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sábado, 29 de dezembro de 2012

Cara ou Coroa?



Já me questionei várias vezes porque vim aqui parar. Nem eu sei bem, mas uma das razões foi para fugir de tudo quanto me entristece no meu país. E se por vezes sinto falta da família e dos amigos, por outras sinto remorsos por não estar com eles nos momentos mais difíceis, como quando a minha centenária avó faleceu. Era a pessoa mais idosa da minha cidade e ao que parece ao funeral apareceram mais curiosos que amigos e familiares. Por aqui chove.


É uma das razões porque não volto tão cedo a Portugal. As pessoas. Podem ser do mais generoso que há e ao mesmo tempo serem uns pacóvios egoístas de primeira. Como aquele gerente de um banco que não atendeu um cliente por este estar supostamente mal vestido. Desde quando é que estar vestido para trabalhar, mesmo que seja um emprego “sujo”, é estar mal vestido?


Aqui somos invisíveis. Passo na rua e ninguém olha. Os britânicos acham que é rude olhar para estranhos. Digam lá isto aos marinhenses que olham fixamente para os estranhos de tal maneira que chega a ser desconfortável. Quando aqui alguém porventura me olha, e por vezes acontece na mesma rua olharem-me mais do que uma vez, pergunto à minha mulher se tenho alguma coisa na testa? A resposta é certeira; estás a ser paranóico. Como é que estou a ser paranóico se num país onde todos são invisíveis uns para os outros e na mesma rua me olham três vezes? 


Manchester. Rochdale Canal facing Oxford Road.
Manchester não é uma cidade bonita, mas gosto dela. Afinal “beauty is in the eye of the beholder” dizem por estes lados. Saio de casa e atravesso o Irwell pela ponte pedonal que desemboca no viaduto de Cornbrook, que o eléctrico percorre mesmo em frente à minha casa, e que é paralelo ao viaduto ferroviário. Existem muitos viadutos ferroviários por aqui. Alguns atravessam a cidade perturbadoramente perto das casas no centro da cidade, numa intimidade estranha de quem não se importa, mas finge que sim. Em Castlefield encontram-se todos os viadutos ferroviários de Manchester, de pilares grossos como embondeiros, e rebites do tamanho de rodas de camião. Relíquias vitorianas ainda em uso atestando a excelente qualidade da engenharia do século XIX. É em Castlefield que dois canais se encontram numa grande doca interior composta de edifícios de tijolo avermelhado, construída nos tempos em que os canais eram as artérias principais de transporte deste país, antes das locomotivas a vapor tomarem conta de tudo. O Bridgewater Canal, por um dos seus braços a partir de Trafford, e o Rochdale Canal que atravessa toda a cidade alimentado pelo rio Medlock. É pelas margens do Rochdale Canal que eu gosto de passear. Algo que excepcionalmente tenho feito, porque não foi construído para carrinhos-de-bebé, e desde que o meu filho nasceu, este tem sido um prazer raramente desfrutado. Gosto do ruído de cascatas das comportas de desnível reverberando pelos túneis iludindo-nos do ruído da rua, dos carros que passam. Os túneis mais não são que viadutos de ferro das estradas que transportam as alegrias e tristezas de todos os que por elas passam e passam por cima de mim: Deansgate, Oxford Road, Portland Street e Picadilly Gardens.O canal leva os sentimentos da cidade para outras paragens. Por outros canais, talvez outras cidades, para o mar. Não sei. 


Os ingleses são pouco originais na nomenclatura das ruas das suas cidades. Em todas elas existe uma Vitória ou Albert Square, Oxford Road ou Street, Princess, King, Portland, Picadilly que em Londres se chama Circus, e que não é mais que uma rotunda, e Gardens em Manchester que não mais é que um terreiro cuja única árvore de relevo é feita de metal com nomes gravados dos civis mortos na cidade durante os bombardeamentos da II Guerra Mundial. Mas é em Picadilly Gardens que Manchester acaba, afinal toda a gente vem aqui parar. Ou será que é onde começa? Eu, por mim lanço uma moeda ao ar. Caras, fico. Coroas, volto.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Margem de Erro.







Benjamim encontrava-se junto ao cais. Assim que soube noticias de Adelaide meses atrás, ficou excitadíssimo por ir rever aquela cara que há mais de dezoito anos não via. Quando Adelaide lhe dissera que iria voltar à cidade onde ambos nasceram e cresceram para rever pais e amigos naquele Natal, Benjamim voltou a lembrar-se do passado e de como os dois se tinham separado. Uma separação dolorosa para Benjamim, que se apaixonara por Adelaide, sua vizinha e amiga de longa data. Benjamim declarara os seus sentimentos, mas Adelaide respondera com um não que ficara marcado para sempre a ferro e fogo no coração deste. Sempre gostara de Adelaide apesar de esta lhe parecer por vezes demasiado “coquete” e superficial nas suas conversas. Benjamim sabia que debaixo daquelas roupas e sapatos de marca que Adelaide fazia discreta questão de usar, havia mais do que os seus amigos viam e por vezes escarneciam. Benjamim concordava com eles à superfície, afinal era assim que Adelaide se mostrava ao mundo. No intimo, sabia sem saber, que haveria mais dentro daquela miúda do que aquilo que esta deixava transparecer. Adelaide tinha as mesmas origens humildes de Benjamim, os pais desta mudaram-se da ex-colónia para aquela cidade, tornaram-se vizinhos dos pais de Benjamim e por lá assentaram. Adelaide e Benjamim cresceram quase juntos. Quando tinha onze anos, Adelaide apaixonara-se pelo ar confiante de Benjamim; mais inteligente para a idade que os outros rapazes, mas também pelos seus olhos brilhantes e cheios de energia. E por um sorriso que desarmava qualquer um. Mas, a vida tem destas coisas, e a pré-adolescência é apenas a porta de entrada para o turbilhão de sentimentos que se segue. Benjamim nessa altura gostava de Irina, a morena e sardenta filha do professor de matemática que vivia no mesmo bairro. Adelaide fez Benjamim saber dos seus sentimentos mas este mais fascinado com Irina, disse-lhe que não. Adelaide desapareceu por alguns anos da vista de Benjamim, evitando-o. Benjamim cedo se aborreceu de Irina.

Quando uns anos mais tarde, já Benjamim entrava pela adolescência dentro, voltou a encontrar Adelaide. Era Verão, durante as festas populares, à noite o rosto bronzeado de Adelaide reflectia as chamas das fogueiras de rua, mas o semblante estava diferente, mais mulher sem ainda bem o ser, os olhos cor de avelã mais luminosos, o cabelo loiro mais longo e ondulante, onde dantes era curto e liso. A partir desse dia Benjamim nunca mais foi o mesmo. O miúdo extrovertido tornou-se melancólico para grande tristeza dos pais. Fechava-se longas horas no quarto sem conseguir tirar a imagem de Adelaide da cabeça, sentindo um grande aperto no coração. O mesmo aperto que ainda hoje sentia ao fim destes anos todos. Adelaide tornara-se superficial, "coquete", ou pelo menos assim queria dar a entender, Benjamim sentia-se inferior. Nunca tinha abandonado as suas raízes nem pretendia fazê-lo. Claro que tinha as suas ambições e os seus sonhos, mas Adelaide parecia aspirar a uma vida bem mais afluente. Era como se em segredo fabricasse essa invisível mas indelével teia que passou a caracterizá-la da adolescência em diante. Benjamim sentia-se desconfortável por esse lado de Adelaide, mas ao mesmo tempo o seu rosto não lhe saía da cabeça. Quando por fim teve coragem para lhe dizer que a amava, sem esperança de uma resposta positiva, já Benjamim sabia de antemão que tinham ambos tão pouco em comum; ele tímido, ela distanciada, Adelaide respondeu-lhe que gostava dele simplesmente como amigo e que estava fora de questão namorarem.

Benjamim sentiu uma vertigem, embora ao mesmo tempo as dúvidas que tinha acerca de Adelaide, e o que ela sentia, ou não por este, dissiparam-se. E não conseguia deixar de considerar que esta tinha sido uma cilada em silêncio urdida por Adelaide para se vingar do seu desprezo por ela anos antes. Mal sabia ele que Adelaide por seu lado carregava consigo sentimentos de culpa tão grandes como o desgosto de Benjamim, por ter sido tão fria e distante para com este, e por pensar que se ele a queria teria de lutar por ela. No fundo ainda gostava de Benjamim, mas este por se sentir sem forças e cansado de amar e não ser correspondido, aceitou a derrota amargamente e decidiu esquecer Adelaide. Ou assim o pensou.

Façamos agora uma pequena pausa nesta história, apenas para reflectirmos naquilo a que os antigos gregos chamavam de caprichos dos deuses contra os mortais, especialmente no que toca às coisas do amor, ou forças universais que se unem para fazer divergir duas pessoas de tal modo que estas se desencontram constantemente e que mais não são que tristes coincidências da vida, fazendo com que muitos a considerem injusta e triste. Este é um desses irremediáveis casos que o destino não quis unir. Posto este curto parêntesis retomemos então a nossa história.

Depois deste episódio de desamores, algo completamente inesperado se passou fisicamente com Benjamim, resultando que este nunca mais cresceu. Crescer aqui é uma figura de estilo. O que se passou com Benjamim foi que este não envelheceu um só dia como o resto dos seus amigos, que com o passar dos anos foram ficando calvos, com algumas rugas e mesmo grisalhos. Benjamim por seu lado ficou preso no seu corpo e rosto de adolescente, salvo a sua mentalidade, que evoluiu normalmente muito para alívio de amigos e familiares. O outro fenómeno que nunca mais desapareceu foi o tal aperto no coração, como se duas mãos estivessem prestes a esmagá-lo quando menos esperasse. Uns dos efeitos secundários dessa estranha sensação eram os constantes pesadelos que tinha de noite, acordando suado e arrepiado com as visões terríveis que tinha. Benjamim continuou a viver na cidade que o vira nascer, tendo arranjado um emprego sem história nem distinção.

Adelaide por seu lado, também não ficou imune fisicamente depois desta desventura. No seu caso, um envelhecimento físico precoce tomou conta do seu corpo, e aos vinte anos já tinha rugas marcadas à volta dos olhos, aquilo a que o vulgo chama de “pés-de-galinha” e que era suposto aparecer muitos anos mais tarde. O outro fenómeno que nunca mais desapareceu foi um grande vazio no coração de Adelaide, como se este não existisse ou batesse incógnito algures num vácuo escuro. Esse vazio reflectia-se no olhar distante e apagado que caracterizou Adelaide a partir desse dia em diante. Desculpava-se com o estudo da medicina a que se tinha dedicado de corpo e alma na capital, e à especialização em cardiologia, disciplina ainda mais exigente, mais por necessidade de saber o que lhe tinha acontecido do que por verdadeira vocação. Um dos efeitos secundários que experimentava era o completo desaparecimento dos sonhos enquanto dormia. A única coisa que ficou foi a sua ambição de se tornar rica e esquecer os tempos difíceis da sua infância naquela cidade de gente pobre.

Voltemos ao cais do inicio da nossa história. Benjamim resolvera ir buscar Adelaide ao outro lado do rio que separava a sua cidade da capital onde esta vivia. A viagem de barco durava dois dias, não só porque a foz daquele rio era larguíssima, como as correntes eram extremamente fortes e as marés de uma amplitude tal que nas vazantes o rio tornava-se uma miríade de ribeiros no meio de um areal empapado em água, sendo que na enchente as vagas eram tão grande como em alto mar, e chegaram, em tempos idos, a tragar navios inteiros com tripulação e carga em alturas de tempestade e lua cheia. Os ferries que agora atravessavam aquele singular curso de água tinham um casco especial que lhes permitia assentar direitos no lodo sem se inclinarem ou afundar, e aí permaneciam como que encalhados durante a maré baixa. Era uma viagem de paciência, mas também servia, nas horas paradas da maré vazia, para assomar à amurada e reflectir sobre a distancia física e sentimental das duas cidades e o quão pouco tinham em comum, ou sobre as injustiças da vida, a natureza, e o piscar de olhos que é a duração de um ser humano, ao mesmo tempo que se ia cheirando a maresia e olhando as gaivotas sobrevoando a embarcação. Era nestes vagares que o adolescente de corpo Benjamim se encontrava, a sua cara era como a de um boneco de cera, sem expressão que desaparecera devido à peculiaridade da sua condição física. Benjamim via nas gaivotas a Adelaide que a partir de uma certa idade quis abrir asas e voar, e via no lodo do rio e nos intermináveis córregos aquilo em que a sua vida se tinha tornado; um lamaçal labiríntico de sentimentos contrários e sem saída. As marés quando subiam, eram como um enxaguo, lavavam por momentos esses sentimentos obliterando-os, mas, qual feitiço, voltam sempre para o atormentar quando a água desaparecia e o fundo do rio se mostrava tal qual era, um lodaçal pantanoso. Benjamim não conseguia deixar de se sentir assim quando pensava em Adelaide, na bela Adelaide que lhe escapara como a areia da praia se escapa por entre os dedos das mãos. Sentia-se incompleto e permanentemente triste por não ter sido capaz, ou não ter querido interpretar os sinais que a evidência lhe mostrara. Mas estava resolvido a não mostrar nada disso a Adelaide quando a encontrasse. Queria mostrar-se forte e fazer-lhe ver que a tinha esquecido. Afinal Adelaide agora era uma respeitada cardiologista, casada com o investigador que tinha estudado o peculiar caso de Benjamim, e tinha daquele uma filha. Fora por essa via e coincidência, durante uma consulta com o investigador que Benjamim veio a saber do paradeiro de Adelaide.

O encontro de Benjamim com Adelaide deu-se no cais do lado da capital. Se esperavam lágrimas ou longos abraços, desenganem-se aqueles mais dados ao melodramático. Quando se viram, trocaram cumprimentos de circunstancia, como se tivesse sido ontem que se tinham visto pela última vez, e não fosse os pouco convictos e circunstanciais “estás na mesma” e “não mudaste nada” seguido do “obrigado, não é verdade” e do “quem me dera”, ambos teriam preferido secretamente a opção melodramática, mas a distancia cronológica e física que os separava, a dignidade a manter naquele lugar público e a timidez de ambos não o permitia. Adelaide vinha num carro branco construído nos países do norte. O interior era totalmente branco forrado a pele, uma daquelas opções de personalização em massa que iludem os mais incautos, julgando estes que têm um modelo único. Vestia-se, não mais como a adolescente que Benjamim se lembrava, mas elegantemente, sempre de roupas na moda que lhe acentuavam a beleza natural. Eram também de cor branca. Benjamim cogitou cinicamente para si mesmo que esta deveria ser a cor da época. Mas o nosso Benjamim também não ia mal vestido. A roupa nova que fizera questão de comprar e usar naquele dia salientava a dignidade e o brilho nos olhos que ainda conservava junto com as suas feições de adolescente. Reparou então Benjamim que dentro do carro totalmente branco estava uma pequena criatura, uma menina inteiramente vestida de preto, de cabelos da mesma cor, tal como os do pai. Benjamim perguntou por ele. Adelaide respondeu-lhe que estava demasiado ocupado entre consultas e trabalho na universidade onde investigava as maleitas do coração físico, porque do outro, o sentimental, existem poucos especialistas, e não raras vezes são os próprios donos que têm de buscar por si mesmos a cura para as suas enfermidades.

Na viagem de volta para a cidade que os viu nascer, Adelaide retirou-se para o seu camarote e ambientou-se àquele lugar iria passar a próxima noite junto com a sua filha. Depois disso encontrou-se com Benjamim no bar onde beberam um copo. Ambos estavam com dificuldade em entabular uma conversa mais profunda e Benjamim perguntou o que tinha sido feito de Adelaide quando esta resolveu ir estudar para a capital. Mergulhei nos estudos, foi a sua resposta. Fiz a especialização em cardiologia, pelo meio namorei um rapaz, mas não deu certo e foi só no fim dos estudos que conheci o meu marido, primeiro como estagiária no consultório deste, depois como associada e no fim acabámos namorando e casámos. A Eugénia veio naturalmente depois. E tu? Perguntou Adelaide, o que é feito de ti? Eu fiquei-me pela nossa cidade, respondeu Benjamim. Arranjei um emprego no departamento de trânsito da cidade, nada de especial, introduzo os dados dos utentes que adquirem licenças e cartas de condução. Não me chateiam muito, pagam ao final do mês e dá para me manter. Decidi não me preocupar muito com o emprego, gosto de outras coisas, de admirar o mar, de estar sozinho no meio das multidões, de apreciar o que a natureza tem para oferecer, afinal só vivemos uma vez. E não, nunca mais amei ninguém. E com isto levantou-se e retirou-se.

No dia seguinte o ferry tinha assentado no lodo da maré baixa depois de uma noite agitada de muita ondulação, que naquele enorme barco não mais era que umas sacudidelas de vez em quando, mas que mareava os menos habituados ao jogos da ondulação. Benjamim teve uma noite de pesadelos, como já era seu hábito, apenas mais intensos, e o aperto no coração quando acordou, banhado em suor, era tal que sentia o peito a explodir. Adelaide por seu turno dormiu embalada pela forte ondulação depois de adormecer Eugénia. Adelaide e Benjamim voltaram a encontrar-se. Desta vez estavam sozinhos, a menina tinha sido deixada aos cuidados da creche existente no barco e que providenciava divertimentos de vária espécie aos infantes. Depois de mais conversa de circunstância sobre as famílias de uns e outros, exasperava então Benjamim, por ser uma pessoa directa e sem rodeios e a conversa andava demasiado às voltas para o seu gosto. Tomou então a coragem de um trago, como se inalasse nos seus pulmões todo o ar que pairava por cima daquele grandioso rio, e confessou a Adelaide que há já algum tempo precisava saber realmente o que se passou depois daquele fatídico dia em que as suas vidas tomaram rumos divergentes. Adelaide fingiu não perceber e respondeu a Benjamim que já lhe tinha explicado. Benjamim insistiu. Não era na sua vida de estudante e de médica que estava interessado, mas sim sobre o que se passou no seu coração quando lhe declarou o seu extenso amor por ela. Benjamim explicou-lhe então que desde há algum tempo se apercebera de uma certa inquietude dentro de si, como se um fantasma do passado tivesse voltado e pairando constantemente, se tornara num dos seus constantes pesadelos. Tal como os fantasmas das histórias, almas penadas em busca de descanso final, Benjamim sentia que necessitava dessa explicação de modo a apaziguar o seu apertado coração para que a sua vida pudesse continuar, onde até agora se mantivera suspensa.

Adelaide então, a custo começou por confessar que anos antes de Benjamim declarar o seu amor por ela, tinha tido um fraquinho por ele e que se sentira à época um pouco insegura por ser um rapaz tão extrovertido e por saber também que Irina gostava  dele. Acrescentou Adelaide que na altura se emocionara por causa disso, mas que, muito mais tarde mesmo, vira a situação como algo sem importância e passageiro, coisas de crianças. Depois, sentiu uma profunda vergonha, por ter sido rejeitada por Benjamim, e porque sabia que no bairro as pessoas mais velhas eram sarcásticas em relação a estas coisas e faziam pouco das crianças. Benjamim concordou, dizendo que ele passou pelo mesmo quando lá em casa se puxou pelo assunto de Irina. Adelaide então, olhando para a margem do rio que contornava a capital disse: Foi nessa altura que tomei a decisão de querer sair da nossa cidade e deixei de me rever nas pessoas do nosso bairro. Queria aspirar a algo melhor, ter uma vida mais decente, menos restringida financeiramente. Quando nos reencontrámos, naquela noite de Verão, eras mais um, tal qual os outros do nosso bairro de quem eu queria fugir. A tua declaração não me apanhou desprevenida. Eu sabia que tu gostavas de mim, o bairro é pequeno, sabe-se tudo. E de certo modo, a minha imaturidade de adolescente queria-se vingar de ti. Queria que tu lutasses por mim, para me mereceres. Sabes Benjamim, nós mulheres gostamos de jogar ao gato e ao rato com os homens; não nos queremos entregar demasiado facilmente por um lado, por outro a nossa insegurança nata não quer ter dúvidas quando alguém gosta de nós. E mais ainda no teu caso, que já tinhas gostado de alguém antes… daí o meu não. Adelaide fez uma pausa. Tentava reprimir a emoção que tinha tomado conta de si, e esforçava-se por não vacilar e começar a chorar. Vocês homens pensam que nos têm na mão quando enfim somos nós que vos comandamos, e se porventura nos deixamos cair nos vossos braços é porque queremos. Afinal estava certa. Não gostavas de mim. Viraste a cara à luta e eu continuei o meu caminho. Teria sido a minha última oportunidade de voltar atrás com a minha decisão de querer sair da cidade. Por isso desapareci assim que pude e nunca mais lá voltei. Até hoje.

Assim que a maré começou a subir e o barco se começava a sacudir do lodo um vento forte vindo do norte se levantou. Benjamim agradeceu aquela agitação gelada que lhe esfriava as ideias e ainda mais a raiva e evitava que as lágrimas lhe saíssem dos olhos. Deixou que as suas narinas inspirassem aquele ar frio e salgado, como uma droga que lhe subisse rapidamente à cabeça e com coragem trémula começou por despejar o que guardara dentro de si durante aqueles anos todos. Era verdade que tinha gostado de Irina, durante um tempo, mas tinha onze anos e Adelaide ainda era para ele a vizinha do lado, quase como se fosse sua irmã. E mais tarde quando soube que Adelaide gostava dele sentiu-se lisonjeado mas sentira que esta tinha ficado magoada e preferiu não tocar mais no assunto dentro da sua mente, até porque nessas idades existem muitas coisas com que nos distrairmos, e Benjamim não era diferente dos outros meninos quanto a esse facto. E também por lá em casa saber-se que duas meninas do bairro andavam apaixonadas por ele levou a uma certa chacota por parte dos seus irmãos mais velhos e uns risos meio paternalistas por parte dos pais. Foi a partir daí que Benjamim se tornou mais reservado em casa, e encontrava nos amigos mais chegados os seus confidentes. Sempre me identifiquei com as pessoas do bairro e especialmente os nossos amigos de infância, confessou Benjamim a Adelaide. Mas naquela noite de Verão, quando te voltei a ver, algo emergiu em mim, não sei explicar, vi-te com olhos diferentes, talvez por nos termos distanciado um do outro, e estavas mais bonita. As noites quentes daquele Verão também ajudaram aos sentimentos que passei a nutrir por ti. E no entanto sempre te mostraste distanciada… ou assim me pareceu. E isso magoou-me. Muito. O coração de Benjamim nesta altura quase que lhe saía pelo peito, a adrenalina estava ao rubro, e o facto de estar embriagado por esta fez com que continuasse, não antes sem respirar novamente aquele ar frio. Eu soube por terceiros que tu não estavas interessada em mim, ou que tinha sido isso que lhes disseste, mas ainda assim queria saber directamente por ti se assim era. Só assim, pensei eu, te conseguiria esquecer. Quando me disseste que não, então percebi que realmente não valia a pena perder nem o meu tempo nem o teu, e porque já estava cansado, desisti. E tentei esquecer-te…

Façamos aqui mais uma pausa nesta história de desencontros e desamores, para reflectir um pouco sobre a natureza humana e quão diferentes são os homens das mulheres, e como ambos reagem de modo desigual nas mesmas situações. Será caso para dizer, que o amor nem sempre bate à porta certa e quando bate ninguém atende. Se fossemos de outro planeta e nos contassem esta história não incomum, pensaríamos que estes estranhos seres humanos, quando finalmente se juntam para partilhar a sua vida com alguém não é por amor, mas porque decerto o amor nada quis com eles, acabando por ir bater a outras portas, por caridade ou por medo de esgotar os seus dias sozinhos. Retomemos então o fio a esta meada.

Depois desta conversa Adelaide e Benjamim não se falaram mais, antes recolheram aos seus respectivos camarotes para chorar, de tristeza, de raiva e de frustração, amaldiçoando ambos a vida, os céus e tudo quanto existe debaixo destes. No entanto ambos sentiam um grande alívio, como se lhes tivessem tirado o peso do mundo de cima dos ombros. Benjamim, porque dissera tudo ou quase tudo o que tivera guardado no seu coração esses anos todos, Adelaide porque finalmente percebera que tudo o que ficou por dizer por parte de ambos tinha sido dito, explicado e posto em pratos limpos. Benjamim sentia o seu coração mais leve, sem o sufoco a que se tinha habituado, Adelaide sentia que o seu coração afinal existia e ocupava um lugar no peito.

Quando finalmente a margem da cidade onde os nossos personagens nasceram se começava a vislumbrar no horizonte e estes se preparavam para voltar ao bairro onde cresceram algo dentro de ambos se começava a metamorfosear. Benjamim começara lentamente a envelhecer e Adelaide principiara a perder as muitas rugas que a caracterizavam, em excesso para a sua idade. No final da sua visita aos pais, quando Adelaide se preparava para regressar à capital, e acabava de arrumar as suas malas e a filha no carro branco, Benjamim veio despedir-se. Obrigado por me teres dado a oportunidade de me explicar. Eu é que agradeço, retorquiu Adelaide. Ainda bem que esclarecemos tudo. Ambos notaram que o outro estava diferente, Benjamim com algumas rugas e alguns cabelos brancos nos lados da cabeça, Adelaide rejuvenescera quase vinte anos e tinha agora um olhar mais luminoso, menos cansado e mais fresco. Adelaide partiu triste por ter perdido Benjamim para a vida e por não ter usufruído desta como deveria, mas aliviada por ter o seu coração de volta e no seu lugar próprio. Benjamim ficou alegre por agora poder continuar a sua vida, onde esta parou e foi percorrer o mundo, pois até aí só conhecia a sua cidade e pouco mais.

E para que volte a haver equilíbrio no universo desta história, porque é justo e saudável,   Benjamim acabou os seus dias ao lado da viúva Adelaide, como vizinho desta numa cidade qualquer longe de tudo, contando-lhe as fabulosas histórias das suas viagens em belos almoços regados com muito vinho.

 

© Alexandre Rodrigues 2012

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Musa

Gustave Moreau - Hésiode et la Muse - 1891



Quando me afeiçoei de ti,
Tardio fui em me insinuar.
Ao invés, meu coração cambiaste
Em pedra, qual  górgona Medusa.
Transformei -te então a ti
Para sempre na minha musa.

Que me importa se me evitas,
Ignoras ou desprezas.
Tu e só tu me inspiras
Desde a hora que te vi,
Mesmo que não queiras
Estas linhas são para ti.

Na solidão és como um fantasma
Que no cheio do nocturno luar
Me atormenta a insone alma,
Sempre foste evasiva e tão distante.
Falo por demais assim,
Desculpa se pareço arrogante.

Porque apenas sei pintar
De palavras este papel,
Todo o pintor tem a sua musa
Magritte e Georgette, Dali e Gala.
Tenho-te como flor na lapela,
Na pena guardo uma bala.

Se isso te incomoda,
Decerto não me podes culpar,
Mas esquecer-te? Ah não,
Só quando me extinguir.
Teu rosto do meu pensamento
Em vão quis para sempre destruir.

Atormentas-me os dias
Com ardores de dúvidas,
Enches-me o céu de poesia,
És das minhas noites o luar,
À loucura cheguei, mas acredita
A custo consegui me habituar.

Porque de longe se vê mais claro,
E eu vejo que no meio deste desatino,
Perdido à deriva me encontro,
Neste impossível pranto de recusa,
Tu foste, és e serás,
Para sempre a minha única musa. 



©Alexandre Rodrigues 2012