a mãe queijeira para umas gripes fortíssimas para as quais não havia cura e nem mesmo as mezinhas tradicionais mais fortes foram capazes de afastar os suores frios, os delírios e por fim a segadora da morte que os colheu com poucos dias de diferença.
 
Foi o seu tio materno, Joaquim Cabaça, moleiro de profissão e a sua esposa Odete, padeira da aldeia que lhe ensinaram aquilo que haveria de ser o seu mester agora sim, para o resto da vida; padeiro. À altura da morte dos pais de Alfredo, já andava Joaquim a ensinar os segredos e as artes da moagem e os tipos de farinha ao seu filho mais velho Ernesto, que daí por alguns anos herdaria o moinho do pai quando este, sem ninguém o esperar, se penduraria a si mesmo pelo pescoço num ramo forte de carvalho num dia de Outono, quando as árvores mostram a copa dourada prestes a cair antes de se encerrarem para férias durante a invernia. Dizia pois que foi a sua tia que acabou por lhe ensinar os segredos das leveduras, da massa e da lenha, assim como os não menos importantes segredos das cozeduras e benzeduras que se dava naquele tempo ao pão antes de este entrar no forno com dois golpes perpendiculares numa réstia simbólica de cristianismo atravessado.


Alfredo e Ernesto eram como dois carneiros na época do cio, a rivalidade entre primos, especialmente quando o clarete das encostas solarengas começava a fazer efeito nas cabeças de cada um, era por demais violenta; um por ser filho varão, braço direito do pai, o outro por ser o perfilhado revoltado que perdera os pais demasiado novo, mas não queria ser de modo algum, um lobo submisso ao macho alfa da matilha. 


Foi pouco depois dos funerais de Joaquim, logo após os primeiros lutos, e com a bênção resignada da tia que Alfredo decidiu que era chegada a hora de partir. Ali não era o seu lugar, sabia-o decerto, e a contenda com o primo Ernesto só poderia agravar-se e já chegava de mortandade naquela família amaldiçoada. Levou então consigo uma mala com a pouca roupa que a pobreza lhe permitia possuir, um rolo com dinheiro escondido num bolso secreto cosido nas ceroulas, suficiente para apanhar o comboio até ao mar e pernoitar por uns dias, e a arte de padeiro dentro da cabeça. E um farnel de pão, queijo e vinho que a tia lhe preparara para esconder a fome e o desconforto das velhas carruagens de terceira classe.


Ao chegar à estação junto à vila de pescadores, e depois de percorrer as encostas de vinhas, as planícies de trigo e as praias de pescadores, Alfredo sentou-se em cima da mala, abriu a sacola de pano e comeu. Vamos pois, por agora deixar Alfredo sossegado para podermos contar a história de Joaquina Criativa.


Joaquina Criativa era filha de pescadores, nascera e fora criada na vila encaixada entre os penhascos mediterrânicos e o mar azul turquesa, fonte de vida e de morte para muitos, e não eram poucos naqueles tempos, que tiravam das águas o seu sustento à força de braços, lágrimas, grandes perigos e pouco mais. Tinha o rosto redondo, de bochechas rosadas, e era a alegria da família, por norma enlutada pois toda aquela gente não conhecia outra arte que não a da pesca. Já tinha então perdido um irmão, reclamado como sacrifico pelo oceano em troca de uma rede meio cheia de sardinhas e de cansaço, mas ainda assim era ela que consolava e animava a mãe dos seus carpidos sempre que o pai e o irmão mais novo pegavam nos remos e se lançavam às ondas meretrizes sem terem bem a certeza que iriam voltar inteiros e muito menos vivos com os frutos que o mar a contra-gosto os deixava acarrear. Joaquina, junto com a mãe vendia no mercado da cidade grande o peixe que a família descarregava em cestas por entre as redes esticadas na praia. Por volta das horas de almoço, depois de salgar o peixe que iria vender, Joaquina dirigia-se de canasta à cabeça até à estação, onde apanhava o comboio com destino à cidade grande. E é nessa direcção que agora segue, descalça e curtida por sol e salmoura.


Voltemos então a Alfredo Fantasia que já terminou o seu parco almoço e se prepara para ir arranjar alojamento naquela vila esquecida dos homens onde apenas os pescadores lutam pela sobrevivência.


Alfredo preparava-se para pegar na sua mala quando uma voz o abordou: peixe fresquinho vizinho? Alfredo levantou os olhos e à sua frente estava a mulher mais bonita que alguma vez vira. Não que tivesse visto muitas, mas esta era diferente das mulheres da aldeia de onde vinha. Tinha um brilho nos olhos e radiava uma alegria a que as mulheres das montanhas nunca o acostumaram. Mais por graça e por tentar a sorte Alfredo aceitou de bom grado o negócio proposto pela vendedeira, no fundo  mais para tentar agradar àquela mulher por quem o seu coração batia inquieto, do que pela fome que já não trazia. Menina. Perguntou ele. Sabe por graça me dizer onde posso encontrar uma pensão ou albergue para poder pernoitar uns dias? Sou padeiro e procuro alguém que me dê trabalho por estes lados. Joaquina olhou para ele, surpreendida pelos olhos distantes mas seguros de si e pelo porte altivo daquele homem que não pestanejava ao falar e transmitia-lhe uma profunda sensação de segurança, diferente daquela que os pescadores, eternos supersticiosos e submissos do mar, nunca lhe infundiram. 


Daqui até casarem e contra a vontade dos pais de Joaquina, que a viam antes casada com um pescador, foi um ano. Mais tarde, bem mais tarde Alfredo e Joaquina pouparam o suficiente para abrirem uma padaria para Alfredo, e mais tarde uma peixaria para Joaquina que sempre fora mulher independente e não queria viver apenas dos rendimentos do marido. 


Esta banal história que hoje conto, passou-se há muitos anos, em meados do século vinte e um, depois do colapso da então civilização ocidental, primeiro dos países que a constituíam, alastrando por final aos blocos que estes faziam parte e no final de uma guerra por recursos que não existiam,  e à época eram avidamente adquiridos por estes e outros países até então subdesenvolvidos e que ultrapassaram e acabaram com o domínio ocidental do mundo ao fim de mais de quinhentos anos, obrigando as suas gentes a voltarem aos hábitos e ofícios antigos dos séculos pré-industriais e que há época das últimas grandes guerras estavam em muitas regiões quase esquecidas. O ocidente depois disso voltou-se para si mesmo, envergonhado pelo que fez e pelo que perdeu, pelo que construiu e destruiu, fechou as fronteiras e vive isolado do resto do mundo, isto segundo me dizem os mercadores, um pouco mais desenvolvido que nós. O meu nome é Deodato Fantasia Criativa, hoje sou pintor e escritor, contra a vontade dos meus pais que me viam a tomar conta dos negócios da família que eles criam ver crescer, e aqui relato a história humilde da minha humilde família nesta terceira década do século vinte e dois aos sessenta e cinco anos de idade. O mundo nunca mais foi o mesmo.



©Alexandre Rodrigues 2012






domingo, 9 de setembro de 2012

Portugal: Brevemente Apenas Uma Ideia.

É atribuída ao pretor romano na Hispânia, Sérvio Sulpício Galba a famosa frase: “Há nos confins da Hispânia um povo muito estranho que não se governa nem se deixa governar”, referindo-se este às tribos celtas que habitavam a região da Lusitânia, hoje mais ou menos correspondente ao território de Portugal.


Portugal tem, mais ou menos ao longo dos seus quase novecentos anos como nação, sobrevivido aos grandes cataclismos naturais e humanos que se têm abatido sobre si. Esta crise é mais um desses acontecimentos que vai deixar marcas profundas no país, desde sempre ingovernável por parte das suas gentes; rebeldes, teimosas, desconfiadas, ignorantes e irremediavelmente egocêntricas, mas mansas e submissas em relação aos poderes que os governam. Mas menos-mal seria se quem governa esse estranho povo fosse de nobre carácter, honesto, trabalhador, altruísta e corajoso. Seria como ter uma elite ao estilo visigodo (estrangeira) a governar os súbditos (espécie de amalgama pós-romano-celta). Mas os governantes desse raro país são para bem ou para o mal, gentes como o resto da gente que é governada (ou finge que o é). Quando se junta um grupo assim onde o egocêntrico é palavra-chave dissimulada, é pois de esperar que as coisas não corram muito bem, e se vá sobrevivendo, uns fingindo que governam e os outros fingindo que são governados, e sempre resmungando. Esse sim é o segredo da sobrevivência desse bizarro país atlântico que provavelmente de um ponto de vista lógico e racional nunca deveria ter existido.

Portugal faz pois cada vez mais sentido como uma ideia. Uma ideia bonita de um povo mais ou menos místico (ou surpreendido pelo misticismo, ou ainda em alguns casos achando-se bafejado de povo escolhido pelo divino como o que teve origem lá para os lados da Palestina), que vive para lá das mesetas espanholas, num cantinho mais ou menos remoto da Europa, um povo misterioso e semi-primitivo que ainda cultiva tradições antiquíssimas entalado entre o passado e o futuro sem nunca perceber o presente. Infelizmente as ideias e a boa intenção nos dias que correm não alimentam bocas, não geram riqueza nem bem-estar e muito menos a paz social. Por isso esse país continua a sangrar gente capaz para a emigração.

Daí que até se perceber que o país não está só nesta crise que teima em permanecer, que quando se dividem recursos naturais por cinco em vez de dois, se fica com porções mais pequenas vai um passo. E que quando se é um povo (mal) remediado em tempos de vacas gordas, ao chegarem as vacas magras (que por acaso vieram para ficar, embora uns não o digam e os outros não o querem ouvir) se vai ficar mesmo muito mal. Ou melhor dizendo, vai-se chegar ao nível de vida real, não o ilusório dos luxos endividados. Já afirmei (aqui) que o Ocidente vai empobrecer irremediavelmente, provavelmente para os níveis do princípio do século XX na pior das hipóteses. Tendo em conta os poucos recursos naturais de Portugal este por sua vez irá regredir para os níveis de vida dos tempos do Estado Novo ou pior, níveis esses infelizmente mais realistas (e nesse tempo ainda havia um Império para nivelar a balança comercial). Isto se a Europa não voltar a estourar numa (mais uma de muitas) guerra fratricida da qual, desta vez, não poderemos escapar. Outro factor a considerar é o envelhecimento irremediável da população nacional e consequente declínio dos números de pagadores de impostos. Ora se temos menos gente a pagar impostos, os poucos que ficam terão ou de pagar mais impostos para manter o mesmo nível de serviços sociais ou estes terão de se drasticamente reduzidos ou mesmo eliminados, aumentando ainda mais a pobreza, a miséria e a insalubridade.

O Japão (país praticamente sem recursos naturais) quando se viu confrontado com um problema semelhante em duas alturas da sua história (a modernização do séc. XIX e a reconstrução do pós-guerra) recorreu da inteligência das suas gentes, da abnegação, sacrifício e imensa capacidade de trabalho e muito importante, disciplina para da primeira vez modernizar em menos de trinta anos o país medieval em que viviam e da segunda, levantar o país da ruína em menos de trinta anos por se ter entusiasmado demais com essa mesma modernização.

Não irei aqui perder tempo a descrever o que Portugal fez nos vinte anos da I Républica quando teve uma oportunidade única de se modernizar transversalmente, nem o que fez nos vinte e cinco anos de Comunidade Europeia quando a segunda oportunidade de modernização transversal foi dada de bandeja e a fundo perdido. Foram apenas os políticos que falharam? Lembro mais uma vez, temendo ser por demais repetitivo que esses políticos eram e são portugueses como os demais e não de uma espécie de elite visigótica.

Quando o primeiro-ministro de um país, esse mesmo dos confins da Hispânia, se vê obrigado a aumentar em mais de sessenta por cento a contribuição para a Segurança Social das gentes rebeldes, teimosas, desconfiadas, ignorantes e irremediavelmente egocêntricas, mas mansas e submissas em relação aos poderes que os governam, é porque se apercebeu de duas coisas: a primeira é que não há dinheiro (absolutamente nenhum) para manter o estado social tal qual o conhecemos, e assim arrecada o imposto do elo mais fraco dessa cadeia ingovernável. A segunda é porque tem medo, muito medo de quem tem o poder, essa gente rebelde, teimosa, desconfiada, ignorante e irremediavelmente egocêntrica, tal como ele, mas autoritária em relação aos poderes que governam.

Portugal, se não começar a usar de inteligência, altruísmo e abnegação irá a médio prazo tornar-se num país de velhinhos miseráveis e maltrapilhos governados por velhinhos maltrapilhos mas menos miseráveis financeiramente e deixará de existir para ser apenas uma ideia na cabeça dos seus descendentes espalhados pelo mundo fora.

Daí que ameaçar com datas (e se calhar horas) para manifestações, continuar a permitir que este regime exista tal como está, continuar a ser deferente a títulos e a nomes é uma prova de que essas gentes rebeldes, teimosas, desconfiadas, ignorantes e irremediavelmente egocêntricas, mas mansas e submissas em relação aos poderes que os governam continuam a dar razão a Sérvio Sulpício Galba, um tiranete que quando foi chamado a Roma para ser julgado pelo massacre cobarde dos Lusitanos que juraram fidelidade ao Império Romano, subornou os juízes e apresentou-se com a família perante o tribunal, como um homem recto e de família, apenas para ser ilibado do crime que cometeu.



© Alexandre Rodrigues 2012