Tenho a certeza de que quando morrer
será do coração. Se não for por falha fatal do músculo bombeador de sangue e
oxigénio, será por certo do outro coração, o figurado, o que não se vê, mas
sente-se, aquele que verdadeiramente nos mata devagarinho, a começar logo na
infância, seja a mãe que ralha com o filho, ou a perda aflitiva de ambos os
pais por morte, abandono ou outras razões. Mais tarde na adolescência, quando
os primeiros amores entram em erupção e a lava das primeiras paixões escorre,
mas para dentro, queimando a alma e deixando nada mais que negra desolação. E
depois ao longo da vida de adulto, as dúvidas, incertezas e arrependimentos que
nos fazem morrer lenta ou rapidamente, conforme a circunstância e circunspeção
de cada um. Este coração, ao contrário do outro, bombeia sentimentos que fluem
da cabeça, percorrem todos os órgãos, músculos, veias, tendões, cartilagens e
fazem por vezes ranger os ossos com dores e desespero, tão fortes que deixam
cicatrizes bem fundas, por vezes incuráveis, e tornam, depois dos estragos
provocados pelos vendavais, tornados, erupções, tremores de terra e toda a
sorte de analogias que não caberiam aqui mais os detritos, restos de pesadelo,
escuma e tudo o que sobra dessas misteriosas manifestações secundárias, à
cabeça de onde partiram, provocando os mais estranhos comportamentos, gerando
sussurros, ódios, choro, revolta, abandono e por vezes a morte.
Infelizmente não há médico para
curar os defeitos que estoutro coração carrega consigo. E não há ciência que os
cure, nem penso, nem compressa. Há, para alguns, temporários analgésicos das
mais diversas formas e feitios, desde as
artes, a pintura, a escultura, os escapismos nas suas mais variadas e coloridas
formas, a adrenalina, a cocaína, a cafeína ou o velho amigo alcool, há até quem
se dedique à escrita, os tolos, em maiores ou menores quantidades, outros ainda
procuram a cura na religião, escondendo ódios, rancores e desgostos, numa
espécie de véu gorduroso que disfarça as maleitas com piedade ou até uma certa
austeridade. Mas estes não passam de meros paliativos. Este é um coração que
inevitavelmente adoecerá, ninguém passa incólume, durante a caminhada que é a
vida, ao seu tenebroso bombear, ao inevitável embate que um dia, mais cedo ou
mais tarde, nos rasgará a inocência e nos atirará ao inevitável abismo.
Por estas e outras razões tenho a
certeza de que quando morrer será do coração.
©Alexandre Alves-Rodrigues 2013