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quarta-feira, 24 de abril de 2013

Retrospectiva - Crónica de Emigração




       


 Navego à vista neste limbo inevitável em que acorda todo o emigrante um dia, quando se apercebe dos anos a passar e está, há talvez demasiado tempo, fora do país que o viu nascer e crescer. A firme consciencialização de não ter uma pátria, de não se ser de lado nenhum. Já não sou o mesmo que partiu, que disse adeus à família, que se despediu dos amigos. Essa personagem é hoje uma velha memória. O país que me acolhe vai lentamente moldando a minha consciência, e no entanto sou suficientemente estranho nele e dele para manter uma certa distância, penso que lúcida, sobre esta sociedade em que me insiro, a qual não consigo, eu próprio, acolher totalmente. Disse-me um colega de trabalho,  que já estou a ficar demasiado britânico porque não me queixei da bica queimada e fria que me serviram num dos cafés do aeroporto. Estou a ficar demasiado estoico, demasiado diplomata, demasiado calado, demasiado... britânico. No entanto bebo uma bica. Como o faria se estivesse em Portugal, depois do almoço. Uma bica. Esse pedaço imprescindível e imorredouro de todo o português que se preza. E por dentro sinto que o português em mim morre a cada dia que passa. cada vez menos português, cada vez menos ruidoso, cada vez menos refilão, cada vez menos deprimido por causa da situação económica. De cada vez que vou a Portugal, sinto-me como um turista, um visitante (sou um visitante) que se sente cada vez mais distante do passado, que vê inevitavelmente a vida dos seus familiares e amigos continuar sem ele. Sou como um morto. Quando alguém morre, sente-se saudade e tristeza, mas a vida continua, prova disso é que passados estes milhares de anos de civilização e milhares de milhões de mortos, a vida continuou, mesmo quando já nada resta desses mortos, nem o pó. Sinto-me como uma espécie de morto, que de vez em quando se levanta do seu túmulo frio e visita os familiares e amigos, em sonhos ou em visões. E quando acordam, a vida deles continua e dizem uns para os outros: sabes, esta noite sonhei com fulano. Veio-me visitar. E pronto, fica-se cheio de saudades, mas mais nada. Depois a vida encarrega-se de os distrair e o morto lá volta para o seu túmulo, lá para esse país onde vive, essa espécie de paraíso ou inferno, conforme os olhos de cada um. Para mim, é um limbo. Estou na fase do limbo. Nunca foi verdadeiramente um inferno, na minha perspetiva, também não é o paraíso que às vezes muitos emigrantes proclamam quando voltam a Portugal e se gabam das excelentes condições. E é neste limbo de distanciamento em que vivo, como se pairasse por cima de uma e de outra sociedade, que vejo com clareza ambas, o quão diferentes são e o quão parecidas também. Ou talvez seja eu que já nem as distinga. E no entanto sinto falta das pessoas que deixei para trás, imagino-as de uma determinadas maneira, talvez idealizada, são as saudades, essa espécie de estupefaciente que nos turva a realidade, que a faz mais bonita do que ela verdadeiramente é. Porque quando voltamos e estamos com os amigos e familiares, eles não são nada daquilo que as saudades nos impingiram, que nós impingimos a nós próprios. Não são a imagem ideal ou idealizada. São eles, mais velhos, mais preocupados, os filhos mais crescidos, a viver no mundo sem nós, e nós saímos do nosso outro-mundo, do túmulo, para estar com eles talvez uma ou duas horas e depois já queremos é voltar para o país de acolhimento, sete palmos debaixo de terra, ou sete mil léguas de distância, tanto faz. Aquilo diz-nos pouco, nós já lhes dizemos pouco, e estamos para ali, uma ou duas horas a olhar uns para os outros sem saber o que dizer. Acaba-se por fazer conversa de circunstância, porque as dores da Idalina, e o Tomé desempregado não nos dizem nada, assim como o repasse que tenho na janela do meu apartamento, ou o preço exorbitante que pago pela creche do meu filho não lhes diz nada. Concorda-se que a vida está difícil. E depois despedimo-nos uns dos outros e dizemos que temos pena de não poder ficar mais tempo. E eles já mortinhos que eu me vá embora e eu mortinho por me ir embora, de volta para o túmulo.


Os meus irmãos há pouco tempo fizeram quarenta e oito anos. Foi nesse dia que eu me apercebi de como o tempo passou, de há quanto tempo eu morri. De há quanto tempo estou fora, longe de tudo. Eu que me lembro deles com vinte, vinte e cinco anos. Eu que estou com trinta e sete anos e meio. Quando eles tinham vinte cinco eu era um adolescente. E isso já foi há mais de vinte anos. Bolas, quase meio século. Não consigo imaginar aqueles dois com meio século de vida. Terão sempre vinte e cinco anos. Só quando saio do túmulo e os visito em sonhos é que me apercebo o quão envelheceram, O meu irmão com os cabelos a ficarem mais grisalhos, a minha irmã a usar mais maquilhagem para disfarçar as rugas. E não, não têm quase cinquenta anos, têm vinte e cinco. E depois olho-me ao espelho e não me reconheço. Quem és tu? Para onde foi o teu cabelo, que rugas são essas a nascer na testa e debaixo dos olhos? Tinhas quinze anos da última vez que me lembro. Andavas apaixonado por uma miúda que não queria saber de ti. Tinhas amigos da tua idade com quem saías à noite. Onde estão? Que fazes aqui na minha casa? E depois a memória aviva-se por instantes, como aos velhinhos senis, que por momentos se lembram dos nomes do filhos. Sou eu, do outro lado do espelho. Com trinta e sete anos e meio. A miúda de quem eu gostava, perdi-lhe o rasto durante dezassete anos. Estava grávida do namorado quando a reencontrei numa dessas redes sociais há uns poucos anos atrás. Os amigos com quem saía há noite casaram-se, separaram-se, tiveram filhos, envelheceram. E tudo isto me parece irreal. À distância não me parece que seja verdade. Só quando o morto sai do seu túmulo frio  e por momentos assombra a vida dos amigos, dos familiares, da miúda de quem gostou, é que se apercebe que também ele envelheceu. Que os pais estão velhinhos, que são da idade dos seus avós quando ele era criança e brincava com um carrinho a pedais na rampa do quintal da casa, empurrado pelos dois irmãos adolescentes, que para ele terão para sempre vinte e cinco anos. 




©Alexandre Rodrigues 2013

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Os Sacanas.




















Andam por aí uns sacanas a gozar há muito connosco.
Há vinte e tal anos a chupar-nos a todos, desde a pele até ao osso.
Já haviam em tempos chupado, o tutano aos nossos pais tios e avós,
E agora vêm-nos exigir, da merda que fizeram; desatem vocês os nós!

Alguns desses sacanas, cobardes  para longe fugiram;
Uns para Paris, outros para as areias brancas do Sal.
Outros ainda para lá da foz do Zaire,
Congeminar, os malfeitores, como acabar de vez com Portugal.

Aguentem! Dizem os sanhudos que ficam, ainda a gozar,
Pagando-nos em metades de secas migalhas,
Dos restos do banquete que souberam devorar.

Fizeram a fortuna sem custos, preguiçosos, nem mesmo a trabalhar.
Os despojos, sempre pela falida Senhora garantido,
Mesmo quando nada mais havia para roubar,.
Deixaram as gentes na lama, a miséria, ui, sempre a alastrar.

Mas deixem que vos diga uma coisa;
Não há nada mais perigoso que o homem que nada tem a perder,
Ele troca feliz as migalhas pelo fim dos sacanas,
E não tem medo de morrer!

Por isso não se pasmem, se por sorte ou por desdita,
Quando a sentinela adormecer;
Nessa fria manhã de Inverno, oh sina maldita!
O homem que nada tem a perder,
A uma alva parede encostar

Esses sacanas que nos chupam,
Para lhes fazer o negro sangue jorrar!



©Alexandre Rodrigues 2013

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Poemas Vagabundos E Outros Contos

O Homem Só a convite da Krrastzepy Verlag decidiu publicar uma pequena compilação de poemas, contos e crónicas.
Serão cerca de 90 páginas e 80 exemplares. Informações e encomendas aqui ou aqui.


quinta-feira, 4 de abril de 2013

Por Estes Dias Cinzentos





E naqueles dias o poeta teve uma visão:


E viu que o mundo se encontrava coberto de um pó espesso e cinzento,que se entranha na roupa, na pele, nos pulmões. Acumula-se, deposita-se, camada após camada, finamente, quase indelével nos corredores, nos móveis, nas prateleiras, nos livros, nas conversas.No bebé que chora sozinho, no velho que morre devagarinho. 


E viu as pessoas que se cruzam consigo na rua, cobertas deste pó, tossindo sem forças, em vão sacudindo a espessa cinza que se acumula, que lhes cai em cima, lhe cai em cima, lhes pesa na vida, lhe pesa no coração.
E viu que o pó subia, não das chaminés das fábricas, em golfadas espessas, como fumo de um incêndio incontrolável, mas dos televisores e dos rádios, dos jornais abertos, das assembleias  de acionistas, das portas dos bancos, dos parlamentos, das sedes de governo, dos ministérios, dos mercados de valores, dos mercados de futuros, das cidades financeiras. Como se o futuro fosse ainda mais pó, ainda mais cinzento, ainda mais escuro, ainda.


E viu também gente desumanizada por esse pó, silenciosos porque o mesmo não lhe permitia articular palavra: era proibido pelo pó. Estavam limitados aos movimentos que os números ditam, que criam mais números, que fazem das pessoas números, virgulas, percentuais, parêntesis de uma poeira de disparates virtuais; recessões, austeridades, regressões, confusões, gritaria, escandaleira, ruído, levantando ainda mais pó, enchendo os olhos que já não choram, porque para chorar um valor pecuniário de pó foi inventado para ser atirado aos olhos por escravos desse pó cinzento, espesso, nojento, brutalizante, estupidificante, espesso, humilhante.


E viu depois que o pó assentava nas escolas, nas universidades, nos hospitais em monturos abjetos, de lama criada pela chuva miudinha contínua, que adormece a vontade, tira o sono e envelhece os rostos dos jovens. A chuva debaixo de um céu cinzento de pó era cobrada em absurdas portagens celestiais, por estudantes empoeirados que serviam de moeda de troca a gestores poeirentos e gananciosos, e trabalhavam vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas para pagar com pó os estudos sobre nada que lhes eram administrados em colheres de sopa por professores cheios de pó e cheios de si mesmo, enlouquecidos por causa desse mesmo pó. E vi também que os doentes dos hospitais, cada vez mais doentes por causa do pó, pagavam com mais pó para lhes colocarem mais pó em cima que lhes era depois cobrado por médicos cobertos de pó despejado por gestores titereiros sedentos de pó. Aos que se recusavam, era-lhes injetado pó por via intra-venosa até se transformarem em pó que depois era cobrado às enlutadas famílias cobertas de cinza, despejada de sacos por agentes funerários feitos da mesma lama dos monturos.


E o poeta tomava banho todos os dias, na vã esperança de se livrar dessa sordidez. Mas da torneira só saía pó, negro como petróleo, e em vão se tentou livrar dele. O  pó voltava, todos os dias, todas as horas, todos os segundos, e de tal modo que já nem via mais nada senão pó, ouvia pó, comia pó, sentia pó, cobravam-lhe  pó para existir, para estar, para pensar. E viu o poeta que aquilo era mau. 

E não conseguiu fazer nada.




©Alexandre Rodrigues 2013

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Serenata


Fernand Allard L’Olivier; Serenade (1926)






Nunca vi o Sol até de ti sentir o calor,
Nunca dei pelas flores até  pressentir o teu ardor.
Nunca conheci a paixão até me teres sussurrado,
Nunca disse que te amava, até me teres amaldiçoado.

Nunca senti ternura até que me acariciaste,
Nunca tive frio até que de mim fizeste um traste.
Nunca me doeu o coração, mas fiquei desiludido,
Nunca me quiseste para ti e de ti fui esquecido.

Nunca percebi a Primavera até ter visto o teu brilho,
Nunca usei uma arma, até premires o gatilho.
Nunca olhei pelo espelho, até te deixar para trás,
Nunca te fiz suprema guerra, nunca mais senti a paz.


©Alexandre Rodrigues 2013