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quinta-feira, 13 de setembro de 2012

A história improvável de Alfredo Fantasia, Joaquina Criativa e seu filho Deodato.






Alfredo Fantasia tinha nascido nos montes perto da fronteira. Fora criado como pastor de ovelhas e era esse o seu destino certo não fosse a vida e as suas voltas misteriosas lhe terem pregado uma partida, daquelas que nos obriga a repensar o nosso modo de viver, e o nosso futuro. Aos nove anos perdeu o pai pastor e a mãe queijeira para umas gripes fortíssimas para as quais não havia cura e nem mesmo as mezinhas tradicionais mais fortes foram capazes de afastar os suores frios, os delírios e por fim a segadora da morte que os colheu com poucos dias de diferença.
 
Foi o seu tio materno, Joaquim Cabaça, moleiro de profissão e a sua esposa Odete, padeira da aldeia que lhe ensinaram aquilo que haveria de ser o seu mester agora sim, para o resto da vida; padeiro. À altura da morte dos pais de Alfredo, já andava Joaquim a ensinar os segredos e as artes da moagem e os tipos de farinha ao seu filho mais velho Ernesto, que daí por alguns anos herdaria o moinho do pai quando este, sem ninguém o esperar, se penduraria a si mesmo pelo pescoço num ramo forte de carvalho num dia de Outono, quando as árvores mostram a copa dourada prestes a cair antes de se encerrarem para férias durante a invernia. Dizia pois que foi a sua tia que acabou por lhe ensinar os segredos das leveduras, da massa e da lenha, assim como os não menos importantes segredos das cozeduras e benzeduras que se dava naquele tempo ao pão antes de este entrar no forno com dois golpes perpendiculares numa réstia simbólica de cristianismo atravessado.


Alfredo e Ernesto eram como dois carneiros na época do cio, a rivalidade entre primos, especialmente quando o clarete das encostas solarengas começava a fazer efeito nas cabeças de cada um, era por demais violenta; um por ser filho varão, braço direito do pai, o outro por ser o perfilhado revoltado que perdera os pais demasiado novo, mas não queria ser de modo algum, um lobo submisso ao macho alfa da matilha. 


Foi pouco depois dos funerais de Joaquim, logo após os primeiros lutos, e com a bênção resignada da tia que Alfredo decidiu que era chegada a hora de partir. Ali não era o seu lugar, sabia-o decerto, e a contenda com o primo Ernesto só poderia agravar-se e já chegava de mortandade naquela família amaldiçoada. Levou então consigo uma mala com a pouca roupa que a pobreza lhe permitia possuir, um rolo com dinheiro escondido num bolso secreto cosido nas ceroulas, suficiente para apanhar o comboio até ao mar e pernoitar por uns dias, e a arte de padeiro dentro da cabeça. E um farnel de pão, queijo e vinho que a tia lhe preparara para esconder a fome e o desconforto das velhas carruagens de terceira classe.


Ao chegar à estação junto à vila de pescadores, e depois de percorrer as encostas de vinhas, as planícies de trigo e as praias de pescadores, Alfredo sentou-se em cima da mala, abriu a sacola de pano e comeu. Vamos pois, por agora deixar Alfredo sossegado para podermos contar a história de Joaquina Criativa.


Joaquina Criativa era filha de pescadores, nascera e fora criada na vila encaixada entre os penhascos mediterrânicos e o mar azul turquesa, fonte de vida e de morte para muitos, e não eram poucos naqueles tempos, que tiravam das águas o seu sustento à força de braços, lágrimas, grandes perigos e pouco mais. Tinha o rosto redondo, de bochechas rosadas, e era a alegria da família, por norma enlutada pois toda aquela gente não conhecia outra arte que não a da pesca. Já tinha então perdido um irmão, reclamado como sacrifico pelo oceano em troca de uma rede meio cheia de sardinhas e de cansaço, mas ainda assim era ela que consolava e animava a mãe dos seus carpidos sempre que o pai e o irmão mais novo pegavam nos remos e se lançavam às ondas meretrizes sem terem bem a certeza que iriam voltar inteiros e muito menos vivos com os frutos que o mar a contra-gosto os deixava acarrear. Joaquina, junto com a mãe vendia no mercado da cidade grande o peixe que a família descarregava em cestas por entre as redes esticadas na praia. Por volta das horas de almoço, depois de salgar o peixe que iria vender, Joaquina dirigia-se de canasta à cabeça até à estação, onde apanhava o comboio com destino à cidade grande. E é nessa direcção que agora segue, descalça e curtida por sol e salmoura.


Voltemos então a Alfredo Fantasia que já terminou o seu parco almoço e se prepara para ir arranjar alojamento naquela vila esquecida dos homens onde apenas os pescadores lutam pela sobrevivência.


Alfredo preparava-se para pegar na sua mala quando uma voz o abordou: peixe fresquinho vizinho? Alfredo levantou os olhos e à sua frente estava a mulher mais bonita que alguma vez vira. Não que tivesse visto muitas, mas esta era diferente das mulheres da aldeia de onde vinha. Tinha um brilho nos olhos e radiava uma alegria a que as mulheres das montanhas nunca o acostumaram. Mais por graça e por tentar a sorte Alfredo aceitou de bom grado o negócio proposto pela vendedeira, no fundo  mais para tentar agradar àquela mulher por quem o seu coração batia inquieto, do que pela fome que já não trazia. Menina. Perguntou ele. Sabe por graça me dizer onde posso encontrar uma pensão ou albergue para poder pernoitar uns dias? Sou padeiro e procuro alguém que me dê trabalho por estes lados. Joaquina olhou para ele, surpreendida pelos olhos distantes mas seguros de si e pelo porte altivo daquele homem que não pestanejava ao falar e transmitia-lhe uma profunda sensação de segurança, diferente daquela que os pescadores, eternos supersticiosos e submissos do mar, nunca lhe infundiram. 


Daqui até casarem e contra a vontade dos pais de Joaquina, que a viam antes casada com um pescador, foi um ano. Mais tarde, bem mais tarde Alfredo e Joaquina pouparam o suficiente para abrirem uma padaria para Alfredo, e mais tarde uma peixaria para Joaquina que sempre fora mulher independente e não queria viver apenas dos rendimentos do marido. 


Esta banal história que hoje conto, passou-se há muitos anos, em meados do século vinte e um, depois do colapso da então civilização ocidental, primeiro dos países que a constituíam, alastrando por final aos blocos que estes faziam parte e no final de uma guerra por recursos que não existiam,  e à época eram avidamente adquiridos por estes e outros países até então subdesenvolvidos e que ultrapassaram e acabaram com o domínio ocidental do mundo ao fim de mais de quinhentos anos, obrigando as suas gentes a voltarem aos hábitos e ofícios antigos dos séculos pré-industriais e que há época das últimas grandes guerras estavam em muitas regiões quase esquecidas. O ocidente depois disso voltou-se para si mesmo, envergonhado pelo que fez e pelo que perdeu, pelo que construiu e destruiu, fechou as fronteiras e vive isolado do resto do mundo, isto segundo me dizem os mercadores, um pouco mais desenvolvido que nós. O meu nome é Deodato Fantasia Criativa, hoje sou pintor e escritor, contra a vontade dos meus pais que me viam a tomar conta dos negócios da família que eles criam ver crescer, e aqui relato a história humilde da minha humilde família nesta terceira década do século vinte e dois aos sessenta e cinco anos de idade. O mundo nunca mais foi o mesmo.



©Alexandre Rodrigues 2012






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