Número total de visualizações de páginas

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Os Viajantes Habituais.





A manhã estava fria e um nevoeiro gelado percorria as ruas da cidade persuadindo mãos enluvadas a aconchegar cachecóis e casacos para junto dos corpos. Christopher desceu as escadas que engoliam os passageiros do metropolitano para dentro das suas entranhas escuras e sujas. Com um gesto automático retirou do bolso interior do casaco o passe mensal e passou-o pelo sensor de leitura que imediatamente abriu as portadas do torniquete num movimento brusco e rápido, tornando a fecha-las atrás de si imediatamente, esperando ávidas e intransigentes por mais um passageiro. Seguiu então até à plataforma da estação esperando pela próxima composição. Olhou em redor, nem por curiosidade, nem por medo, apenas por reflexo condicionado, para fazer uma ideia muito geral de quantas pessoas estavam naquele momento à espera, e fazer um cálculo mental se caberia no comboio que o levaria até ao emprego, ou teria de esperar pelo seguinte. 

Foi quando reparou naquela mulher. Estava a uns cinco passos de distancia, do seu lado esquerdo, em frente a um anuncio de carteiras de pele de marca. Trazia uma saia travada, meias pretas e um casaco de corte clássico, tal como seria de esperar das muitas mulheres que trabalham nos diferentes escritórios espalhados pela cidade. Cinzenta e anónima. No entanto algo sobressaía nela que o fez olhar segunda vez. Seriam talvez os lábios, pintados de um vermelho vivo, ou talvez os sapatos da mesma cor, únicos fatores de relevo em toda aquela monotonia. A mulher também olhou para ele e sorriu. Nunca lhe tinham sorrido a caminho do trabalho. Aliás, não será arriscado afirmar que ninguém sorri de manhã a caminho dos empregos cinzentos e monótonos em qualquer parte do mundo. Christopher não fugia à regra, até porque também ia vestido com o previsível fato, uma gravata e um sobretudo, nada que o fizesse sobressair da norma. No entanto para a mulher, algo naquele rosto masculino,, no meio de tantos outros rostos, fê-la olhar uma segunda vez.

Quando o comboio chegou, a habitual impaciência dos que esperam os que saem para poder entrar sem grande esperança de encontrar um lugar sentado, empurrou Christopher para dentro da carruagem, perdendo este a mulher de vista. “Paciência” - pensou ele como que num reflexo automático – “Era bonita”. E distraidamente como sempre fazia, tentou olhar pela janela negra, por cima de ombros e cabeças, apenas para não olhar fixamente nenhum dos outros passageiros que àquela hora viajavam naquele metropolitano barulhento e abafado, que inebriava os pensamentos com uma orgia de cheiros diferentes, a perfumes, suores, tabacos e toda a sorte de vapores misturados no chão por anos e anos de uso, limpos com vassouras mal-cheirosas e águas tão usadas e negras que só adicionavam imundice àquele chão ao invés de o limpar. 

Sentiu então tocarem-lhe no ombro. Era a mulher da plataforma. Christopher sorriu de volta o sorriso que não tinha tido oportunidade de retribuir enquanto ambos esperavam pelo comboio. Desviou os olhos timidamente, esperando que a mulher tivesse desviado os seus. Afinal, a regra tácita nos transportes públicos dita que ninguém olha duas vezes para a mesma pessoa. A mulher continuava a olhar para ele fixamente. Sorriu-lhe de novo. Christopher engoliu em seco e tentou articular algumas palavras mas saíu-lhe apenas um ruído áspero e rouco, abafado nesse preciso momento pelo chiar das rodas de metal da carruagem a roçar pelos pesados carris de aço pregados ao chão de betão do túnel. A mulher franziu o sobrolho, sempre a sorrir, questionando-o como quem não tivesse percebido. Ele aproveitou para pigarrear e ganhar algum tempo. “Vai para o emprego, suponho”? Disse então meio timidamente para iniciar finalmente a conversa. “Já estou no meu horário de trabalho”. Respondeu ela. A natureza masculina de Christopher não pode deixar de, imediatamente  ter um pensamento menos bem-intencionado. “Então começa bem cedo” - respondeu ele, em jeito de quem ao mesmo tempo faz uma pergunta - “ainda não são oito horas”. “Eu nunca largo o trabalho”, disse-lhe ela. “Esta altura do dia é quando estou mais ocupada”. Christopher já consumido pela curiosidade e por alguma malícia perguntou. “E o que faz”? “Trabalho por conta-própria”. Respondeu ela, olhando-o com curiosidade tentando interpretar as micro-expressões faciais daquela cara masculina, entre o surpreendido e o sarcástico.

Comentam algumas mulheres com o mesmo grau de sarcasmo, que delas os homens não conseguem esconder nada, muito menos expressões faciais. Outra mulher teria perdido o interesse, mas esta não, esta era daquelas raras mulheres inquisitivas, de olhar sensual, que muitos tentam em vão conquistar, e que não raras vezes se apaixonam ou pelos homens errados, que lhes arruínam as vidas, ou pelos homens mais inesperados que frequentemente se sentem intimidados mas ainda assim atraídos pela forte personalidade destas.  Christopher era talvez do segundo género. De tal modo que quem tomou a iniciativa de combinar uma jantar, fora ela, que lhe disse “Gostei da sua cara, inspira-me confiança. Quer combinar um jantar?” Christopher olhou para todos os lados, como que incrédulo mas ao mesmo tempo embaraçado pela frontalidade daquela mulher naquele lugar público. De facto as mulheres primam pela subtileza, umas mais que outras e umas ainda melhor que outras nesta requintada arte de se dar, sem abrir totalmente no jogo da sedução. E esta, para não fugir à regra deixou uma série de questões no ar e na cabeça de Christopher, que por nunca deixar uma oportunidade em aberto, nem virar a cara aos desafios que a vida muitas vezes lhe lançava, aceitou a inesperada proposta daquela criatura que nada tinha de extraordinário, a não ser uns lábios pintados de um vermelho vivo e uns sapatos da mesma cor. Para dizer a verdade, claro que havia mais naquela mulher, mas o mais de que aqui falamos é sempre muito subjetivo, cada cabeça terá a sua sentença e quanto a gostos, esses nunca se discutem, e muito menos nesta história. Combinaram então lugar e a hora e despediram-se.

Christopher chegou bem mais cedo ao local combinado, onde previamente havia reservado uma mesa. A sua mais que pontualidade devia-se não ao facto de recear que algo pudesse correr mal, mesmo que essa fosse uma razão válida para tal antecipação, mas sim porque durante o resto da semana, embora continuasse a ver a alguma distância aquela mulher misteriosa no costumeiro comboio subterrâneo que apanhava todos os dias, esta nunca mais lhe dirigiu a palavra e muito menos um sorriso, comportando-se como se ele fosse mais um estranho, no meio de todos os outros estranhos com que se cruzava todos os dias a caminho do trabalho, não obstante se continuarem a cruzar. De modo que Christopher, durante o resto dos dias de trabalho sentira-se bastante ansioso porque queria saber mais sobre aquela mulher e porque se sentiu inseguro ao não conseguir perceber o porquê de ela não lhe ter dirigido a palavra durante o resto da semana. Teria desistido do encontro? Ter-se-ia arrependido? Este turbilhão de ideias passava pela cabeça de Christopher enquanto sorvia em pequenos goles espaçados um aperitivo liquido de forte teor alcoólico que o ajudava a passar o tempo por um lado, e ao mesmo tempo ganhar alguma coragem para enfrentar aquela mulher que o apanhara sem guarda com a sua inesperada frontalidade, por outro.

As suas duvidas dissiparam-se quando a mulher apareceu no restaurante e o rececionista lhe indicou o bar onde Christopher se tinha sentado a tomar uma bebida. Christopher não ficou de modo algum surpreendido  pela forma elegante, e de certo modo sensual, como a mulher vinha vestida. Eram precisamente esses mesmos atributos que Christopher apreciara naquela cara normal, que de outro modo passaria despercebida no meio da multidão de todos os dias à espera do comboio subterrâneo. “Posso convidá-la para beber qualquer coisa?” Perguntou ele cheio de uma coragem alimentada em parte por algum teor alcoólico no sangue que já lhe tinha deixado as faces um pouco ruborizadas e os olhos com um brilho molhado. É curioso como alguns homens mais tímidos necessitam deste tipo de motivação para conseguirem expressar  as palavras certas na hora certa, e que de outro modo não lhes sairia da boca, ou então sairiam de um modo tosco e pouco articulado e no momento mais impróprio. O certo é que a pergunta teve o efeito desejado na mulher que aceitou o pedido e ao mesmo tempo formulou na sua cabeça, como só as mulheres conseguem, um pensamento inicial positivo acerca daquele homem que lhe parecia um autentico cavalheiro ainda que, não obstante o aperitivo, algo tímido. Existe uma capacidade inata nas mulheres de, em pensamento, criarem como que uma folha de calculo onde vão apontando as ações dos homens com quem interagem (e também de outras mulheres) e vão adicionando ou subtraindo valores que ao fim de algum tempo lhes indicará o somatório desses mesmos valores cujo resultado elas analisam e processam, tendo como resultado final uma relação (se atingidos pontos suficientes) ou um afastamento se a média for inferior às suas expectativas. É claro que as expetativas variam de mulher para mulher e a cada atributo será dado um valor diferente consoante a personalidade e os gostos de cada uma. Daí que os homens achem, não sem alguma razão, as mulheres muito complicadas. Elas próprias acham o mesmo, mas sorriem com alguma condescendência e sarcasmo pelo facto de os homens serem criaturas bem mais simples e menos dadas a contabilidades de caráter. Assim sendo Christopher foi somando pontos na cabeça da mulher pela elegância do vestir, pelo cavalheirismo inicial (esse atributo ficará em aberto até ao final da noite), e pela escolha do restaurante. 

Quando se sentaram para jantar, o homem iniciou a conversa, elogiando a beleza da mulher, tendo sido a sua verdadeira intenção elogiar mais o modo como vinha vestida e maquilhada do que a sua beleza natural, se bem que esta última tinha sido como que  realçada pelo modo como soubera escolher o traje. Ela agradeceu colocando uma expressão meio tímida (se bem que ensaiada) mas sentindo-se genuinamente lisonjeada, e retribuiu elogiando a elegância de Christopher. Foi quando este finalmente se lembrou que não se tinham apresentado, e desculpando-se pela sua falta de educação, disse o seu primeiro nome, guardando para já e para si o sobrenome, dando a entender à mulher, que também se introduzira entretanto e que dava pelo nome de Melissa, que aquele encontro seria informal, deixando de parte as formalidades que só atrapalham nestas ocasiões. Começaram pois a abordar os assuntos mais triviais primeiro, até porque nestas ocasiões convém jogar o jogo tácito da troca de informação que é tanto do agrado das mulheres e que os homens se vêm obrigados a jogar, mais ou menos a contra-gosto, correndo, aqueles que são demasiado diretos e menos subtis, o risco de, na pior das hipóteses, levarem uma bofetada ou o liquido de um copo pela cara e na melhor, o desinteresse por parte da mulher.  É claro que este jogo acaba por ir criando um certo crescendo que a correr bem, acabará num grau menor ou maior de intimidade, que por sua vez se quedará, ou pela amizade ou pelo paixão genuína. Christopher explicou então o que fazia; um trabalho sem grande cor, num escritório de gente aborrecida, que por imposição das chefias cheias de si mesmas, de vazias cerimónias e burocráticos procedimentos, exigiam comportamentos cinzentos e cerimoniosos de uns para com os outros, deixando muito pouca margem de manobra para a socialização ou qualquer outra atividade menos formal e mais imaginativa. Foi então que Christopher, embalado pela curiosidade, por um encorpado copo de bom vinho tinto, algumas garfadas  num excelente bife esmeradamente apresentado, e pela velada expetativa que este jogo de troca de informação pessoal, mas superficial gera, perguntou à mulher com a maior das naturalidades, ainda que com um certo sorriso de desafio, o que ela fazia profissionalmente. A resposta começou com uma pergunta, “quer mesmo saber?” “Claro que sim”, disse Christopher cheio de segurança e ao mesmo tempo de roída curiosidade, até porque quando se conheceram no comboio muita coisa ficou no ar, especialmente a profissão da mulher que despertara um interesse cada vez mais difícil de esconder. 

“Sou carteirista”. Disse ela.

O silêncio mais ou menos incómodo que a surpresa gerou em Christopher deveu-se não só ao facto deste não estar à espera da resposta, mas também porque uma genuína incredulidade se desenvolveu rapidamente na sua cabeça e especialmente porque isso, de certo modo, lhe bloqueou o discurso falado. Christopher ficou sem saber o que perguntar porque não queria ser mal-educado e muito menos indiscreto. “Está a brincar” foi a primeira coisa que conseguiu articular. “Então porque não me levou a carteira?” – continuou ele, agora num tom mais inquisidor– “teve mais que oportunidade para isso”. “Porque gostei de si, do seu sorriso e do seu ar melancólico, e não, não estou a brincar. Sou mesmo carteirista.” Aquela resposta desarmou Christopher completamente de tal modo que o sangue lhe gelara por momentos nas veias e artérias que cobriam os sues órgãos internos. No entanto, uma espécie de estranha atração física por aquela criatura fascinante, fora do comum, e de certo modo perigosa gerou a produção de alguma adrenalina no homem que, em vez da diplomacia subtil e um certo cavalheirismo que até aí tinha usado como arma de sedução, foi quase completamente substituída por um estimulo meio animalesco e fortemente sensual que o atraía cada vez mais àquela mulher. Christopher julgou no entanto que seria, e com alguma razão, o álcool a falar mais alto. Alguma da sobriedade que lhe restava permitia-lhe perceber também que, naquele jogo, ela levava uma vantagem muito grande sobre si, e era preciso igualar o marcador naquela noite...

                A madrugada fria tinha tomado conta do quarto que horas antes queimara, ardendo com intensidade, o combustível que se acumulara durante o jantar, enquanto o jogo de palavras e atitudes mais ou menos dissimuladas subira de tom num crescendo tal, que a certo ponto, depois de saírem do restaurante, fora de todo impossível a ambos manterem as máscaras de subtileza e cordialidade que até aí tinham carregado, pelo menos enquanto aquela espécie de jogo tinha durado. Nenhum dos dois se lembrava na manhã seguinte quem tinha virado o tabuleiro e a mesa com as peças, onde antes haviam jogado aquele jogo tácito e subtil, para o combate final que se seguiu no quarto vermelho, do apartamento de Melissa. Certo é que Christopher, muito depois de se ter vestido, calçado e fechar sem barulho a porta da saída do apartamento, quando já se encontrava no torniquete da estação do metropolitano para apanhar o  comboio que o levaria a casa, deu pela falta da carteira. Melissa por sua vez quando acordou, sentido a falta daquele corpo que antes a envolvera e fizera abalar as paredes das suas profundas convicções acerca dos homens, e que havia sossegado ao seu lado depois de apagados os fogos de ambos e consumidas as forças que os apagaram, percebeu ao levantar-se, que Christopher se tinha apropriado, em jeito de resgate involuntário, o seu até aí independente coração. 


©Alexandre Rodrigues 2013     


Sem comentários:

Enviar um comentário

Comentadores de bancada