Número total de visualizações de páginas

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Férias em Malta - 5ª Parte





V


Depois da operação, Carlos encontrava-se de pé enfaixado e amparado por duas muletas, tendo sido avisado por uma das enfermeiras que devia apenas evitar a areia das praias para não ganhar nenhuma infecção. O casal resolveu então ir a Anchor Bay, recomendada pelo recepcionista do hotel, onde foi-lhes dito, havia uma aldeia-cenário de um antigo filme de Holywood cujo personagem principal era um marinheiro de desproporcionados antebraços que só comia espinafres de lata e tinha uma namorada por demais subnutrida. Não se sabe se a subnutrição da sujeita era devia ao facto de não comer espinafres, vegetal monopolizado pelo marinheiro, ou se por usar substâncias psico-trópicas importadas clandestinamente da América do Sul pelo maior rival do namorado, que a tentava brutalmente seduzir, utilizando para tal as ditas substâncias de apsecto farinhento e branco. Certo era que se recusava terminantemente a comer os duvidosos hamburgueres do senhor Cobardolas que havia montado negócio em Anchor Bay depois de problemas que havia tido quando os dois marinheiros rivais, o dos antebraços e o brutamontes, resolveram abrir restaurantes do género, rivalizando entre si, roubando clientela um do outro tendo acabado em luta de comida, aproveitada então como activos sólidos e liquidos pelo senhor Cobardolas para abrir o seu próprio estabelecimento comercial aliás famosissimo na aldeia, talvez por ser o único, depois do desastre comercial que foram as venturas gastronómicas dos dois marinheiros rivais. 


Ao chegarem à aldeia, Carlos e Inês foram logo interceptados pelo marinheiro brutamontes que lhes tentou vender substancias ilegais de primeira classe. Carlos reparou que o brutamontes era parecido com a velhinha da escadaria da igreja que lhes vendera a falsa agenda com o lenço dentro, e rejeitando qualquer tipo de negócio com o sujeito, este ficou nitidamente mal-disposto, de tal modo que lhes atirou com algumas altercações menos elegantes, especialmente à namorada de Carlos que corou valentemente, mesmo estando fortemente bronzeada do sol da ilha de Malta e jurou vingança do casal.


Mais à frente, o famoso marinheiro dos antebraços desproporcionados, zarolho e de cachimbo nos beiços havia montado um espetáculo de rua para os turistas, que consisitia basicamente em largos e pesados objectos que eram atirados ao ar, esmurrados e transformados pelo mareante em “souvenirs” e posteriormente vendidos aos turistas. Um dos pontos altos deste espetáculo eram as ancoras de petroleiro compradas nas sucatas cingalesas de navios mercantes, que eram transformadas, pelo processo atrás descrito, em ferraduras com a inscrição “Tifkira ta ‘Malta”, isto depois de ter esmurrado um mastro em madeira de um veleiro françês em molas de roupa e uma chaminé de um transatlântico em anzóis de pesca. 


No final do espetáculo Carlos comprou algumas ferraduras para distribuir pelos amigos e familiares e entabulou conversa com o marinheiro que se queixou da falta de trabalho no mar, primeiro desde que os navios mercantes deixaram de aportar mais frequentemente na ilha para reabastecer, depois ainda se dedicou à pesca, mas desde que o país aderira à União Europeia as coisas estavam mesmo más e lá conseguia fazer algum dinehirito vendendo “souvenirs” e outras lembranças da ilha.

- Então de onde são? Indagou o marujo enquanto reacendia o cachimbo, chupando ar que fazia assobiar o aparato e que entretanto começara a fumegar.
- De Portugal. Disse Carlos.
- Ah sã perrtugueses!! Eh àgorra!! Nã aparrecem muntes de vocêzes perr aqui!! Disse em português e no mesmo sotaque setubalense do médico.
- Fala português? Indagou Inês cheia de curiosidade.
- Não me diga que aprendeu com médico do centro de saúde! Exclamou Carlos meio trocista.
- Quem!? O Costurrêro de Goze!? Ná, amigue!! Eu é que lh’ensinê tude!! Andê muntes anes à pesca do besugue da Póvoa do Varrzim. Bons tempes, amigue, bons tempes esses... Disse com alguma emoção. Tá viste aí p’lo sê pé que já o conheceu!!
- Ah, sim o doutor Scalpello... disse Carlos sem grande convicção e com alguma dor no pé. Então o senhor é que o pescador holandês que o médico me falou.
- Holandês, eu!? Nã amigue, ê cá sô belga, da Flandrres! Esse médique confunde tude. Tamém anda semp’ bêbade!
- Então é daí o sotaque. Gozou Carlos.
Quais sotaque? Mas ê fale com algum setaque!? Que’s verr este agorra veio p’rraqui p’a m’atentarr a mona!!
- Então e o filme de Hollywood não lhe rendeu nada? Perguntou Inês cheia de pena do marujo e desviando a convera.
- Nã filha! Aquile só serrviu prra darr dhnêrre a alguns. Apontava então para a cantina de Cobardolas. E a histórria c’os amarricanes contarrem da nha pessoa; é tude mentirra!! Ê cá nã come espinafrres de lata. É couve lombarrda!! Mentirroses!!
- Pronto deixe lá então. Acalmava Carlos o marinheiro. Então bom dia! Despediu-se.
- Adeuzinhe migas!! E se passarrem p’la Póvoa do Varrzim digam olá ó mê amigue Toni dos Besugues!!
- Fica prometido! Disse Inês já afastando-se e acenando ao marinheiro que agora entretinha uma família de turistas húngaros. 


O restaurante de Cobardolas encontrava-se cheio de turistas ingleses que viam ali naquele cantinho, um bocado de casa. Isto porque o famoso Cobardolas, era de origem inglesa, mais concretamente da cidade de Hull. No entanto, diziam as más linguas que Cobardolas, por causa do seu vicio no dito prato, que o fizera famoso, não fazia muito dinheiro com o negócio e tinha ordenados em atraso e pagamentos aos credores que já o ameaçavam com processos avultadíssimos em tribunal.
Inês e Carlos encontraram uma mesa vazia, mas ainda cheia dos restos de comida de uma imensa família de ingleses de Bradford. Quando digo imensa falo não no tamanho mas na quantidade. Além dos progenitores, eram mais quatro filhos e um casal de idosos que deveriam ser os avós. Viviam todos numa casa da câmara municipal, eram todos desempregados ou com actividades duvidosas, especialmente os mais novos, mas como é da praxe e graças à generosidade dos governos da coroa britânica em relação aos laxistas, recebiam um grande numero de benefícios, incluindo a renda da casa, a creche do mais pequeno ainda de colo, e até dizia-se as contas de telemóvel, mais os abonos dos quatro filhos. Como tal, ainda sobrava para umas viagens “low-cost” com tudo incluído num resort, mais as despesas no destino pagas pela reforma do casal de idosos reformados da defunta indústria têxtil do norte de Inglaterra.
Passado algum tempo lá foram servidos pela namorada do marinheiro, que se arrastava pelo recinto, com grandes olheiras, rugas a mais para suposta idade e com ar de grande enfado.

- Digam lá, fáxavor! Resmoneou a personagem.
- São dois “Super-Cobardolas” e duas latas de “Cola”. Pediu Carlos.
- É só!? Perguntou displicentemente,congelando um esgar de repulsa, pois estava habituada às grandes doses pedidas pelos turistas anglo-saxónicos, que por norma se gostam de empanturrar em comidas pouco menos que saudáveis e totalmente desaconselhadas pelos médicos, estes mais para evitar despesas de tratamentos cardiovasculares no serviço nacional de saúde, que por genuíno interesse pelo bem-estar dos cidadãos da velha Albion.

- É só, obrigado. Disse Inês com um leve sorriso.

A namorada do marujo lá se arrastou até à janela que dava para a cozinha e gritou a ordem de serviço.
Passados alguns minutos, sete e seis segundos, a senhora lá trouxe o pedido, indo o caminho todo a tossir para os hambúrgueres do casal que se entreolhava abismado. Devido à fome que traziam, os dois rapidamente deglutiram aquela mistela de pão, carne picada e alguns vegetais coberta com molho de tomate, maionese e pickles. 


Quando se levantaram, começaram a sentir a cabeça muito leve, a sentirem-se extremamente bem, eufóricos até, e resolveram sair para a rua dirigindo-se ao cais  onde o barco que os trouxera pela costa até Anchor Bay já os esperava. Mais uma vez foram abordados pelo brutamontes barbado, de voz rouca que lhes propôs a compra de substâncias ilegais. Carlos que depois da refeição tinha perdido o medo, empurrou o marujo de compleição bastante sólida, que por sua vez desferiu uma punhada no alto da cabeça do português tendo este ficado estendido no chão sem sentidos. Inês reagiu imediatamente pontapeando o galalau no meio das partes pudentes. Este, pegou na frágil figura pela cintura com uma mão apenas e atirou-a ao chão para cima do desmaiado namorado. Imediatamente, detrás de um poste de iluminação saiu um oficial da “Pulizija” que imediatamente algemou o par de namorados por desacato à ordem pública e por posse de substância ilegal, sub-repticiamente colocada no bolso de Carlos pelo sevandija agigantado.

©Alexandre Rodrigues 2013

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Férias em Malta - 4ª Parte


 
Carlos e Inês entraram no centro de saúde. Este encontrava-se completamente vazio com excepção de um grupo de quatro funcionários que entretinham o tédio jogando voleibol num campo improvisado na ampla sala de espera, cuja rede, que separava as duas equipas era um lençol dobrado e preso a dois suportes de soro fisiológico ligados a dois pacientes que serviam de árbitros da partida, muito maus diga-se, mais por desconhecerem as regras do jogo que pela sua limitada mobilidade e falta de vista de um deles que tinha deixado os óculos no ambulatório. Depois das formalidades oficiais hospitalares, e de algumas perguntas secas sobre o ferimento, tais como "porque é que caiu", ou "então não viu onde punha os pés", Carlos esperou cinco minutos e trinta e nove segundos até o chamarem para o consultório onde o médico, um homem baixo e atarracado mas de tronco rígido, mãos espessas, envergando uma camisa grossa aos quadrados por baixo da bata e botas de borracha nos pés, já o esperava. Carlos entregou o papel que lhe haviam dado na recepção. Os dedos do médico, demasiado grossos, não conseguiam apanhar o papel e por várias vezes o deixou cair no chão, amaldiçoando-o, usando uma linguagem rude própria de um lobo-do-mar. O médico acendeu um cigarro e colocou-o no canto da boca, fechando o olho por onde o fumo passava, enquanto esticava os braços para conseguir ler a minúscula letra da enfermeira recepcionista e disse, em português, com uma voz grossa de aguardente e tabaco:

- Pode-me segurrar o papel p'a ê conseguirre lerre, amigue? É c'us mês olhes já nã serrem o qui érrem dantes! disse ele em bom sotaque setubalense deixando Carlos boquiaberto.

Depois de várias tentativas para ler o documento, algumas tossidelas bronquicas, ameaços de escarros, e alguns murmúrios enquanto lia, finalmente disse:

-Mostre lá o pézinhe. Dexe lá ê verr'isse sacha'vorr.

Agarrou no pé já descalço de Carlos, deixou cair alguma cinza do cigarro no corte, tossiu e afirmou peremptório:

- Vou terr d’o operrar amigue. O corrte ‘tá infectade e abrriu. Temes d’desinfectarr isse e coserre, disse com os dentes muito cerrados num esgar de quem está com dores. E dizendo isto puxou o fumo do cigarro fazendo um ruído como quem sorve sopa. - Ma nã se prreocupe ahn, ê cá antes de serr médique fui pescadorr e cosi munta rede de pesca fininha . Foi a melhorr escola de medicina que tive! Ahua! Isse e abrrirr a barriga dos pêxes p'a lhes tirrarr as trripas! E interjectando expirou o fumo para a cara de Carlos.

Carlos sentiu um suor frio a percorrer-lhe as costas. À sua frente estava um profissional de medicina que mal conseguia agarrar um papel, imagine-se uma agulha! E que raio de tamanho de agulha conseguiria ele agarrar!? Já para não falar na absurda falta de vista.

- O doutor é português? Indagou.

- Nã, amigue! Maltês dos quatrre costades, e naturral da ilha de Goze, com munt'orrgulhe!! Aprrendi perrtuguês com um ex-clega pescadorre!

- De Setúbal? Perguntou Carlos levado pela lógica do sotaque sadino.

- Nã! Qual quê!! Holandês!! Nã se nota do sotaque? Disse apontando para a boca. Ê cá fale perrtuguês com setaque holandês! Esse mê ex-clega é que pescou munt’em Porrtugal. Duma trraineirra da Póvoa do Varrzim, no norrte do país.

Carlos decidiu não contradizer o médico, até porque na situação em que se encontrava não era ajuizado enervá-lo, tendo em conta que este o iria operar e aparentava ser daquelas pessoas cujo feitio ferve em pouca água.

- Prrontes! Volte lá parra a sala de esperra c’a gente já o chama, tá beim?

Carlos coxeou até à sala de espera e contou a Inês o sucedido. Esta retorquiu:

- Só espero que não tenhas de ficar muitos dias de cama, senão temos as férias estragadas.

- Penso que não. Respondeu Carlos por descargo de consciência, quando no fundo sentia-se preocupado com o desfechar deste episódio. No entanto, os seus receios quanto à estadia forçada na cama do hotel eram completamente infundadas. Depois da operação que durou cinco horas, quatro das quais para o médico colocar a linha na agulha, Carlos e Inês regressaram ao hotel para jantar e descansar. 


©2013 Alexandre Rodrigues

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Férias Em Malta. 3ª Parte




III

Carlos e Inês, num dos intervalos de praia, resolveram explorar mais um pouco a capital maltesa. Decidiram  então visitar uma das muitas igrejas da ilha. Dirigiram-se à igreja de São Paulo Náufrago. Na escadaria de pedra calcária, uma velhinha com aspecto de mendiga, vestida de farrapos pretos, cabeça coberta, abeirava-se dos turistas, e de voz rouca apregoava imperativamente:

- Leve uma agenda! Leve uma agenda!

Carlos e Inês não se deixaram intimidar pela insistência quase zangada da velha senhora e acelerando o passo ligeiramente, passaram a arcada entrando de imediato no templo.

Assim que deram os primeiros passos, olharam em volta e para os tectos do sagrado edifício, quando, por detrás de uma coluna do lado esquerdo saiu uma outra velhinha, desta vez de aspecto mais digno mas também coberta da cabeça aos pés de preto, ralhando:

- Mas o que é isto!? Ahn!? Que pouca vergonha vem a ser esta, hein!?

Carlos e Inês estacaram, franziram os respectivos sobrolhos em ar de estranheza, olharam um para o outro, congelaram a expressão por alguns segundos, cinco para ser mais exacto, e repararam que a beata se dirigia a eles, mais precisamente a Inês:

- Cubra-se, sua desavergonhada! Cuuuuubra-se! Dizia, prolongando os “uu” em vibrato aflautado. Está na casa de Deus Nosso Senhor, da Virgem Maria sua esposa e mãe do Cristo crucificado no madeiro e de São Paulo Náufrago Apóstolo de Jesus! Disse de uma vez só sem pausas para respirar, ficando muito vermelha.

Não tem vergonha!? Cuuuuubra-se imediatamente!

Inês, por causa do imenso calor mediterrânico que se fazia sentir, trazia um vestido de alças de algodão até aos pés, deixando no entanto os ombros descobertos, só teve tempo de perguntar:

- Mas como? Onde?

- Então não viu a minha irmã lá fora? Questionava indignada a devota. Devia ter-lhe pedido um lenço para se cobrir!

- Lá fora só estava uma velhinha a mendigar. Argumentava Carlos.

- Qual mendigar, qual carapuça! Exclamava de dedo indicador espetado. Aquela é a minha irmã. Vá lá ter com ela para lhe arranjar um lenço.

Carlos, receoso que acontecesse alguma coisa a Inês acompanhou-a até à escadaria exterior onde se encontrava a irmã da beata, que parecia esperá-los.

- Então - disse em voz roufenha – vieram buscar a agendazinha?

- Não. Disseram ambos em coro.

- Vim buscar um lenço para poder entrar na igreja. Disse Inês.

- Se comprar a agenda, leva o lenço de oferta. Resmungou a geronte como se tal fosse óbvio. E continuou:

- Mas tem de mo devolver à saída, avisou de dedo indicador em riste, fazendo agora sim, lembrar a sua irmã que estava de sentinela dentro da  igreja.
Carlos, respirou fundo, meteu a mão no bolso das calças e pagou a agenda com uma nota, quando esta ripostou do nada:

- Dinheiro dentro das calças é pior que mulher na igreja com vestido de alças. Rematou.

E tendo dito isto cuspiu no chão com ar de desprezo. Murmurou qualquer coisa, que Inês julgou ser um padre nosso, e entregou uma agenda da grossura de um livro, cuja capa tinha uma imagem antiga de um papa falecido, encimada por uma senhora de Fátima de cabeça levemente pendente para um dos lados e vestida de branco.

- Então e o lenço? Disse Carlos já meio irritado com aquela conversa do dinheiro nas calças.

- Abra o livro. Rosnou a velha.

Inês então abriu o livro que era completamente oco, contendo apenas um lenço preto dobrado.

- Vá, agora cubra-se e não pequem muito! Seus hereges, filhos do demo! Aposto que nem são casados. Murmurou quando o casal já se encontravam no cimo das escadas.

Os dois voltaram a entrar na igreja. Assim que meteram o pé dentro do edifício, a segunda velhinha, de um salto, sai novamente de trás da coluna, barrando o caminho e mirando Inês de alto a baixo em silêncio, para se certificar que esta estava, agora sim, vestida condignamente. Satisfeita, abriu as pernas, mais do que seria suposto ser possível a uma senhora daquela idade e, com um passo lateral similar aos dos praticantes de Tai-chi, sempre a mirar o casal, voltou a esconder-se atrás da coluna já à espreita dos próximos turistas, desta vez um casal de lésbicas inglesas católicas, que vinham vestidas a preceito, de preto, crucifixo ao pescoço, véu e sem maquilhagem aparente,benzendo-se com o sinal da cruz ao entrarem no monumento. A beata olhou para Carlos e Inês com um sorriso sarcástico e apontou com a cabeça para as lésbicas, como que a dizer; vêm, assim é que deveriam ter feito, seus sectários.

Inês começou a sentir-se incomodada por uma das inglesas, que não parava de olhar para ela, disse ao namorado:

- Se calhar é melhor irmos andando. Já estou farta desta igreja e do raio das beatas.

Carlos acedeu. Quando se iam embora, um pé sai de trás de uma outra coluna mal iluminada, fazendo  tropeçar o rapaz que, ao tentar equilibrar-se, espeta um prego no pé, que estava solto de uma tábua no chão. Carlos sentiu a carne a rasgar dentro do sapato e gritou.

- Puta que pariu! Merda!

Felizmente, proferiu estas indecorosas palavras em português, ao que a beata apesar de se ter apercebido que algo se passava, não entendeu o baixíssimo vernáculo em que foram proferidas. No entanto, ao abordar Carlos que estava sentado no chão a verificar o ferimento, uma outra beata, anã, que entretanto saíra de trás da coluna mal iluminada, juntou-se à primeira e proferiu:

- É castiiiigo! Foi Deus Nosso Senhor que o castigou por ter entrado na igreja sem lenço!

- Mas quem entrou na igreja sem lenço foi ela! Disse Carlos cheio de dores apontando para Inês.

- Paga o justo pelo pecador é o castigo vindo do Senhor! Rimou cheia de perfídia, a harpia.

- É melhor irmos ao hospital ou centro de saúde tratarmos desse golpe que me parece ser fundo.

Inês então, ajudou Carlos a levantar-se e, amparando-o, saíram da igreja e dirigiram-se onde pudessem tratar da ferida que obrigava agora Carlos a coxear.

©2013 Alexandre Rodrigues

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Férias em Malta - 2ª Parte




II
Ao chegar ao balcão do hotel, Carlos e Inês foram recebidos pelo mesmo sujeito que lhes alugou o carro no aeroporto envergando agora um casaco diferente e um crachá identificando-o com Karistu Salvaloco. Tendo as formalidades levadas a cabo por este seguido normalmente, Carlos e Inês dirigiram-se ao quarto. Quando abriram a porta e seguidamente acenderam a luz, a primeira coisa que notaram foram jornais e mapas da ilha de Malta em língua alemã espalhados pelo chão e por todas as superfícies planas do mobiliário. Depois foram as garrafas de cerveja e vodka, umas meio cheias, outras meio vazias (um dos alemães que ali passara estava deprimido) e por fim a cama desfeita debaixo da primeira página do Der Spiegel. Carlos poisou as malas, decidido a que nada lhe estragasse as férias, muito menos umas malas pesadas e dirigiu-se à recepção do hotel, ao mesmo sujeito que agora se chamava Duminku Serieux, pois havia trocado de crachá quando bateram as doze e trinta, e atirou: 

- I’m sorry but the room is not in order

- Impossible! Exclamou o recepcionista abrindo os olhos numa surpresa mal ensaiada. 

Dirigiram-se os dois ao quarto onde Inês se tinha sentado em cima de uma das malas, jogando com um iô-iô de estimação que trouxera clandestinamente de Portugal, pois as autoridades de segurança aeroportuárias tinham considerado os iô-iôs como arma de arremesso perigosa e baniram o seu uso dentro dos aviões, especialmente depois de um grupo de separatistas da Micronésia parlantes da língua chamorro ter ameaçado fazer cair um avião norte-americano, ao terem manietado a tripulação a golpes de iô-iô.
O recepcionista verificou o quarto, pediu muitas desculpas, muitas mais do que as que Carlos e Inês tinham trocado em Lisboa antes da viagem numa casa de cambio ali para os lados do Intendente, e viram-se de repente sem desculpas para dar a mais ninguém. Depois de mais meia hora de formalidades, enquanto o agora Duminiku refazia totalmente a marcação do casal num computador de 1996, foram de novo encaminhados para um quarto. 

Ao abrirem a porta, e às escuras, um forte cheiro a divisão fechada cheia de humidade quente percorreu-lhes as narinas atravessando o cérebro e deixando algumas sinapses completamente queimadas. 

- Cheira a mofo. Disse Inês segurando um vómito. 

- É bafio. Retorquiu Carlos. 

- Desculba, bas a bim cheira-be a bofo, disse Inês enfiando dois dedos pelas narinas dentro. 

- Já te disse que é bafio. Teimou Carlos. Então não se vê logo?

 Ao acenderem a luz, o quarto escorria água de uma das paredes, por uma infiltração no tecto manchada de castanho. Inês reparou que alguns cogumelos brotavam dos rodapés junto à mini cascata. Carlos franziu o sobrolho e comentou com Inês:

- Eu até nem sou esquisito, mas sabes como tenho o sono leve. Uma cascata no quarto, por muito romântico que pareça faz imenso barulho e como tal não vou conseguir descansar. Já volto.

Dirigiu-se de novo ao balcão da recepção onde Duminiku se entretinha a jogar Subuteo com o barman, e exclamou: 

- I can’t have that room. It smells of damp and there is water running from the wall. 

- O meu colega deve ter-se enganado, respondeu o recepcionista depois de marcar um livre directo ao barman, que entretanto despeitado voltou ao bar. 

- Mas foi você que me deu aquele quarto! Exclamou Carlos que, reflexo imediato olhou instintivamente para o crachá onde agora se lia Lażżru Abdilla. 

- Não, desculpe mas foi o meu colega do turno que acaba à meia-noite e meia que o atendeu e lhe indicou o quarto. Está aqui na sua ficha de cliente. Peço-lhe muitas desculpas por este percalço. 

- Já não me restam desculpas nenhumas -retorquiu Carlos exasperado - o seu colega pediu-me todas as que trouxe de Lisboa. 

- Nesse caso vai ser difícil arranjar-lhe outro quarto. Estamos quase cheios.

- Espere, disse Carlos, não me diga que ainda vou de ter ir para outro hotel. Olhe que lhe deixo uma má review no website das viagens. 

Lażżru, ergueu o sobrolho direito e franziu o esquerdo pensativo, enquanto teclava ferozmente à procura de um quarto vago. Tenho aqui um com uma vista excelente. É no terceiro andar. Aqui estão as chaves. Carlos voltou ao quarto da cascata para ir buscar Inês e as malas, e dirigiram-se para a nova acomodação.
Carlos exalou com força antes de rodar a chave do novo quarto, fechou os olhos e abriu a porta. Nenhum cheiro esquisito. Acendeu a luz, tudo parecia arrumado. De repente Inês, que espreitara por cima do ombro de Carlos, gritou: 

- As cortinas! 

Carlos que olhara para as paredes em primeiro lugar, não tinha reparado que a janela de vidro à sua frente, se encontrava despojada de cortinados. Não só isso mas estes encontravam-se empacotados em cima do sofá. Inês, de voz trémula impava:

- Não vamos ter privacidade nenhuma. 

Ao que Carlos retorquiu:

- Pior ainda é que de manhã vamos ter luz bem cedinho e depois de uma noite como esta eu quero é dormir. Já volto. 

Desceu as escadas, chegou ao lobby e deparou com Lażżru a ser violentamente bombardeado por B-52’s em chamas, atirados pelo barman despeitado depois deste ter perdido a partida de Subuteo.

- This is the third time I come here tonight, I do not have more apologies for you to accept and again, the room is not in order. E não me diga que mudou de nome outra vez! Gritou Carlos.

- Não mudei nada de nome, ora essa! Indignou-se o recepcionista, desviando-se de mais um shot explosivo. Como pode ver pelo meu crachá, chamo-me Lażżru Abdilla, ao seu dispor. Diga por favor. 

Carlos sumarizou:

- O quarto não tem as cortinas no lugar. 

Lażżru olhou para um lado, olhou para o outro e, em voz baixa e nasalada comentou: 

- Voi um cãsal de checos que bediu bara as rebover, e dizendo isto piscou o olho a Carlos. 

- Pois então volte a colocá-las no lugar - respondeu-lhe este em voz alta e não nasalada. Eu não tenho taras nem fetiches desses!

- Lamento, disse Lażżru peremptório. A senhora da limpeza só pega amanhã às oito e antes disso é impossível.

 - Então quero outro quarto e desta vez com cortinas. Rematou Carlos.

Mais uma vez, Lażżru lançou-se em novo ataque furioso às teclas do computadorossáurio, que soltava guinchos pré-históricos e disse:

- É o último quarto! A ver se desta vez acertamos!

Carlos pensou: eu é que te acertava e era com este dálmata de loiça que aqui está encostado ao balcão, mas contido retorquiu:

- Eu ainda não falhei nada. Aliás tem sido cada tiro, cada melro, como se diz no meu país.
Lażżru olhou confuso para Carlos e voltou a arremessar os dedos de encontro às teclas do venerando e geronte calculador electrónico. 

Carlos levou a nova chave pelas escadas e corredores do hotel murmurando baixinho um mantra:
- Por favor, que seja desta. Por favor que seja desta. Por favor que seja desta.

Inês que tinha voltado a jogar com o iô-iô, ao ouvir Carlos aproximar-se indagou:

- Com quem é que vens a falar?

- Com ninguém. Respondeu Carlos cabisbaixo. Só estou cansado disto tudo, mais nada. 

Finalmente, o último quarto disponível aparentava estar em condições, a luz funcionava, o chuveiro era na casa de banho e tinha águas quentes e frias e as cortinas estavam no sítio. O casal nem esperou para desfazer as malas. Deitaram-se na cama e exaustos dormiram o sono dos silvas, tudo porque o sono dos justos já estava ocupado por um casal de turistas holandeses desejosos de conhecer um pouco mais dos hábitos de repouso portugueses.



©2013 Alexandre Rodrigues