Rain, particularly to a child, carries distinct smells and
colours.
George Steiner
Gostaria tanto que tivesses entendido todas as
palavras que te disse. Foi no tempo em que nos perdíamos a conversar naquelas
tardes de Sábado; entre um Outono de esperança e uma Primavera de desilusão. As
horas do mundo passavam lá fora. Sem darmos por isso, da janela do teu quarto, contemplava-se
uma cidade. O céu de permeio como testemunha e risadinhas de anjos lá fora no
terraço solarengo. As nuvens reflectidas nos teus olhos teimavam em olhar para
o chão do meu rosto tão assimétrico, tão marcado, tão desengraçado. Escondias
chuvas no teu olhar doce. Eu, provavelmente, escondia segredos nos meus. Se ao
menos ali tivesse encontrado as chaves de tudo o que havia para dizer....
Teriam chovido os meus olhos e do teu rosto sairia a explicação das dores. A chuva, nas crianças, carrega cheiros e
cores distintas. Éramos a antítese um do outro.
Pensar que nos sentámos tão juntos. Como dois aprendizes
de pianista tocando uma valsa desajeitada a quatro mãos. Lado a lado. Os nossos
joelhos e nossas mãos ocasionalmente…. Acabámos por nunca tocar música juntos. Resolvemos
ser desafinados um do outro. E, no entanto, no
peito dos desafinados também bate um coração…. Porquê essas nuvens, que se
refletiam nos teus olhos, nunca quererem abrir a chave dos meus? Terei sido eu
que nunca os elevei para te encarar? As veredas do tempo mancham as visões do
passado. Mas lembro-me do que te diziam meus olhos em silêncio. E da curiosidade
que me devastava em saber se…? O que pensavas de mim? O que pensas tu de mim?
Um peripatético patético, um triste tristonho rendido à sua fealdade ou um
obtuso obcecado? Soubesses apenas quantas vigílias transpus. Toda a minha existência
se rendeu à tua formosura e tu mal deste por isso. Como foste capaz de
acreditar no valor nominal do meu silêncio? Não era isso que meus olhos narravam.
Como era perverso o calar dos meus lábios…. Distraia-te com encantamentos.
Sonhava enfeitiçar-te. Era de vidro o meu riso. E, no entanto, nunca te deixaste
seduzir…. Mas reconhecias-me a inteligência dos sábios. Quão equivocada
estavas. O mais idiota dos idiotas, o mais pateta dos patetas; um orgulhoso platónico
se apresentou diante ti. E nenhum de nós sabia o que fazer com isso.
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Numa era tão estranha e fascinante como esta que
agora vivemos, podemo-nos encarar à distância nos reflexos de nós, imóveis. Poisamo-los
por todo o lado no éter vago das fibras ópticas. Podemos tentar trespassar as
nuvens do nosso olhar e contemplar o que anos silenciaram. Um de nós por
vergonha, o outro por demasiada bondade. Mas o que uma fotografia pode
transmitir senão um olhar num curto momento? E assim permanece para sempre imutável.
Seria o mesmo que escutar uma palavra numa fracção de segundo. Provavelmente só
ouviríamos um som órfão. Ou metade de um som. Como um som morredoiro na boca de
um defunto. Nunca chegamos a ouvir a música completa.
O que mais almejo neste momento é pegar
na tua mão. Apenas isso. Comtemplá-la na minha e imaginar como seria. Como
seria tocar um piano a quatro mãos contigo, onde as mãos se entrecruzassem e entrelaçassem?
Como seria a nossa valsa? Como seria se as nuvens dos nossos olhos, mesmo no
silêncio, se derramassem? E uma chuva dissesse aos olhos um do outro aquilo que
cada boca tem calado? Tudo isso permanecerá em silêncio. Porque hesito em
acreditar que alguma vez as nossas mãos se encontrem ou nossos olhos capazes de
chover.
Le cœur a ses
raisons que la raison ne connaît point.
Blaise Pascal
© 2016 Alexandre Alves-Rodrigues